Os
jornais de todo o Brasil, desde a publicação dos índices do IDEB -
Índice de Desenvolvimento do Ensino Básico -, divulgam que a educação
pública, em nível médio, precisa passar por uma reforma e o Governo
Federal já anunciou que a “reforma” sairá do papel. Não há dúvidas que
existe um projeto a ser implementado e praticamente todas as esferas do
poder estão caminhando juntas. São mudanças na estrutura do ensino e
cabe aos sindicatos, às entidades estudantis e à sociedade organizada
alertar a população da armadilha que está sendo preparada.
No
início deste ano, o Conselho Nacional de Educação em sua Resolução de
número 2, de 30 de janeiro, publicou no Diário Oficial da União as
"Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio". Já em maio de
2012 a Câmara dos Deputados constituiu uma "Comissão Especial Destinada a
Promover Estudos e Proposições para a Reformulação do Ensino Médio". Em
17 de agosto no programa de rádio Hora da Educação, após a
divulgação dos índices do IDEB, o ministro da Educação Aloizio
Mercadante, afirma que “Precisamos de um novo currículo, mais flexível,
menos fragmentado, tirando um pouco dessa sobrecarga de disciplinas”.
Ainda em agosto o grupo RBS lança a campanha institucional com o slogan
"A Educação Precisa de Respostas" e no painel promovido, ao vivo para
todo o sul do país, "especialistas", governadores e o ministro,
reafirmaram que a reformulação do Ensino Médio e a flexibilização da
grade curricular são a prioridade. O projeto deve ser implantado a
partir de 2013.
O que significa reformular o ensino médio? Qual a
relação da flexibilização da grade curricular com a vida dos jovens e
professores brasileiros?
Para o Ministro da Educação Aloizio Mercadante é preciso colocar em prática a Resolução 2 do CNE/CEB[1], que é por si só, observemos, por demais esclarecedora.
A
Resolução 2 está organizada em 23 artigos, vários subtítulos e dezenas
de incisos, numa linguagem que, quando olhada superficialmente, agrada
muitos desavisados de boas intenções. Como explica o estudioso francês
Michel Éliard em seu livro “O Fim da Escola’, vivemos momentos de
extrema confusão social que têm efeitos devastadores sobre a linguagem.
Certos termos que desde a Revolução Francesa expressaram os elementos
essenciais da democracia, hoje são considerados obsoletos. Falar de
igualdade republicana dos direitos não está na moda. A moda é a
diferença, o pluralismo, o multiculturalismo, a equidade. O universal
“não está na moda”. A falada Resolução nº 2 cumpre exatamente o papel de
estar na moda e, portanto, é o desmonte daquela ideia de igualdade para
todos. Vale ressaltar que a Resolução n. 2 elimina da sua linguagem
qualquer resquício da igualdade republicana que ainda era mantida na
Resolução 3 de 26 de junho de 1998, que esteve vigente até a data da
publicação desta de n. 2.
Pode-se dizer que as Diretrizes que compõem a Resolução n. 2 estão fundamentadas em três grandes eixos:
· A divisão do Ensino Médio em áreas de conhecimento, através da flexibilização do currículo escolar;
· A integração entre mundo do trabalho e escola;
· O Financiamento da educação privada, ao invés da educação pública.
1. Áreas de conhecimento
A
nova proposta educacional prevê que o currículo tenha uma parte comum e
a outra flexível. Esta ideia já constava na LDB e na Resolução de 1998.
Todavia, a Resolução n. 3 de 1998 era muito clara quando afirmava em
seu inciso II do art. 11 que “a base nacional comum deverá
compreender, pelo menos, 75% (setenta e cinco por cento) do tempo mínimo
de 2.400 (duas mil e quatrocentas) horas, estabelecido pela lei como
carga horária para o ensino médio”. Já a Resolução 2 não trata de
números, apenas autoriza a flexibilização. Na Resolução 2, a única
“garantia” é que será levada em conta a diversidade, as características
locais e especificidades regionais.
Diante disto, a proposta é que
o currículo seja organizado em áreas de conhecimento: Linguagem;
Matemática; Ciências da Natureza e Ciências Humanas.
Vários
estados e municípios já passaram por experiências aproximadas, pois a
LDB já autorizava que uma pequena parte do currículo fosse flexível.
Muitos estados fizeram o experimento. Para exemplificar o assunto,
retoma-se a primeira década do século XXI, quando o Estado de Santa
Catarina colocou no currículo do Ensino Médio a disciplina NRHE (Noções
de Relações Humanas e Ética). Para a seleção dos profissionais que
atuaram na área, não foi necessário concurso público, pois a disciplina
se enquadrava na parte flexível, ou seja, era uma experiência. Os
professores que ministraram esta disciplina tinham formações variadas:
sociologia, direito, cursos técnicos, magistério. Alguns anos depois, o
estado eliminou a matéria e passou uma borracha no assunto. Quando
eliminada não deixou rastros. Os trabalhadores que ministraram aquela
disciplina foram eliminados dos quadros do serviço do estado e
finalizou-se o assunto.
Este modelo, conforme a Resolução 2 deve
ser aplicado em todo o país. Cada governo, escola, ou até mesmo a
comunidade deve decidir o que fazer com seus currículos, a maior parte
da grade será flexível e, portanto, a escola passa a ser um grande
experimento.
Outra consideração a ser feita diz respeito ao que
será contemplado em cada área de conhecimento. Pela Resolução, na área
de conhecimento intitulada linguagem, por exemplo, entender-se-á:
“Parágrafo
único. Em termos operacionais, os componentes curriculares obrigatórios
decorrentes da LDB que integram as áreas de conhecimento são os
referentes a:
I - Linguagens:
a) Língua Portuguesa;
b) Língua Materna, para populações indígenas;
c) Língua Estrangeira moderna;
d) Arte, em suas diferentes linguagens: cênicas, plásticas e, obrigatoriamente, a musical;
e) Educação Física.”
O
parágrafo único significa que havendo uma aula semanal de Língua
Portuguesa, uma de Língua Materna, uma de Língua Estrangeira moderna,
uma de Arte e uma de educação física, o estudante cumpriu o que se chama
de currículo comum, o educando teve quatro aulas de “linguagem” por
semana. Ou seja, existe aqui uma diminuição espantosa de conteúdo e uma
redução gigante da carga horária dos professores efetivos concursados
para as disciplina específicas. Um retrocesso de décadas para a educação
pública do país.
Uma farsa educacional que colocará em risco a
formação de milhões de jovens em todo o país e o emprego de milhares de
professores.
2. Escola e trabalho
Neste
item é necessário primeiro esclarecer que nenhuma proposta educacional,
atual, tem como fundamento a formação profissional para o trabalho.
Pelo contrário, as novas legislações educacionais têm por objetivo
adequar a escola ao novo mundo do trabalho, ou melhor, ao antigo mundo
do trabalho, aquele do século XIX, onde a jornada era de 14h diárias e
as crianças trabalhavam. Por isso, os estudantes do ensino médio não
precisam mais ter conhecimento, precisam apenas permanecer na escola e
transformarem-se em mão de obra barata por mais tempo. Tal afirmação
está fundamentada, em especial, em dois itens da Resolução 2.
“Art. 14 (...)
IV
- no Ensino Médio regular noturno, adequado às condições de
trabalhadores, respeitados os mínimos de duração e de carga horária, o
projeto político-pedagógico deve atender, com qualidade, a sua
singularidade, especificando uma organização curricular e metodológica
diferenciada, e pode, para garantir a permanência e o sucesso destes
estudantes:
a) ampliar a duração do curso para mais de 3 (três) anos, com menor carga horária diária e anual, garantido o mínimo total de 2.400 (duas mil e quatrocentas) horas;”
...
IX - os componentes curriculares devem propiciar a apropriação de conceitos e categorias básicas, e não o acúmulo de informações e conhecimentos, estabelecendo um conjunto necessário de saberes integrados e significativos;” (grifos meus)
Ou
seja, nossos jovens trabalhadores poderão concluir o Ensino Médio, não
mais em 3 anos, mas em quantos anos forem necessários para agradar o
mundo do trabalho, tendo como única condição a carga horária. Até
porque, como afirma a nova diretriz, a escola não deve ser um ambiente
de acúmulo de conhecimento. Ao que parece, a escola deve se transformar
em um depósito de jovens.
3. Financiamento da Educação
Segundo
o Censo da Educação Superior 2010, o Ensino Superior Privado subiu sua
representação de 68,9% em 2008 para 74,2% em 2010, ou seja, o Ensino
Superior público (federal, estadual e municipal) caiu de 31,1% para
25,8%, dado assustador que revela qual o caminho da educação pública no
Brasil. Com a reforma do Ensino Médio o governo federal, apoiado por
todos os governos estaduais e municipais pretende diminuir o custo da
educação pública e ampliar o incentivo ao Ensino Superior Privado.
A fórmula é simples, reduz-se o custo do Ensino Médio público, aplica-se o Enem[2]
e se distribui bolsas de estudos para que os alunos estudem em qualquer
faculdade privada de fundo de quintal do país. Uma ação que atende aos
interesses do mercado e que destrói o ensino público a cada dia.
É
preciso enfatizar que a Resolução 2, no que diz respeito ao
financiamento do Ensino Médio, reafirma e enfatiza a ideia de autonomia
da gestão escolar, ou seja, aquela ideia vigente de que não são os
governos que devem sustentar as escolas, mas sim as comunidades. Para
isso se dá o nome de democratização da Educação.
Por fim, o que
está em jogo no que se intitulou Reforma do Ensino Médio, através da
Resolução 2 do CNE/CEB, é o papel que a história destinou à escola.
Isto é, a conquista da igualdade de direitos para que todos, sejam
pobres ou ricos, tenham acesso à educação pública, gratuita e laica. O
direito histórico de acesso ao conhecimento que a humanidade acumulou
durante milênios e que, durante muito tempo, era guardado para uma
casta. Como afirma Éliard, em livre tradução, “defender o que existe é
preparar o futuro. Ao contrário dos vastos programas ditos de refundação
da escola, do primário ao superior, que escondem a destruição do
edifício”.
Como já dito, é preciso que educadores, sindicatos de
trabalhadores, estudantes e outras instituições ligadas ao tema tomem
conta do assunto e levantem o debate em nível nacional, para lutar não
em nome de uma modernidade vazia, mas de uma educação que continue a
desenvolver o conhecimento e prepare os jovens para novos desafios.
Um comentário:
Assustador. Vou postar no face pra ver que discussão sai, se é que sai. Ainda tenho que reler e pensar mais, mas quero ver se encaminho para a lista do GT de Ensino de História da ANPUH (Associação Nacional dos Professores de História), que está discutindo esse tema.
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