Elaine Tavares
Conheço educadores
demais que falam de Paulo Freire, citam Paulo Freire, idolatram Paulo
Freire, que têm retratos de Paulo Freire pendurados em suas salas. Mas
os conheço de menos na prática cotidiana daquilo que o mestre
pernambucano ensinou: respeito ao conhecimento do outro, espaço para a
autonomia, relações verdadeiramente amorosas, construção solidária e
cooperativa do saber.
Dentre esses poucos há
um em particular que me emociona. Chama-se Leopoldo Nogueira. É formado
em Pedagogia e é mais um dos tantos professores temporários da rede
municipal de ensino de Florianópolis. Ser um "temporário" já é uma
grande barra. O professor não tem direito algum, não tem férias, nem
segurança, nem décimo terceiro. Quando chega o final do ano ele é
demitido e tem de fazer a cada ano o processo seletivo. Nada garante que
ele vá passar, nem, se passando, vá voltar para a mesma escola, o que
faz com que seja quase impossível estabelecer um vínculo amoroso com os
educandos e com a escola.
O Leopoldo faz das
tripas coração para driblar essa forma perversa que o estado encontrou
para "deseducar". Afinal, como é possível uma educação sem a quentura
amorosa da proximidade do professor, da relação humana, do compromisso?
Um professor paulofreiriano precisa inventar-se a toda hora para superar
o crime imposto pela irresponsabilidade do estado.
Leopoldo foi chamado para atuar na sala de informática da Escola Beatriz
de Souza Brito, que fica no bairro Pantanal. Em poucos meses ele já
havia estabelecido uma ligação tão profunda com estudantes e professores
que as belezas escondidas da educação começaram a fluir. Seu método de
trabalho é o amor. Não a coisa piegas do sentimento. Não. É o amor
compromisso, do qual fala Enrique Dussel, o que se compromete com o
outro, diferente, mas real. Seu campo de "brincadeiras educativas" é a
América Latina, ou Abya Yala (o nome originário) a qual faz questão de
carregar por onde vai. Nenhuma criança que passe por seu caminho sai
dele sem conhecer as raízes profundas do espaço geográfico onde vive.
Leopoldo atua na educação fundamental e sua pedagogia é a brincadeira, o
riso, o trabalho verdadeiramente solidário e participativo. Cada ação
promovida na escola tem a mão, a mente e o coração de todas as crianças.
Não é sem razão que quando ele chega no portão, elas irrompam em
transloucada gritaria, de pura festa.
Com os alunos ele produz
vídeos, imagens, pesquisas, saberes, conhecimento. É sempre uma
educação "com" a criança, nunca para a criança. Na alegria das
peraltices, como subir nas árvores para descobrir os passarinhos, ele
vai descortinando a vida e promovendo a educação. No final do ano, mesmo
sem saber se voltaria no ano seguinte, ele iniciou a construção de um
calendário para 2013. Cada grupo de alunos iria pesquisar sobre uma
árvore. E assim foi. Os pequenos ocuparam seus dias na incessante busca
de informação que se concretizou num trabalho lindo, totalmente feito
por dezenas de mãos. Em cada mês do ano, ali está, a árvore, sua
história, suas funções, sua flor e suas semente, assim como a carinha
sorridente da equipe que a desvelou. Na pedagogia do Leopoldo, os alunos
não são "atores sociais", aqueles que falam com a voz do outro. Eles
são "autores", aqueles que criam a sua própria palavra.
Eu, que acompanho o
delicado trabalho que Leopoldo faz, me pego em lágrimas quando o vejo,
nas férias, já sem vencimentos, suando em bicas, carregando seu laptop
velho, buscando um ponto de internet para terminar seu trabalho, com
aquele entusiasmo só possível em pessoas que se doam inteiras para seus
sonhos. E os olhos brilhantes varam as noites em busca da melhor imagem,
a melhor palavra, a melhor ideia. Tudo para depois compartilhar nas
manhãs ensolaradas do Pantanal em meio a insana gritaria criadora.
Às vezes, de dentro do
ônibus que me leva para o centro, o vejo descendo a ladeira da Escola,
cercado pelos alunos, na algaravia infernal. E ele, gordito e
sorridente, vai contando histórias, registrando carinhas, fazendo
brincadeiras, girando o guarda-chuva colorido. E tem essa capacidade tão
imensa de se fazer igual que, num átimo, ele se apequena, perde a barba
branca, se adelgaça e vira mais um menino, de olhos graúdos
feito jabuticaba a fazer traquinagens pelas ruas do Pantanal. Paulo
Freire deve olhar para ele lá de cima e sorrir, satisfeito.
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