Rachel Duarte no SUL21
Esperança, Solidariedade e Fé. Talvez em poucos lugares estas
palavras, comuns em época de Natal, façam tanto sentido quanto no local
onde adolescentes em conflito com a lei vivem privados de liberdade. No
mundo à margem das festas com ceias fartas e troca de presentes, jovens
entre 12 e 18 anos acabam confrontados de forma solitária com o reflexo
do que fizeram na rua. Para alguns internos da Fundação de Atendimento
Sócio Educativo (Fase-RS) o Natal é também a única oportunidade de uma
reunião em família. Antes da internação, a data era mais uma
oportunidade para farras, álcool, drogas e quem sabe mais um crime.
Os mais de 800 adolescentes da Fase-RS convivem diariamente com a
possibilidade de uma renovação das esperanças de poder voltar para casa e
com a ansiedade de retomar a vida que tinham antes da internação. É na
época do Natal, como para muitas pessoas que vivem em liberdade, que as
emoções ficam afloradas. “Eles ficam muito sensíveis. Alguns ficam mais
quietos do que o habitual. Outros se agitam mais e ficam muito ansiosos.
Na noite de Natal é comum ao apagar das luzes uma pedalada coletiva nas
portas das celas”, conta Terezinha Pires, funcionária com 28 anos de
Fase.
O colega Jovaldoir Lanza, que já passou dois natais trabalhando na
Fase, conta que é impossível ficar indiferente ao assistir o desespero
de alguns adolescentes. “Essas emoções podem levar a atos mais sérios. A
gente também se imagina com a nossa família nesta hora. Não passamos o
Natal com eles para estar ali (na Fase), muitas vezes com medo de um possível motim”, fala.
Mas o espírito natalino fortalece o sentimento de solidariedade e fé
dos profissionais que se dedicam a fazer mais do que o trabalho de
servidor público. Enquanto os adolescentes do Centro de Convivência da
Fase participavam de uma festa de Natal (no dia em que esta matéria foi
produzida), Terezinha, Jovaldoir e outros colegas que promovem oficinas
profissionalizantes aos adolescentes confeccionavam com disposição 50
peças de gesso como lembrança de Natal para os internos. “Eles não
sabem. Por isso estamos dando uma corrida para aprontar tudo hoje”,
contou Terezinha enquanto passava um verniz na peça.
O presente é uma mensagem com a Bênção da Casa. “Nesta casa não virá
tristeza, nesta moradia não virá sofrimento, nesta porta não virá temor.
Neste lar não virá discórdia, neste lugar haverá somente bênção e paz”,
Terezinha fez questão de ler para reportagem. Mas também salientou que
tanto o presente quanto a decoração de pinheiro de Natal e presépio da
unidade não foram impostos. “Aqui temos jovens com muitos credos.
Respeitamos todos e sempre que alguma entidade vem realizar alguma
atividade é bem-vinda”, conta.
A fábrica da ‘Mamãe Noel’ não produz brinquedos
Ao lado do local onde ocorrem as oficinas, a unidade Padre Cacique
reserva uma história de persistência e devoção que chega a evocar algum
milagre natalino. Há nove anos, uma sócio-educadora se dedica a
recuperar os adolescentes por acreditar na possibilidade de um mundo
melhor para eles longe do crime. Rosane Maciel conseguiu começar uma
oficina de fabricação de produtos de limpeza e higiene depois de
sucessivas tentativas de convencimento das diferentes direções da
Fase-RS. Hoje, é na produção dos produtos químicos caseiros que ela
ensina valores diferentes dos que eles aprenderam até chegar à
internação. “É algo que me gratifica. Para mim o sentido de estar aqui é
esse. Fazer algo a mais”, diz.
Com a produção de mil litros de detergentes, amaciantes,
desinfetantes e alvejantes por oficina, ela auxilia na garantia de uma
fonte de renda aos internos contratados para seis meses de trabalho.
Parte dos produtos é para a limpeza da própria Fase-RS; o restante é
destinado para venda dentro do complexo. “Vendemos para funcionários. Os
guris com possibilidade de atividade externa vão na Kombi comigo
percorrer as unidades e vender os produtos”, explica Rosane. A renda
média gira em torno de R$ 150 a R$ 200 reais por mês. Um funcionário da
unidade é o encarregado de controlar o dinheiro dos adolescentes e fazer
as compras do que eles desejam adquirir. Geralmente, a primeira coisa
que eles querem fazer é comprar um tênis de marca. Algo que será um
sonho realizado neste Natal para o jovem T.L, de 17 anos, que começou em
dezembro a participar da oficina. “Eu vou dar de entrada no Nike que eu
quero”, fala.
Antes de conseguir apoio para a realização da oficina de produtos
químicos, Rosane Maciel tentou várias outras atividades por não
conseguir aceitar a falta de opções para ocupação dos adolescentes em
cumprimento de medida socioeducativa. “Quando eu entrei aqui achei que
ia mudar o mundo e que iria conseguir retirar todo mundo do crime”,
disse, causando risadas entre os adolescentes que estavam na sala da
oficina.
Ao descrever a batalha para conseguir o apoio da direção, adquirir os
primeiros materiais da empresa de bases químicas e aprender a preparar
os produtos — algo que ela não sabia fazer antes de começar a oficina –,
a sócio-educadora causou outras reações além do riso nos adolescentes.
“Bah, dona”, impressionou-se o jovem T.L.
Todos os natais Rosane prefere passar junto aos adolescentes para a
intranquilidade dos filhos e da família. Ela já testemunhou três motins
na Fase nesta época do ano, onde em um deles foi refém de um grupo
disposto a fugir. “Eu já vi nestes anos muita coisa. Temos que ter
esperança”, diz.
O adolescente M.V, de 17 anos, reincidente na Fase e há mais tempo na
oficina, conta que costuma enviar os produtos de limpeza que fabrica
para a mãe, em Osório. Este será o segundo Natal que passa privado de
liberdade e ele espera poder passar de outra maneira os próximos.
“Quando eles (familiares) vêm é muito sofrimento. Mas isso tudo
a gente não pensa na hora da loucura. É ruim estar longe da família,
mas cada um é responsável pelas suas escolhas. Eu estou sofrendo as
minhas consequências”, afirma
M.V está migrando da oficina de produtos químicos para um trabalho de
carteira assinada no Banrisul, por meio da iniciativa oferecida pela
Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos. Ele espera conseguir
manter a esperança de não ‘cair’ pela terceira vez na internação. “Eu
vou tentar. A esperança é a última que morre”, diz.
Internação é oportunidade para Natal em família
Os adolescentes internados na unidade Padre Cacique são oriundos de
fora de Porto Alegre, o que torna a oficina de trabalho remunerado uma
oportunidade para as famílias estarem com os adolescentes. “Alguns
enviam dinheiro para casa, outros já pagaram para trazer os pais no dia
do Natal. É um dinheiro que ajuda nestas pequenas coisas, mas ensina a
lutar e trabalhar para consegui-lo”, acredita.
O adolescente J.R, 17 anos, irá passar o primeiro Natal privado de
liberdade e diz que será o primeiro que irá compartilhar com a família.
“Natal lá fora a gente não passa com a família. A gente passava em casa
só para dar um Feliz Natal. Depois saíamos para curtir. Lá fora, a gente
não pensava em nada”, conta o jovem, que mudou a vida aos 13 anos
quando se envolveu com o tráfico de drogas.
“Não gosto de comentários sobre os crimes que eles fizeram. Não gosto
nem que conversem entre eles. Aqui são todos iguais para mim. A gente
sempre orienta sobre outros valores. Claro que santo de casa não faz
muito milagre. Porém, sempre temos a esperança de que eles assimilem
alguma coisa”, diz a sócio-educadora Rosane Maciel.
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