Milton Ribeiro no SUL21
A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É
com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade
nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o
que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua
origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas
por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter
sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a
literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores
— Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam
numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos,
nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há
poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição
e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar
pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.
No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia
Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a
industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa.
Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram
concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São
Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de
aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e
eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem
receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um
ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o
nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de
dezembro de 1922.
Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano,
um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que
viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de
Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da
missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar
uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como
redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência
médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi
dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros
trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo
Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma
série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses,
marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do
exército.
Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do
exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia,
que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a
Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo
grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande
conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu
pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou
enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de
greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de
conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se
intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas
de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando
início à Revolução Russa.
A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que
derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu
lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na
qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução
Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e
foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução
de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela
criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o
Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o
Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia,
acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa
de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação,
realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do
socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo
capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).
O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar,
em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5
milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção
da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial,
e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra
Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a
situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a
população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às
ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio.
(Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de
criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao
lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e
que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).
Vitorioso, Lênin criou o NEP, um plano econômico que visava reerguer a
produtividade nacional e normalizar a economia. Em 1922, diversas
repúblicas asiáticas e europeias agregaram-se à Rússia, originando a
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Não era, evidentemente, o ambiente ideal para a criação de um estado
democrático aos moldes da eterna receita dos EUA. O país vinha de uma
guerra civil, tinha oposição interna e externa, havia outros regimes
fortes quilômetros depois das fronteiras, um histórico recente de
conflitos, grande parte da população era saudosa de seu paizinho (o
czar) e, fundamental e principalmente, não tinha nenhuma tradição
democrática. Aliás, não tem até hoje, mesmo sob o governo eleito de
Putin.
Depois desta época, a história é mais conhecida. Lênin morreu em 1924
e seu lugar foi ocupado por Stálin de 1927 a 1953. Com mão de ferro e
utilizando-se dos gulags e de expurgos a fim de aniquilar seus
opositores dentro e fora do Partido Comunista, Stálin fez avançar o país
na direção da industrialização e do desenvolvimento. Antes dos anos 30,
os artistas russos que não eram contra-revolucionários gozaram de
relativa liberdade. Apesar dos frequentes embates com a burocracia, Vladimir Maiakovskie
seu futurismo deram digna sequência à tradição russa. Maiakovski
suicidou-se em 1930, mas o fato não parece ter relação coma política ou a
censura. Desta forma, ele não conheceu Jdanov.
Nos anos 30, os artistas e escritores russos depararam-se com um
gênero de censura inteiramente diferente do que era conhecido até ali.
Stálin, apesar da imagem que foi criada no Ocidente, era um fino
apreciador da música erudita e muitas vezes dava palpites estéticos
diretamente a compositores como Shostakovich, Prokofiev e Khachaturian.
Em seu governo surgiu Andrei Jdanov, que tornou-se dirigente do PCUS
em 1934 após o expurgo (assassinato) de Kírov. Jdanov foi o criador do
Realismo Socialista nas artes. Na verdade, o Realismo Socialista tinha
parâmetros políticos e estéticos inapreensíveis. Seus critérios eram
metade artísticos, metade geopolíticos. A definição do Realismo
Socialista era algo apenas claro na arquitetura. O restante escapava aos
autores do país, que tinham sempre dificuldades de se adequarem a ele.
Aparentemente, o jdanovismo começou com a ópera de Shostakovich Lady Macbeth de Mtsensk, baseada numa novela de Leskov. Stálin, sempre criativo com as palavras, qualificou-a de pornofonia,
e então os artistas descobriram que sexo era algo a evitar. As regras
do que seria ou não censurado dependiam muito da circunstância política e
das posturas de cada artista. Nem a estrondosa e heroica vitória na
Segunda Guerra Mundial afrouxou a censura.
Serguei Eisenstein foi o cineasta que criou obras-primas como A Greve, O Encouraçado Potemkin, Que Viva México! (inacabado) e Aleksandr Nevski. Assim como o jovem Shostakovich, era um dos meninos de ouro do PCUS. Porém, após o extraordinário sucesso do Potemkin,
o cineasta foi contratado pela MGM norte-americana. Quando voltou, o
partido e a imprensa não perdoaram sua aventura capitalista. Sinal de
que não se podia viajar para produzir fora da URSS.
Viajante e cosmopolita era Igor Stravinsky, que já
estava na França desde os anos 10. Ele apenas voltou ao país para curtas
visitas, sabedor dos problemas que teria para produzir na URSS. Quem
retirou-se do país em 1919 para nunca mais voltar foi Vladimir Nabokov, escritor nascido no seio de uma família da antiga aristocracia. Mais fiel às origens foi Serguei Prokofiev,
nascido em 1891. Em 1918, vendo que o ambiente não era o melhor para um
compositor experimental, foi morar nos EUA. Poucos anos depois, passou à
Suíça e finalizou sua aproximação da URSS em 1935. Em quase parceria
com Eisenstein, fez Alexandr Nevski, filme que talvez seja um dos mais
felizes casamentos entre imagem e música. Morreu em 1953.
O escritor Mikhail Bulgákov sofreu muito mais.
Adversário do regime, chegou a alistar-se no Exército Branco. Finalizada
a Guerra Civil, Stálin proibiu-o de emigrar ou de visitar seus irmãos
em Paris. Bulgákov nunca apoiou o regime e o ridicularizou em seus
trabalhos. Por essa razão, muitos deles ficaram inéditos por décadas. Em
1930, escreve uma carta a Stálin pedindo permissão para emigrar, já que
a União Soviética lhe oferecia oportunidades. Como resposta, recebeu
uma ligação do próprio Stálin, negando seu pedido e oferecendo-lhe
trabalho no teatro. Stálin não costumava mandar recados. A obra-prima de
Bulgákov, o monumental romance O Mestre e Margarida, escrito entre 1928 e 1940, foi publicado pela primeira vez apenas em 1966.
O imenso compositor Dmitri Shostakovich (1906-1975)
sofreu ainda mais. Como qualquer autor de obras sinfônicas, dependia de
orquestras e teatros; ou seja, do estado. Sua vida foi infernal: herói
do regime e compositor nacional até 1934, caiu em desgraça pela citada
ópera baseada em Leskov. Foi recuperado durante a Segunda Guerra Mundial
para cair novamente em desgraça após Stálin dar-se conta — com toda a
razão — de que sua Nona Sinfonia e outras composições eram notáveis e
imortais peças do mais puro sarcasmo… ao stalinismo. Shostakovich
considerava-se um sincero comunista e, mesmo quando não se tratava de
encomendas, produzia peças em homenagem à Revolução Russa. Apesar de
genial, nunca entendeu os critérios do Realismo Socialista.
Sob a vaga acusação de “excessivo subjetivismo”, o poeta e romancista Boris Pasternak passou
a ter dificuldades em publicar seus livros nos anos 30. Sua situação é
curiosa: na Rússia, é mais conhecido como poeta do que romancista, em
virtude de o livro Doutor Jivagoter sido censurado na antiga
União Soviética. O personagem principal do romance é, justamente, um
poeta que tem problemas com as autoridades soviéticas, embora
simpatizante da causa. Em 1958, Pasternak recebeu o Nobel de Literatura,
mas não foi autorizado a recebê-lo.
Alexander Soljenítsin foi um ferrenho adversário do PCUS. Seus livros foram absolutamente proibidos, mas circulavam através do samizdat. O samizdatera
uma ação coletiva na qual indivíduos e grupos de pessoas copiavam e
distribuíam clandestinamente livros e outros bens culturais proibidos
pelo governo. Soljenítsin escreveu extensa obra, toda ela antissoviética
e de pouco valor artístico. Quando foi expulso do país, em 1974,
soube-se de suas ideias políticas, que propunham um estado religioso. O
golpe fatal em sua obra veio de quem mais o apoiara quando estava na
URSS, os EUA: ao escrever sobre o absoluto protagonismo dos judeus
russos no Partido Comunista e na polícia secreta soviética, foi tachado
de antissemita e desmoralizado no exílio. Morreu em Moscou.
Desde seu primeiro longa metragem — o estupendo Andrei Rublev — , o cineasta Andrei Tarkovski teve
problemas com a burocracia. O filme, de 1966, foi apresentado no
Festival de Cannes de 1969, fora de competição, e teve sua estreia na
União Soviética somente em 1971, com cortes. Todos os seus trabalhos
subsequentes, apesar de respeitadíssimos, foram prejudicados pela
censura. Profundamente ressentido com o controle exercido sobre o seu
trabalho, Tarkovski decidiu sair da URSS em 1983. Além de seus filmes
sempre excelentes, Tarkovski deixou-nos o livro Esculpir o Tempo, obra essencial a todos os amantes do cinema.
Ainda temos outros grandes autores que comprovam a continuidade da tradição russa mesmo sob a censura. O que dizer da poetisa Anna Akhmátova e de escritores como Isaac Babel e Máximo Gorki,
que tornaram-se inimigos pelo fato do primeiro combater e o segundo
apoiar o governo da URSS? Melhor finalizar mostrando que, na atual
Rússia de Putin, pouco mudou, como mostra o irônico e triste filme russo
Minha felicidade. Mais provas? O fato da classe artística
russa ter silenciado sobre a decretação de prisão do grupo feminino
Pussy Riot. Não gostavam das meninas? Não, nada disso, é que as maiores
estrelas do país tentam não se desentender com o presidente Vladimir
Putin para não pôr em risco sua principal fonte de renda: os shows
particulares para os super-ricos, que pagam muito bem. Ou seja, a
censura tem várias formas: aqui, por exemplo, temos a censura ao Pussy
Riot e a autocensura dos colegas.
Um comentário:
Texto Formidável. Parabéns.
Destaque para o terho: "Não era, evidentemente, o ambiente ideal para a criação de um estado democrático aos moldes da eterna receita dos EUA. O país vinha de uma guerra civil, tinha oposição interna e externa, havia outros regimes fortes quilômetros depois das fronteiras, um histórico recente de conflitos, grande parte da população era saudosa de seu paizinho (o czar) e, fundamental e principalmente, não tinha nenhuma tradição democrática. Aliás, não tem até hoje, mesmo sob o governo eleito de Putin."
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