Há gênios demais nas secretarias de educação do Brasil todo, e talvez no MEC também. São gênios caolhos. Eles possuem ideias fantásticas, mas como são como o coelho do Maurício de Souza, procriam muito e enxergam pouco. Ideias não lhes faltam, mas alguma que funcione não aparece de modo algum em seus cérebros.
Um desses gênios colocou sua cabeça para fora da toca em Campinas. Deve ter assistido algum filme desses em que um pobre encontra uma pessoa culta (e rica ou menos pobre) e convive com ela, e então, logo após uns meses, “absorve” (“assimila” – essas metáforas digestivas para o aprendizado cultura me torturam) as informações desse seu amigo e eis que se torna uma pessoa “interessante”. Vendo um filme assim, o coelho campineiro teve a brilhante ideia de “levar a cultura” para o “lugar carente”. Concretamente, eis a ideia: acho que deveríamos levar a cultura musical sofisticada para a escola pública atual.
A escola pública que um dia teve seu professor de música e que hoje, se tiver algum som com nome de música, é o Michel Teló gritando em algum aparelho colado às orelhas dos desgraçados que sobraram por lá, foi escolhida então para ser premiada com óperas, pianistas tocando clássicos etc. O resultado foi que durante a ópera os alunos gritaram e vaiaram e depois, no dia do pianista, os alunos resolveram também mostrar que cantavam, e entoaram um coro de “merda, merda, merda”, “filho da puta-aa, filho da puta-aa”, e assim presentearam o músico. Não foi só “zoeira”, como eles próprios, essa raça de bonés, dizem hoje em dia. Foi a própria barbárie. Manifestou-se ali não a bagunça, mas o ódio. Funcionou assim a cabeça dos ainda chamados estudantes: o que vem do âmbito da cultura sofisticada é o que eu não entendo e, por não entender, sei perfeitamente que pertence aos ricos e aos seus sabujos, os intelectuais, e não vou deixar isso aí me oprimir. Não vão me fazer perder tempo com esse lixo. (Pianista hostilizado em Campinas)
Bagunça se fazia no meu tempo de escola pública. Não há qualquer bagunça na escola pública atual. O que há é que ela é o lugar da bandidagem porque se tornou o último recanto do Brasil em que uma pessoa com dignidade e inteligência quer ficar. Qualquer coisa mais sofisticada posta na escola pública, hoje, vai gerar o comentário acertado de quem vê de fora: “pérolas aos porcos”. O gênio que fez o projeto “vamos levar os clássicos para a escola pública” não sabe disso porque ele se recusa a entender o seguinte: se aquele que é chamado de professor se sujeita a trabalhar pelo que o MEC colocou como “salário mínimo da educação” ou “piso” (só o nome “piso”, que é “chão”, já deveria mostrar a intenção do governo!), que vai de 1200 a 800 reais no ensino básico, então esse ambiente é completamente avesso a qualquer coisa que mereça o adjetivo “bom”. Essa é a verdade. A escola pública é hoje o lugar dos degradados, desgraçados e fracassados. Tudo que Deus não quis, e doou para o Diabo, está lá.
Mesmo aqueles que fazem dela um “bico” e, enfim, ou têm famílias que os sustentam ou têm muitos anos de trabalho e acumularam algum benefício trabalhista, se lá estão, também já estão um pouco fracassados, no mínimo desmotivados e, se são bons professores, nadam contra a corrente. Quando olho para o salário do professor imagino o tipo de aluno que ele tem e, então, a última coisa que penso oferecer para um tal aluno é música clássica. Não porque o pobre e idiotizado não mereça a música clássica, mas porque música clássica, como cinema ou filosofia, é para todo mundo mas não é para qualquer um. Quem não é o “qualquer um”? Aquele que obtém informação porque teve formação. Ninguém pode levar um negro francês para ver ópera e esperar que ele não diga “esse cara lá cantando, ele está passando mal”, e comece a rir (cena de Os intocáveis, onde o negro, na verdade, é queniano). Nossos alunos são todos negros franceses, embora já não saibam nada de francês e, agora, nem mais de inglês, uma vez que também não sabem a língua materna.
Para que se possa receber informação sofisticada tudo que precisamos é de educação, de formação. Um ouvido não treinado não entende os sons que merecem analiticidade. Não é porque um som é consagrado pela parte culta da Humanidade que ele, não vindo em livros, é possível de ser popular. E assim é com tudo. Pois tudo tem seu lado sofisticado. O sofisticado não depende, para ser compreendido, de ser apresentado. Depende de uma familiaridade. Essa familiaridade depende de disciplina, o que se adquire por ser um iniciado. A iniciação nas “artes, ciências e filosofia” é um processo escolar e não-escolar, mas em nosso mundo moderno ocidental, os povos menos embrutecidos forjaram a escola como lugar dessa iniciação.
A escola pública, principalmente a de nível médio, era o nosso elemento principal de iniciação intelectual. Pegávamos com ela quase toda a classe média e alguns filhos de pobres e dizíamos para eles: alguns de vocês não vão para a universidade, mas o que aprendem aqui, já é em parte o saber do mundo, até mesmo mais sofisticado que alguns dos saberes da universidade. Essa escola pública era povoada por professores que, em cultura e em altivez, eram até superiores ao que é hoje os nossos doutores universitários. Não eram professores ricos. Eram também de classe média. Mas eram distintas figuras da cidade. Eram os intelectuais da cidade. Eram as autoridades. O salário do professor era um salário que permitia que ele entendesse o seu lugar de trabalho como um lugar de dignidade. E assim toda a sociedade via a escola.
Não soubemos preservar esse tipo de escola. Deixamos os ricos sair dessa escola à medida que a democratizamos e, paralelamente, abrimos escolas particulares para os ricos. Achatamos então o salário do professor de um modo geral. O que temos hoje é isso: uma escola pública que é o lixo da sociedade, uma escola particular que sabe que vai se tornar rapidamente um espelho desse lixo.
Em todos os países com diferenças grandes entre pobres e ricos, e onde a política é comandada pelos ricos, se os ricos saem de um lugar público, esse lugar perde a atenção das instituições mantenedoras e se deteriora. Quando decretamos que a escola pública era para os pobres, nós iniciamos a sua derrocada. Agora, corremos o risco de repetir esse erro com a universidade pública.
Estamos todos contentes com isso, porque somos gênios que acreditamos no projeto levado adiante em Campinas. Vamos apenas dizer: ah, deu um problema lá, mas o pobre não é ruim, ele tem lá sua cultura popular, pode também ter a cultura erudita e blá blá blá. Achamos mesmo que negros franceses aprendem se os deixamos expostos à cultura erudita. Não nos passa pela cabeça que antes de tudo ele vai é roubar ou simplesmente destruir o aparelho de som que ali deixamos para que ele escutasse o que queríamos que ele escutasse. E se nos passa isso pela cabeça, sentimos vergonha de nós mesmos e, então, nos calamos.
© 2013 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ
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