no OPERAMUNDI
Banda punk russa inspira, de maneira indireta, a luta pelos direitos das mulheres no Oriente Médio
Um grupo de mulheres vestidas de burca deixou seus trajes e véus por
vestidos de cores vivas e balaclavas (gorros de lã), e fizeram seu
caminho para a Masjid al Haram (a mesquita sagrada de Meca). Em num
gesto que desafiou o sistema estabelecido na Arábia Saudita e a
hierarquia clérico-patriarcal, as mulheres explodiram em um coro de
nasheeds (canção de louvor religiosa típica do islamismo), invocando a
Virgem Maria para abençoar sua cruzada feminista e amaldiçoar a elite
religiosa do país por estar em conluio com o príncipe herdeiro Abdullah.
O firme controle da ortodoxia religiosa exclui a possibilidade de
qualquer repetição das Pussy Riot em solo árabe. Mesmo murmúrios de um
golpe de inspiração feminista encenando um espetáculo provocador em um
local santo levaria a mutaween (polícia religiosa da Arábia Saudita) e a
Gestapo religiosa a agir, e provavelmente representaria a sentença de
morte para os direitos das mulheres.
Mas
para as socialmente imóveis e culturalmente policiadas mulheres do
mundo árabe, a histeria em torno do Pussy Riot pode ser uma lição na
política da dissidência. A rápida emergência do mundo para os árabes já
sugere que os tradicionais pontos de vista sobre as mulheres não
condizem mais com os fatos. Se as Pussy Riot foram a prova de que uma
performance amadora feita por um grupo feminista entusiasmado pode
assumir rapidamente dimensões internacionais, o que impede um pequeno
grupo de feministas árabes de fazer algo semelhante?
[Ao lado, charge do cartunista brasileiro Carlos Latuff em apoio ao movimento Women2Drive]
[Ao lado, charge do cartunista brasileiro Carlos Latuff em apoio ao movimento Women2Drive]
Claro, há perigo em exagerar no otimismo. O rascunho constitucional da
Tunísia é um caso recente no qual as definições da condição feminina
permanecem fixas, a julgar pelo texto que diz que as mulheres seriam
“complementares” aos homens. No Egito, a luta das mulheres para
participar na proposta da Constituição ressalta a complicada interação
entre política, gênero e religião.
Os avanços que as mulheres tiveram nos últimos anos retrocederam. As
legislaturas recém-eleitas nesses países são ambíguas quanto à
possibilidade de ascensão social das mulheres no cenário pós-revolução.
Portanto, a visão de que as liberdades adquiridas são, por excelência,
garantidoras dos direitos das mulheres, está repleta de falhas.
Mas o canto entusiasmado e vívido das mulheres árabes sobre um novo
futuro será inspirado pelo episódio da banda Pussy Riot, assim como os
manifestantes da Praça Tahrir serviram de modelo para a revolução. Ao
energicamente redesenhar as linhas de batalha e garantir que o futuro
dos direitos das mulheres não seja limitado pela inércia, elas também
podem aproveitar a dinâmica das recentes fissuras políticas obtidas em
seu país.
Tanto na sociedade russa quanto na árabe, as mulheres lamentam o
estrangulamento da sociedade civil e como os seus direitos foram
tornados reféns de um grupo político tirânico, trazendo pequenos, mas
totalitários estragos em seu rastro. As frustrações de muitas dessas
mulheres dialogam diretamente com uma consciência política que busca
minar um ethos condescendente masculino que domina as relações de poder
atuais e colocar o engajamento cívico das mulheres na linha de frente.
Ao abrir um precedente para as mulheres russas exporem as
irracionalidades do status quo, as manifestantes do Pussy Riot podem ter
involuntariamente se juntado a uma classe simbólica a qual pertencem as
amarguradas mulheres árabes, cujo desejo de derrubar totalmente o
discurso de gênero predominante compartilha a mesma lógica e
causalidade. As Pussy Riot desafiaram a tirania política das elites e
podem materializar um contágio cultural em redutos árabes.
O encanto por trás da revolta do trio do Pussy Riot é que ele transcende os limites estreitos da inquietação feminista e ressoa com o drama das mulheres árabes, a quem é dado pouco espaço de manobra para agir no contexto da revolução. Para aquelas injustamente forçadas a engolir as armadilhas da sua feminilidade, renegociar o campo de jogo religioso usando reivindicações de gênero como uma moeda de troca poderia passar um sentimento de euforia aos marginalizados pelo Estado.
Se você é uma mulher líbia sonhando com cargos públicos, uma saudita
pressionando por sufrágio ou, como uma Pussy Riot clamando para desafiar
o discurso totalitário de um estado opressor, é difícil não ser
romanticamente conquistado pelo feito notável das russas. O mais difícil
é os governos suprimirem uma ideia cujo tempo chegou e novas formas de
dissidência que rapidamente são difundidas.
A conjuntura do mundo árabe está madura para esse tipo de política
não-conformista. O estrangulamento de Putin sobre as liberdades
democráticas espelha a sufocante natureza tirana dos governos árabes. O
conluio entre a Igreja Ortodoxa Russa e o Kremlin ecoa a aparentemente
inquebrável relação Estado-clero em países como o Egito, onde o governo
bajulador dos imãs da Universidade Al Azhar, a sede intelectual do islã
sunita, preserva a política do privilégio.
Excede no mundo muçulmano uma burocracia religiosa avarenta que
sustenta uma administração fragilizada e as mulheres são frequentemente
as primeiras a sofrerem nesse cenário, no qual centros clericais
financiados pelo Estado são propagadores de sexismo e fazem apologia à
regressão das conquistas feministas.
A possibilidade das meninas árabes serem as primeiras beneficiadas pela
tendência iniciada pelas Pussy Riots e demonstrarem que a sua
autoridade deriva não de aderir a tradições, mas de expandir os limites
de sua aceitação, pode acrescentar uma nova força à Primavera Árabe.
Aproxima-se uma época na qual vozes marginais contribuirão para a
agitação política e pontos de vista sobre a dissidência se tornarão
menos uniformes e padronizados, gerando um cenário propício para a
luta-chave pelo poder.
Em sociedades onde a dissidência feminina se originou da raiva contra o
tipo de patrimonialismo que brutaliza as mulheres, tentativas de
oprimir outras pessoas sob o jugo da tradição serão percebidas como uma
expressão anormal de individualidade. Contudo, a Primavera Árabe e as
Pussy Riot revelam desvantagens comuns entre as mulheres e provocam
perguntas incômodas sobre gritos agudos de uma comunidade sem voz que
busca nada mais que um justo fim da dominação.
Hasnet Laís é escritora e colunista do Muslim Post. Texto original do Open Democracy e publicado em português pelo blog Outras Palavras. Tradução de Natália Mazotte.
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