domingo, 18 de maio de 2014

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O fosso econômico permanente entre negros e brancos nos Estados Unidos

Joan Faus 

Passou
quase século e meio sobre a carta em que Marx saudava em Lincoln “o
determinado filho da classe trabalhadora a quem coube guiar o seu país
numa incomparável luta pela libertação de uma raça agrilhoada”.

Agora que têm em funções o primeiro presidente negro da sua história
torna-se ainda mais chocante a longa persistência da discriminação
racial na sociedade norte-americana. A própria ONU denuncia que essa
discriminação é permanente em todas as esferas da sociedade: por cada
dólar de uma família branca uma família negra tem cinco cêntimos. A
disparidade na pobreza e no desemprego mal variaram em 40 anos.






Nada
é às vezes mais revelador do que a crueza dos números para compreender
pormenorizadamente uma problemática e deparar com uma desigualdade
enquistada. Em 1970 a taxa de pobreza nos Estados Unidos entre os
cidadãos negros era de 33,6%. Em 2012 era de 35%. Entre os brancos
também surgiu um ligeiro aumento nesses 42 anos, de 10% para 13%, mas o
pior é que o fosso entre as duas raças se manteve intacto. Entretanto,
os latinos tiveram um aumento ainda mais severo, de 24,3% para 33%. Este
padrão racial repete-se no desemprego: desde 1972, quando arrancou a
estatística diferenciada, a taxa entre os negros foi sempre 60% mais
alta que a dos brancos. Em Março a taxa global foi de 6,7; a dos brancos
foi de 5,8% e a dos negros de 12,4%.



Martin, um negro de cerca de sessenta anos, afirmou desconhecer os
pormenores destes números — que levaram a ONU a denunciar em Março que
«na prática» a discriminação permanece constante em todas as esferas da
sociedade norte-americana, e continua visível. «A discriminação piorou
muito», reclama num misto de impotência e revolta. Sentado placidamente
num banco, durante horas, conta que está sem trabalho, que faz milagres
para sobreviver com o apoio do governo, que viveu a vida toda num
apartamento entre as ruas 7 e U, no noroeste do centro de Washington DC.
Um bairro que vem há anos a viver uma transformação drástica: os
estabelecimentos humildes, edifícios e residentes afro-americanos vão
sendo gradualmente substituídos por gente local e imóveis modernos
habitados por brancos jovens da classe média. A mudança é bonita mas o
racismo subsiste e afasta as pessoas pelo escândalo das rendas. Isto
antigamente era a Broadway negra dos Estados Unidos, queixa-se de olhar
perdido.



Mas o que mais aborrece Martin é que a mudança não o beneficia, nem faz
com que cresça a economia dos Estados Unidos e de Washington e acaba
gerando uma dupla perseguição policial, fundamentada segundo ele num
racismo intrínseco. «Se estou a beber uma cerveja na rua a polícia
prende-me mas se for um branco dos que vivem por aqui não lhe dizem
nada”, denuncia. Recusa falar da sua vida, mas deixa escapar que esteve
preso por drogas e que depois, apesar de ter um curso e direito a uma
profissão técnica, o ferrete do cárcere impede-o de encontrar um
trabalho de qualidade. «Fora da prisão o Governo não te ajuda, atira-te
de novo para as ruas. E que fazemos? É fácil voltar a fazer o mesmo, e
vamos outra vez para a cadeia”.



Nessa altura um amigo negro de Martin, Paul, da mesma idade, que andava
pela rua e que também esteve preso, entra na conversa. «A educação é o
mais importante, declara. Há que ajudar os jovens. No bairro muitos vão
dizer-te “para quê trabalhar por 500 dólares se a vender droga consegues
800″. É esse o problema, mas que vamos fazer? Num círculo vicioso
originado na conjuntura socioeconómica e na educação, que a polícia e a
justiça podem agravar, não há saída. E o tempo não o melhora: a
mobilidade social mantém-se parada 50 anos depois da aprovação da Lei
dos Direitos Civis.



A desigualdade crescente de rendimento nos Estados Unidos e o
impedimento da subida social afectam o conjunto da população, mas
atingem sempre mais profundamente as minorias raciais. Antes da crise de
2007, o rendimento médio de uma família branca era de 135.000 dólares
(muito inflada pelos mais ricos), enquanto o de uma família de cor era
de 12.000, segundo um estudo de Derrick Hamilton, professor de Economia
na New School de Nova Iorque. Isso significava que por cada dólar de
riqueza de uma família branca, uma negra tinha nove cêntimos. Mas depois
da crise a distancia aumentou: cinco cêntimos por cada dólar. E
surgiram diferenças ainda maiores: 85% das famílias negras e latinas têm
um rendimento total inferior à média de todos os brancos.



A população está muito consciente da brutalidade destas disparidades.
Segundo um inquérito de 2913, 57% dos brancos acham que existe alguma
discriminação para com os negros, enquanto entre os negros a proporção
sobe para 88%. Mas afinal qual a explicação para estas tristes
diferenças económicas? «Enquanto não houve apenas redução do fosso de
riqueza nos últimos cinquenta anos, houve uma melhoria laboral até
meados dos anos 70 graças a várias leis, programas de afirmação positiva
e melhorias no acesso à educação», indica Hamilton por telefone. «Mas a
partir daí o fosso manteve-se por falta de ênfase contra a
discriminação. Paralelamente, influíram outros factores que, em geral,
aumentaram a desigualdade de rendimento do país, como o enfraquecimento
dos sindicatos, o auge da competitividade global, a disparidade salarial
ou os lucros elevados de capital, que beneficiaram os mais ricos».



E além disso, afirma o professor, surgiu um tipo de preconceito racial
permanente em algumas esferas. Por exemplo menciona um estudo que
demonstrou que num processo de selecção num trabalho uma pessoa de cor
que envia um currículo melhor tem menos opções de ser contratada do que
uma branca com pior expediente. Por isso, é necessário tomar mais
medidas, para que o Governo contrate mais trabalhadores e melhores
condições para forçar o sector provado a melhorar as suas, que se crie
um fundo de auxilio para crianças pobres a que se possa aceder como
adultos «para nivelar o terreno do jogo» com os mais ricos, e que o
sistema fiscal seja mais progressivo para que as famílias com baixos
rendimentos não permaneçam «encarceradas na pobreza».



Desde que subiu à presidência dos Estados Unidos em
2009 Barack Obama evitou falar de discriminação racial. Salvo nalgumas
iniciativas insistiu em que o verdadeiro debate se deve centralizar na
criação de postos de trabalho e irritou alguns sectores afro-americanos
ao falar de «responsabilidade pessoal» e de não aceitar a vitimização.
Nos últimos meses, a luta contra a desigualdade transformou-se no
epicentro do discurso de Obama, que em Fevereiro anunciou um aumento de
salário mínimo federal de 7,25 dólares por hora para 10,10.



Embora agora retomem protagonismo, as reclamações económicas dos negros
não são novas. Basta recordar a marcha para Washington em Agosto de
1963, que culminou com o famoso discurso de Martin Luther King, que
reclamava mais trabalho e melhores salários. Pedia-se na época que o
salário mínimo passasse de 1,15 dólares por hora para 2. De acordo com a
evolução da inflação esses 1,15 dólares corresponderiam hoje a 8,80. No
ano seguinte a vergonhosa segregação racial terminou oficialmente, mas
meio século depois ainda permanece: a crueza dos números torna inegáveis
os efeitos económicos da discriminação.


Washington 20 ABR 2014 - 03:41 CET

Fonte: El País 


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