Rachel Duarte no SUL21
Mulher de personalidade, forte na fala e na defesa de suas ideias, Miguelina Vecchio luta pelas causas feministas há 30 anos no Brasil e na América Latina. Vice-presidente de Mulheres da Internacional Socialista, a socióloga vê uma necessidade de avanço na política brasileira para qualificar a participação dos quadros femininos. “Eu fiz uma solicitação de audiência com a ministra Carmem Lúcia (TSE). Eu quero saber qual a punição que as laranjas vão ter ao final desta eleição, quando dois terços das candidatas serão laranjas. Isto é estelionato”, acentuou, durante entrevista de quase duas horas na sede do Sul21.
Dirigente do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e presidente da Ação Mulher Trabalhista (AMT), Miguelina está disposta a comprar briga com os dirigentes trabalhistas para punir as laranjas do seu partido. Esta não será a primeira vez em que ela fará algo de acordo com as próprias convicções, mesmo que eventualmente contra os interesses de alguns setores do PDT. “Eu não votei na Yeda Crusius (PSDB), que é contra a licença-maternidade. Eu votei no Olívio Dutra, que fez a Coordenadoria Estadual da Mulher”, admitiu.
Favorável ao aborto amplo, Miguelina diz que, mesmo com a aprovação do Novo Código Penal, a legislação sobre o aborto legal no Brasil não contempla a autonomia das mulheres. “O ideal seria poder decidir até a 14ª semana, sem criminalização para as mulheres, como ocorre na Espanha”, compara. Ela lamenta que no Brasil, as mulheres pobres e negras sejam as vítimas da criminalização por interrupção da gravidez. “Se as pessoas entendessem que nenhuma feminista quer o aborto como prática seria um ganho. O que queremos é não precisar fazê-lo”, diz. Durante a entrevista, ela acentuou a necessidade de investir em educação, como forma de promover mudanças sociais e combater problemas como a gravidez precoce e a violência contra mulheres.
“A violência aumenta com a impunidade. Se o Estado não enfrenta a questão da violência contra mulheres, as crianças vão aprendendo que é normal a mãe apanhar”
Sul21 – Em seis anos da Lei Maria da Penha, as denúncias de violências contra mulheres aumentaram no país. O que por um lado é positivo, por revelar que mais mulheres estão denunciando os agressores. Porém, o sistema de proteção ainda é falho. Muitas seguem morrendo mesmo com a existência de medidas protetivas. Como avançar mais para a efetividade da lei?
Miguelina Vecchio – Se compararmos com o período anterior à Lei Maria da Penha, em que éramos “protegidas” pela Lei 9.099, que na verdade não nos protegia, pelo menos já temos uma lei efetiva. Anteriormente, a legislação tipificava os crimes contra mulheres como de menor potencial ofensivo, ou seja, matar mulheres não era algo tão importante. Mas eu não sou ufanista em relação à Lei Maria da Penha como a maioria das feministas. Eu acredito que é uma norma que ajuda. O fato da não compulsoriedade também. Antes acontecia como no estado do Pará, que criou uma lei para notificação compulsória. Ao atender uma mulher agredida, o Hospital de Pronto Socorro informava a Delegacia. O delegado entregava a notificação para a vítima denunciar o agressor e ela tomava mais um pau por ter tentado denunciar o marido. Há uma série de fatores que precisam ser levados em conta para acabar com a violência contra mulheres. Fundamentalmente, tratar o agressor. O homem que agride uma mulher é doente. Infelizmente esta compreensão veio tardia. Faz apenas alguns anos que se começou a pensar as políticas de forma multidisciplinar para conseguir alcançar o todo e não tratar o tema como caso de polícia que se resolve com medida protetiva e cadeia. Este método criava um círculo que, às vezes, acabava com a única fonte de renda da casa, que é o pai preso, gerando novos problemas ou novas violências sem tratar o agressor.
Sul21 – O governo gaúcho vai estrear uma patrulha da polícia para acompanhar agressor e vítima. A senhora acredita ser uma medida eficiente?
Miguelina Vecchio – Ajuda. Eu fui presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher no Rio Grande do Sul, há quatro mandatos. Em uma visita ao conselho do Rio de Janeiro, eu me deparei com uma roda de homens na reunião. Perguntei o que faziam tantos homens no Conselho da Mulher e fui informada de que eram agressores em tratamento terapêutico. A agressividade não é para ser o natural de um ser humano. O problema é que tratá-la significa ter que mexer em causas profundas. Um fator que contribui para o aumento da violência é a impunidade. Se o Estado não enfrenta a questão, as crianças vão aprendendo que é normal a mãe apanhar. E na minha prática eu ouvi histórias de agressões por motivos mais inimagináveis, como não servir a comida na hora certa ou não esperar o marido com o chimarrão. O vínculo afetivo das mulheres com o agressor também é algo que não pode ser desconsiderado. Então, são várias coisas que precisam ser tratadas. Eu acho que a Patrulha Maria da Penha vai ajudar. Mas o estado tem que estar preparado para reagir de forma enfática. Eu comecei a elaborar um projeto, de âmbito federal, para identificar os agressores no mercado de trabalho. É uma forma de fazer com que as empresas não sejam coniventes com funcionários agressores e consigam propor tratamento para eles. Existem inúmeras formas de enfrentar a violência e tratar o problema — o que não pode é banalizar a violência.
Sul21 – Em que aspecto? A banalização envolve vários atores.
Miguelina Vecchio – Sim. E com o passar do tempo, a violência está sendo encarada de forma muito banal em vários setores. Atualmente se fala no desejo de uma cultura de paz, mas compramos para nossos filhos armas de brinquedo cada vez mais realistas. Ou seja, estamos fazendo campanha para desarmar os adultos e estamos armando as crianças. Os jogos eletrônicos não poderiam ser mais violentos. O ganhador é quem matar mais pessoas. Não podemos achar que isto não afeta o subconsciente das crianças. Como ele crescerá achando que bater é algo ruim, se quanto mais ele for cruel nos games, mais ele é vencedor? Na escola, ele reproduz a violência na convivência com os outros colegas porque ele quer ser reconhecido como o poderoso. O poderoso é o que bate. Nas unidades de privação de liberdade de jovens é a mesma coisa. O mais drogado não é a referência, a referência é o que mais matou. Eles saem e um quer matar mais que o outro para quando voltar para a FASE (Fundação de Atendimento Socioeducativo) ou para um presídio ele ser reconhecido como melhor que os outros. Estes jovens estão em alta vulnerabilidade, o atendimento tem que ser humanizado. A lógica não é enfrentar a violência matando o bandido, é impedindo que ele nasça. Ou seja, o Estado tem que investir em educação.
Sul21 – Educação é apontada como solução para muitos problemas sociais. No caso da violência contra as mulheres, uma solução também passa por mais educação?
Miguelina Vecchio – Com certeza. Não defendo a educação apenas pela minha militância no PDT, que tem o berço de Leonel Brizola e sua bandeira da educação, mas por ter atuado em escola também. Se não resolver o problema na escola, dificilmente será depois que o cidadão já largou os estudos ou nem entrou na escola que o Estado conseguirá mudar alguma coisa. Eu digo sempre isso quando faço palestra nas escolas. Eu costumo lembrar os alunos que acham legal jogar bola quando a professora não veio dar aula no sistema público que este dia fará falta quando ele perder a vaga da universidade pública para o filho do burguês que não perdeu de ter um conteúdo e pegará uma vaga que deveria ser dele na universidade federal. Não há estímulo para os alunos quererem ser competitivos, no sentido da boa competição, de aproveitar oportunidades para ser o melhor que puderem na vida. Certa vez, eu estive palestrando em uma escola de periferia e havia um aluno com camiseta da Nike. Eu perguntei sobre a marca ele disse que conhecia. Mas quando eu disse que a Nike explora a mão de obra dos trabalhadores para confecção das roupas, ele desconhecia. Eu disse que ele usava porque não tinha orgulho de ser brasileiro e me disseram que eu estava chocando os alunos. Mas eles têm que se chocar mesmo. Há jovens que vestem uma manta da Palestina e desconhecem completamente o que estão usando. E a escola de hoje só reforça esses conceitos. Tudo que não é brasileiro é legal. O que tem de legal nisso? Ser oprimido pelos gringos? Eu sou presidente da Internacional Socialista de Mulheres para América Latina. Não tenho nenhum carimbo americano e tenho orgulho disso.
“Se com dez anos as crianças já têm noção de sexo, é aí que temos que entrar com este tema. Estamos apresentando métodos contraceptivos no Ensino Médio e elas estão engravidando no Ensino Fundamental”
Sul21 – Qual era a escola de Leonel Brizola?
Miguelina Vecchio – A escola que emancipa. O turno integral é o caminho para evitar a exploração do trabalho infantil. Se não for para escola em dois turnos, sabemos que em um deles ele vai para a sinaleira. Há críticas de que o contraturno não oferece políticas públicas elaboradas, mas mesmo que seja apenas para bater tambor na escola, já é melhor do que fumar crack. Tem coisas simples que podem ser feitas nas escolas que já conseguem resgatar a juventude. Hoje em dia com menos de 15 anos as meninas estão transando quando não estão na escola, porque não têm opções para complementar a formação. Não é que não possa fazer o que quiser com o corpo; é não fazer isso como regra por falta de educação e de ocupação. Se o Brizola tivesse sido presidente o Brasil não teríamos a realidade que há hoje, em que pese que Lula foi um grande presidente e fez muito pelo país.
Sul21 – Como mudar o currículo escolar para adequar a educação sexual à realidade de crianças e jovens iniciados e expostos ao sexo cada vez mais cedo?
Miguelina Vecchio – Eu fiz uma palestra em Palmeira das Missões e a professora que me convidou achou que eu seria linchada. Eu perguntei para os pais presentes de quem era a culpa das adolescentes grávidas e disse que não era da infeliz da professora, que recebe o mísero salário dela: é dos pais. Eles não querem que a professora apresente o pênis em uma aula de biologia ou de ciências, mas muitas vezes as filhas deles já viram um ao vivo atrás da igreja. E a culpa é da professora que não tem nem condições de pagar uma pós-graduação? As professoras estão deixando as salas de aula. Não é uma profissão valorizada e desejada como foi em épocas passadas. Nós estamos apresentando métodos contraceptivos no Ensino Médio e elas estão engravidando no Ensino Fundamental. Se com dez anos elas já têm noção, é nesta fase que vamos ter que entrar com este tema. Com a minha filha eu falei sobre isso quando ela tinha seis anos. Ela me perguntou com essa idade e é isso que eu digo para os pais: falem. E só respondam o que ela pergunta. Basta falar o que elas perguntam. Para minha filha eu contei tudo. No ano seguinte foi inclusive curioso porque na conversa com um coleguinha ela contestou que ele não tinha nascido da sementinha porque não tinha galhos e foi para o quadro e desenhou o espermatozóide que eu tinha desenhado para ela. A professora me chamou na escola dizendo que o coleguinha não queria mais sentar ao lado dela. Mas eu sugeri que chamasse o outro pai, que fica contando essas bobagens. Eu até exagerei, mas o melhor é não mentir para a criança. Quando eles descobrirem (que não era verdade), vão hesitar em perguntar para os pais outra vez.
Sul21 – O quanto ainda existe de pudor e conservadorismo diante destes assuntos?
Miguelina Vecchio - Diminuiu muito. Avançamos bastante. Mas, o que a escola apresenta hoje para romper o preconceito? Na verdade, nada. A escola burguesa ensina a dominar e a escola proletária a aceitar a dominação. As pessoas têm que ter as mesmas oportunidades. Não podem estar condenadas porque nasceram em determinada condição social ou com determinada raça. Aliás, falar em etnia no Brasil, se tivéssemos um pingo de vergonha na cara, diríamos que todos nós somos negros. O problema é que nossa sociedade nega sua negritude e quer ser branca a qualquer custo. Nem que seja taxado de nazista, mas tem que ser branco. Outra coisa é afirmar que existe uma raça ‘parda’. Não existe isso. Nós todos somos descendentes da miscigenação.
Sul21 – As próprias mulheres se submetendo a determinados papéis não acabam contribuindo para a reprodução do machismo?
Miguelina Vecchio – As mulheres têm sua parcela, mas também foram educadas na cultura machista. Elas foram criadas na cultura que dança na boquinha da garrafa e a mãe e o pai batem palma. Sem falar na reprodução de valores que se transmitem nestes programas de relações superficiais. Uma fica com o namorado da outra como se fosse algo legal. Sabemos que a televisão é extremamente erotizada, as músicas de alguns grupos, enfim, muito do que os jovens consomem. Eu costumo citar a letra do Raimundos (na musica “Selim”), que fala em ser um banquinho de bicicleta para estar próximo à vagina como referência. Para estar próximo tem que ser muito mais do que um banquinho de bicicleta, é minha mensagem. Nós aprendemos a setorizar o corpo do outro. Se tiver alguma coisa que achamos atraente está bom. Não, tem que ter intelecto, investir em outras relações. Ainda temos uma cultura dentro da escola que a mulher “avançada” é aquela que engravida enquanto as outras ainda não transam. Tem que transar com segurança. Isso é que tem que ser ensinado. E escola não enfrenta estas coisas.
“Eu não voto em mulher por ser mulher. Sou contra essa lógica. Votei na Dilma pelo que ela representa com uma caneta na mão, não porque ela usa saia”
Sul21 – A senhora acredita que o aumento no número de mulheres nos partidos e na política, garantiu uma participação qualificada?
Miguelina Vecchio – Eu não voto em mulher por ser mulher. Sou contra essa lógica, que acaba colando muito em época eleitoral. Eu não votei na Yeda Crusius (PSDB), que é contra a licença-maternidade. E votei na Dilma Rousseff pelo que ela representa com uma caneta na mão. Por tudo que ela passou e a trajetória que ela construiu. Não votei nela porque ela usa saia.
Sul21 – E por ela ter sido do teu partido, o PDT.
Miguelina Vecchio – Não posso dizer que isso não teve nada a ver. Mas ela ter sido do PDT contribuiu para que eu a conhecesse. Meu voto é fruto de uma convivência. Eu trabalhei 15 anos com o marido dela (Carlos Araújo). Frequentava a casa deles. Isso me fez conhecê-la bem. Ela tem um temperamento terrível, mas é extremamente solidária. Eu sei que ela jamais trairia a causa das mulheres e dos trabalhadores. Eu dei meu voto consciente. O meu partido mandou eu votar na Yeda e eu votei no Olívio Dutra (PT). Claro que eu não fui para a televisão fazer campanha contrária. Mesmo porque sou dirigente nacional do PDT, na época era secretária geral do partido no Rio Grande do Sul. Mas fui lá, quietinha, votei no 13 e fui para minha casa. O meu voto é meu. Partido tira suas orientações, mas eu tinha as minhas razões. O Olívio fez a Coordenadoria Estadual da Mulher, reativado ainda na gestão do Alceu Collares (PDT). O meu voto foi de gênero. Mas não adianta votar em mulher para ampliar o número de mulheres no Congresso Nacional, se não fazem nenhuma política pública de gênero.
Sul21 – A senhora considera equilibrado o espaço de mulheres nos governos federal e gaúcho?
Miguelina Vecchio – No caso do governo Tarso, ele ofereceu três secretarias para o PDT e o meu partido preencheu todas com homens. Do PT tem mais de uma mulher. O PCdoB preencheu as duas vagas no primeiro escalão com mulheres. A discussão deve ser feita dentro dos partidos. Porque o PDT escolheu apenas homens. Neste caso, o governador está isento desta discussão. A Dilma Rousseff também tem que ser isenta desta discussão, porque honrou a indicação de gênero. O núcleo central do governo é comandado por mulheres e os partidos também apresentaram mulheres. O PT apresentou várias. O PDT acabou apresentando só um homem, porque era apenas um ministério. Já o PMDB tem sete pastas e não colocou nenhuma mulher. Mas é importante salientar que as mulheres não querem o lugar que é dos homens, nós queremos o lugar que também pode ser ocupado por mulheres. A maioria dos homens é que não sabe conviver com esta ideia. Nós somos maioria no Brasil, queremos o lugar que é nosso. A população é metade de um gênero e metade de outro.
Sul21 – Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nesta eleição a participação feminina no pleito para as câmaras municipais pode ser alcançada conforme exigência da lei. Mas sabemos que existem dificuldades no preenchimento destas vagas, devido a utilização de candidatas laranjas. A senhora é a favor das cotas para mulheres?
Miguelina Vecchio – Vão cumprir e constituir um laranjal dos mais profissionais. Falarei sobre esta questão apenas dentro do escopo do meu partido, não quero arranjar conflito, mesmo porque eu não ensino ninguém a fazer nada. Dentro do PDT nós temos uma posição retirada de um processo de ampla discussão com as mulheres, que é quem deve resolver este assunto, de que nós mesmas vamos denunciar a laranjas. Enquanto nós aceitarmos as laranjas, nós não vamos forçar os homens a qualificar os quadros femininos a concorrer. Nem mesmo dar visibilidade para que os quadros possam concorrer daqui quatro anos. Eles sempre vão se valer das laranjas. Eu fiz uma solicitação de audiência com a ministra Carmem Lúcia (TSE). Eu quero saber qual a punição que as laranjas vão ter. Se existe estelionatária, sabendo que não vão são candidatas e vão fazer cinco votos, tem que ser responsabilizada penalmente por isso. O partido tem que qualificar os quadros femininos. Eles que dividam as estruturas do partido em meio a meio para habilitar as mulheres a concorrer. Queremos combater este tipo de prática (candidaturas laranjas) no meu partido. Sabemos que este enfrentamento será horrível na relação com os dirigentes homens, mas não tem problema. O pior é ver mulheres candidatas suando a camiseta porque acreditam que conseguirão alcançar um mandato, e do outro lado ver outras dizendo que estão ali porque o fulano de tal mandou, para não reduzir a cota dos homens. Pois que diminuam. Não tem mulher, diminua o número de homens. Ou será que vamos ter que continuar enchendo lista para eles elegerem?
Sul21 – Então, o problema não é a lei, é como o ambiente majoritariamente masculino dos partidos a aplica?
Miguelina Vecchio – O problema é que tem mulher que se presta a este papel. Não vou nem qualificar como “prostituta eleitoral” porque seria uma ofensa às profissionais do sexo. Então eu vou insistir na audiência com a ministra Carmem Lúcia, que eu imagino que esteja bastante ocupada agora, mas eu vou aguardar para que ela me diga o que o TSE vai fazer quando abrir as urnas e ver que dois terços das listas são compostos por um laranjal. Se ela irá sugerir que se faça uma fábrica de suco ou fazer algo com isso. Não é possível não fazer nada. Isto é estelionato. É por estas e outras que eu sou a favor do voto em lista. Tem que se votar no partido. O partido que trabalhe para diversificar a lista de candidatos.
“Se as pessoas entendessem que nenhuma feminista quer o aborto como prática já seria um ganho. O que queremos é não precisar fazê-lo”
Sul21 – No Novo Código Penal será possível a interrupção da gravidez até a 12ª semana mediante incapacidade emocional ou psicológica. Para as feministas, ainda não é o ideal porque não traz a autonomia da mulher como princípio e ainda dependerá da autorização de terceiros. Qual a sua opinião?
Miguelina Vecchio – No Congresso Nacional fizeram uma CPI do Aborto. Agora, há notícia de algum caso de mulher famosa ou com sobrenome importante que praticou aborto em um hospital e depois viajou para Paris? Não. Ninguém sabe se essas pessoas fazem aborto. Eu quero saber como fica a situação das mulheres brasileiras que não têm condições de pagar clínicas ou hospitais e se introjetam agulhas de tricô ou fazem outros métodos para interromper a gravidez. Com essa CPI só vão prender pobres e negras. O país tem que parar com a hipocrisia. Eu fui excomungada na República Dominicana quando defendi o artigo 30 da Constituição dominicana. A organização de mulheres dominicanas convidou três mulheres no mundo para fazer a defesa, eu fui uma. A igreja dominicana é dez vezes mais reacionária que a nossa, se é que isso é possível, mas eu disse: ‘Os padres que cuidem dos seus pedófilos e deixem que o nosso útero a gente cuida’.
Sul21- Em termos de América Latina, como está avançando o tema do aborto?
Miguelina Vecchio – Há um processo latino-americano de recuo no tema do aborto. O Tabaré Vasquez, que foi eleito pela Frente Ampla, que era do campo da esquerda e meu colega na Internacional Socialista, vetou a proposta aprovada no Congresso. A pior parte, que é passar pelo Congresso, foi vencida — e ele vetou. Já o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, revoga o aborto terapêutico. Pela primeira vez no Brasil, aqui em Porto Alegre, mostrei um estudo sobre a redução da mortalidade materna no mundo nos países onde o aborto é descriminalizado ou legalizado. Reduz a quase zero. E no final ainda exibi um filme em que os homens se emocionaram. Eu quis mudar como é dura a realidade que eles (homens) decidem sobre os nossos corpos. Se o aborto fosse no corpo do homem este assunto estava resolvido há anos. Na verdade, se as pessoas entendessem que nenhuma feminista quer o aborto como prática já seria um ganho. O que queremos é não precisar fazê-lo. É uma agressão para quem faz. O problema é quando já se fez. O que fazer? Deixar morrendo no fundo do quintal?
Sul21 – A senhora é a favor de descriminalização ou legalização do aborto?
Miguelina Vecchio – Eu sou a favor do aborto amplo. Até a 14ª semana a mulher pode ter o direito de optar em manter ou não a gravidez. Eu sou uma pessoa que defende isso em qualquer palanque. Quando eu fui candidata a deputada federal eu defendi o aborto durante a campanha. Me orientaram que eu perderia votos. Eu disse: lamento. Não vou defender algo que não acredito ou prometer algo que não foi fazer depois, como muitos fazem. Nas eleições municipais este assunto não é pautado. Mas a minha orientação dentro do PDT é que as candidatas mulheres tenham no mínimo coerência de defender ao menos a descriminalização. Mas a minha opinião eu compartilho, que é ser a favor do aborto amplo.
Sul21 – Como mudar a influência da igreja no Estado para vivermos o estado laico de fato?
Miguelina Vecchio – É complicado. Há uma série de contradições. Eu sou totalmente contra esta imposição da igreja e com este argumento de religiosidade para encarar este tema. Eu não digo isso porque não acredito em Deus. Mas eu não concordo em sustentar a instituição igreja. Sou a favor da fé e da religiosidade, com tolerância e respeito. Agora, a interferência da igreja no estado é retrocesso.
Sul21 – O Código Penal de 1940, ainda em vigor, determina “categorias de mulheres” que podem sofrer crimes sexuais, o que foi adequado agora na reforma do Novo Código. Começamos a reparar alguns desequilíbrios do sistema judiciário para garantia dos direitos que contribuam para igualdade de gênero?
Miguelina Vecchio – Isso era absurdo. Ainda existe outro absurdo no Código Penal, que na reforma proposta pelos juristas vai mudar, que é não considerar sexo anal e oral como estupro. No texto antigo, penetração no ânus é atentado violento ao pudor. Mas o novo texto ainda passará por aprovação. Apesar de a pena ser a mesma, a densidade do fato social não é. Não podemos desconsiderar o trauma psicológico da vítima. Quando tira-se a palavra estupro, há uma diminuição do que foi feito. Foi estupro igual. Quando começou a surgir as delegacias de mulheres, as feministas imaginaram que estas compreensões começariam a ser assimiladas, mas não foi bem assim. Imaginávamos, quando lutávamos por mais delegacias, que o fato de termos delegadas mulheres resolveria os problemas. Mas não, é preciso capacitação até para as profissionais do nosso gênero para não que não reproduzam preconceito. Não são apenas os homens que dizem que o estupro ocorreu porque a mulher estava de saia e andando sozinha à noite. Mas a emancipação da mulher tem um binômio: educação e trabalho. Ninguém pode se dizer emancipada se pede dinheiro para o homem até para o absorvente. Então, a busca pelo ensino é fundamental para conquistar trabalho. E sem trabalho, é difícil de emancipar-se. A falta de oportunidade acaba contribuindo para a mulher se anular. A responsabilidade com os filhos e tudo mais. Não importa quantos anos as mulheres têm, elas devem buscar motivação para estudar e ter alguma formação. Pode levar 20 anos de curso, não tem problema. Pode ser uma técnica em serviços gerais. Não importa. As pessoas têm que compreender que a escola é o lugar ideal para se viver. É lá que desconstituímos preconceitos e que olhamos para os diferentes como iguais. Só que, para alcançarmos esta compreensão, precisamos trabalhar muito na mudança de cultura da sociedade brasileira. Uma sociedade que é velha e quer ser jovem, que é gorda e quer ser magra e é negra e quer ser branca.
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