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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Religiões afro-brasileiras preparam direito de resposta coletivo contra TV Record

SUL21

No final de 2011, entidades afro-brasileiras foram autorizadas pelo Ministério Público a produzir um vídeo com um direito de resposta coletivo a uma reportagem veiculada pela TV Record. O vídeo ainda não foi exibido no ar, pois a emissora recorreu da decisão – mas encontra-se disponível online, podendo ser assistido no YouTube. Entre os entrevistados no vídeo, estão Iran Castelo Branco, do movimento Mídia Pela Paz, representantes do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e do Instituto Nacional da Tradição e Cultura Afro-Brasileira (INTECAB), além do professor Laurindo Leal Filho, da ECA-USP. Assista o vídeo abaixo, que traz cerca de 15mins dos 60mins de duração do direito de resposta.


quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Homenagem aos Umbandistas...

Aparecida : Os Deuses Afros


Créditos: discosbrasil2
 
01- Os Deuses Afros
02- Aruê
03- Diongo, Mundiongo
04- Tereza Aragão
05- Talundê
06- Se Segura Zé
07- A Maria Começa a Beber
08- Terreiro da Mãe Nazinha
09- Nanã Boroquê
10- Melodia Não Deixa Parada de Lucas
11- Inferno Verde
12- Grongoiô, Popoiô
13- Lágrimas de Oxum

Lançamento: 1978, Selo: CID.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O Trompetista e o Suicida


  •  Eugenio Lara no sitio PENSE


  • Difícil imaginar outra modalidade mais universal de comunicação do que a música. Certamente, a comunicação entre os espíritos mais elevados deve ser também por música, como se fosse um concerto, a mente em harmonia, com ritmo, pulsão, beleza: o improviso emocionalmente controlado. Em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, belo filme de Steven Spielberg, a linguagem musical, universal, foi o meio de contato com os extraterrestres, com poucas notas musicais, minimalistas. Bela sacada!

    A música funciona sempre como catalisador de nossas emoções. Basta ver os hinos entoados durante as antigas batalhas ou na guerra esportiva, nos hinos cantados de modo veemente, agressivo, pelas torcidas organizadas ou mesmo pelas não-organizadas, nos bares, nas quadras, na várzea, nos estádios monumentais: a música nas passeatas, nos festivais, como foi em Woodstock e hoje nos bailes funk, de emos, góticos, em raves, nos pagodes da vida.

    Quantos músicos não foram perseguidos, torturados e mortos por empregarem sua arte musical como ação eficiente de protesto, de denúncia? Lembro-me de meus prediletos Victor Jarra, Geraldo Vandré, Violeta Parra, Taiguara, de tantos músicos outros que ousaram ofertar sua expressão musical a serviço dos direitos humanos, contra a repressão, a violência, o autoritarismo, contra as corporações, o Estado repressor.

    Poderia ficar aqui, ad infinitum, citando variados casos onde a música funciona como fonte inspiradora, de acalanto, consolação, de protesto. Entretanto, escrevo essas palavras iniciais para expressar a profunda emoção lacrimosa que senti ao ver e ouvir na TV o depoimento de um músico radicado em Brasília-DF, um trompetista bastante reconhecido e requisitado, sobre a energia que a música movimenta, sem que nos demos conta disso.

    Refiro-me ao músico paraibano Moisés Alves, em um depoimento comovente sobre a sua costumeira compulsão em tocar seu trompete, tirando dele notas e harmonias sensíveis, alegres, ternas ou tristes, improvisadas. Em meio à apresentação de sua banda Moisés Alves Quinteto, no Clube do Choro de Brasília - Capital do Choro, retransmitida pela TV Senado, ele proferiu um testemunho que vale a pena compartilhar. De modo sincero, expôs a paixão que tem pela música e a necessidade inexplicável em tocar seu instrumento.

    Conta ele que, certa vez, estava no apartamento de um amigo, muito rico, em um imóvel luxuoso, lá mesmo em Brasília, onde mora. Ele pediu ao amigo se poderia tocar, pois estava sentindo uma vontade compulsiva, algo que sempre ocorre com ele. Naquele dia, o desejo foi mais forte...

    Tarde seca e pouco ensolarada, como são as tardes de Brasília no final de inverno. Tocou seu trompete à beira da janela na sala, improvisou um belo solo. Mais ou menos uma hora e meia após a inusitada execução musical, alguém bateu à porta do apartamento. Seu amigo, ao atender, se deparou com um vizinho extasiado, embevecido, querendo saber se era ele mesmo que havia tocado o solo de trompete. Disse-lhe que não, que o solo havia sido obra de um amigo seu, ali presente. Chamou-lhe. O rapaz se apresentou e deu um testemunho marcante e emocionado: “Eu estava prestes a me suicidar quando ouvi aquela música. Parei com meus pensamentos destrutivos e ao ouvir aquele som, desisti da ideia de me matar”.

    O pobre suicida, não mais que de repente, começou a ver as coisas sob outro ângulo, mudou seu tônus mental devido àquela música. Deve ter imaginado que, apesar de tudo, de toda a desgraça e desilusão de sua vida, valeria a pena prosseguir, ao curtir aquele som agradável e mavioso. E em seu depoimento, concluiu Moisés: “a música movimenta energias que desconhecemos”.

    Imaginar que os espíritos nos dirigem, como eles mesmo afirmaram a Allan Kardec, sempre me pareceu um exagero, compreensível, ainda mais em uma época anterior à psicanálise, à engenharia genética, à física quântica. Algo bem diferente daquela frase notória do fundador do positivismo, Auguste Comte: “os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos”. No caso, não se trata de uma imortalidade subjetiva, meramente cultural, como imaginava o grande idealizador da Religião da Humanidade. Trata-se de uma imortalidade dinâmica e objetiva, no dizer do pensador espírita Jaci Regis, pois neste caso, apesar da compulsão costumeira de nosso amigo trompetista, aquele momento foi especial sob o ponto de vista extrafísico. A meu ver, a influência espiritual foi decisiva, muito mais do que um suposto acaso ou algum tipo de sincronicidade, vazia de sentido.

    Eu, no lugar de nosso amigo suicida, se ouvisse um daqueles funks repetitivos e insuportáveis, naquele momento dramático, aí sim reforçaria minha coragem em me matar. Seria a cereja no bolo de meu suicídio voluntário. Por sorte, não era surdo. O que ele ouviu naquele instante foi decisivo, determinante. O amparo espiritual de nosso simpático suicida foi eficiente. Essas coisas acontecem a todo momento. Nós é que em nossa santa ignorância, não percebemos. Porque a vida é muito mais simples e interessante do que imaginamos...


    Eugenio Lara, arquiteto, jornalista e designer gráfico, é fundador e editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e autor dos livros em edição digital: Racismo e Espiritismo; Milenarismo e Espiritismo; Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico; Conceito Espírita de Evolução; Os Quatro Espíritos de Kardec e Os Celtas e o Espiritismo.
    E-mail: eugenlara@hotmail.com

    sexta-feira, 30 de setembro de 2011

    A arte de desaprender


    Assim como há escolas e cursos para aprender, deveria também existir para ensinar a desaprender

    Frei Betto no BrasilDeFato

    Apresentou-se à porta do convento um médico interessado em tornar-se frade. O prior encarregou o mestre de noviços de atendê-lo.
    ― Caro doutor – disse o mestre – o prior envia-lhe esta lista de perguntas. Pede que tenha a bondade de respondê-las de acordo com os seus doutos conhecimentos.
    O jovem médico, acomodado no parlatório, tratou de preencher o questionário. Em menos de uma hora devolveu-o ao mestre. Este levou o papel ao prior e retornou quinze minutos depois:
    ― O prior reconhece que o senhor demonstra grande conhecimento e erudição. Suas respostas são brilhantes. Por isso pede que retorne ao convento dentro de um ano.
    O médico estampou uma expressão de desapontamento:
    ― Ora, se respondi corretamente todas as questões – objetou – por que retornar dentro de um ano? E se eu tivesse dado respostas equivocadas, o que teria sucedido?
    ― O senhor teria sido aceito imediatamente e, na próxima semana, já estaria entre os noviços.
    ― Então, por que devo retornar em um ano?
    ― É o prazo que o prior considera adequado para que o senhor possa desaprender conhecimentos inúteis.
    ― Desaprender? – surpreendeu-se o médico.
    ― Sim, desaprender. Entrar na vida espiritual é como empreender uma viagem: quanto mais pesada a bagagem, mais lentamente se cobre o percurso. Na sua há demasiadas coisas substantivamente inúteis.
    E o doutor partiu sob promessa de retornar dentro de um ano, o que de fato sucedeu.
    Assim como há escolas e cursos para aprender, deveria também existir para ensinar a desaprender. Quantas importantes inutilidades valorizamos na vida! Quantos detalhes sugam nossas preciosas energias e consomem vorazmente o nosso tempo! Quantas horas e dias perdemos com ocupações que em nada acrescentam às nossas vidas; pelo contrário, causam-nos enfado e nos sobrecarregam de preocupações.
    Precisamos desaprender a considerar os bens da natureza produtos de uso próprio, ainda que o nosso uso perdulário se traduza em falta para muitos. Desaprender a valorizar um modelo de progresso que necessariamente não traz felicidade coletiva e uma economia cuja especulação supera a produção. Desaprender a olhar o mundo a partir do próprio umbigo, como se o diferente merecesse ser encarado com suspeita e preconceito.
    O desaprendizado é uma arte para quem se propõe a mudar de vida. Nessa viagem, quanto menos bagagem e mais leveza, sobretudo de espírito, melhor e mais rápido se alcança o destino. Vida afora, carregamos demasiadas cobranças, mágoas, invejas e até ódios, como se toda essa tralha fizesse algum mal a outras pessoas que não a nós mesmos.
    O que nos encanta nas crianças com menos de cinco anos é a interrogação incessante, o interesse pela novidade, o espírito despojado. Era isso que sinalizou Jesus quando alertou a Nicodemos ser preciso nascer de novo, sem retornar ao ventre materno, e tornar-se criança para ingressar no Reino de Deus.
    O médico candidato a noviço comprovou ser bem informado, mas ignorava a distinção entre cultura e sabedoria. Soube elencar as mais célebres telas da pintura universal, sem no entanto ter noção do que significam e por que o artista fez isto e não aquilo. Conhecia todas as doenças de sua especialidade, sem a devida clareza de como se relacionar com o doente.
    A humanidade não terá futuro promissor se não desaprender a promover guerras e a considerar a pobreza mero resultado da incapacidade individual. Urge desaprender a valorizar o supérfluo como necessário e a ostentação como sinal de êxito. Desaprender a perder tempo com o que não tem a menor importância e se dedicar mais nos cuidados do corpo que do espírito.
    A vida espiritual é um contínuo desaprender de apegos e ambições, vaidades e presunções. A felicidade só conhece uma morada: o coração humano. Eis aí milhões de viciados em drogas a gritar a plenos pulmões terem plena consciência de que a felicidade resulta de uma experiência interior, de um novo estado de consciência. Como não aprenderam a abraçar a via do absoluto, enveredaram pela do absurdo.
    E convém aprender: no amor mais se desaprende do que se aprende.

    Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

    sexta-feira, 2 de setembro de 2011

    Grito dos Excluídos: uma mobilização nacional pelos direitos do povo brasileiro

    Grito_2011 
    Ao longo desta semana, de 1º a 7 de setembro, todas as regiões do país celebram a 17ª edição do Grito dos Excluídos, cujo lema é “Pela vida grita a terra... Por direitos todos nós”. Trata-se de um conjunto de manifestações populares carregada de simbolismo, aberta às pessoas, grupos, entidades, Igrejas e movimentos sociais comprometidos.
    Três são os objetivos da mobilização nacional: denunciar o modelo político e econômico que concentra riquezas e condena milhões de pessoas à exclusão social; tornar público, nas ruas e praças, o rosto desfigurado dos grupos excluídos, vítimas do desemprego, da miséria e da fome; e por último, propor caminhos alternativos ao modelo econômico neoliberal, de forma a desenvolver uma política de inclusão social.
    48agdomdemetrioRealizado desde 1995, o Grito dos Excluídos teve origem no então Setor Pastoral Social da CNBB, cujo presidente na época, era o bispo de Jales (SP), dom Luiz Demétrio Valentini. Para ele, os 17 anos de realização do Grito mostram sua força e modelo eficiente para propor discussões em torno dos problemas sociais do país. O bispo elenca algumas das bases que sustentam a mobilização por tantos anos.
    “Sua ligação com a temática tratada pela Campanha da Fraternidade a cada ano, depois a vinculação com a CNBB, a convocação para o dia da pátria, da Independência; o resgate de valores da cidadania”, sublinhou. Tem contribuído também para o crescimento do Grito as reflexões sobre temas essenciais para a vida da democracia brasileira.
    “A cada ano somos levados a refletir sobre os gritos que se levantam e que precisam ser ouvidos; somos chamados a dar respostas conscientes para a nossa pátria, como em relação às drogas e à juventude que é traiçoeiramente envolvida por ela, tendo em vista que a população brasileira corre perigo; o grito muito forte contra a corrupção política, que se estende por tanto tempo e, em relação à natureza, que precisa ser cuidada”, enumerou.
    ari_albertiO membro da coordenação nacional do Grito dos Excluídos, Ari Alberti, destaca que o Grito tem um papel muito forte de conscientização e envolvimento da população brasileira. “É uma forma de dizer que não queremos apenas ver no dia da pátria, passivamente, o desfile de soldados e armas de guerra, mas queremos participar e exigir os nossos direitos e uma sociedade igual para todos”. Segundo Alberti, o evento tem crescido nos últimos anos e recebido adesão de muitas cidades, como exemplo o município de Jundiaí, no interior de São Paulo, que vai realizar o Grito pela primeira vez.
    “O Grito dos Excluídos é hoje uma realidade nacional e acontece em todos os estados, além de receber adesão de novas cidades todos os anos. É um processo de construção coletiva que não se esgota no evento, mas há um antes, um durante e um depois com consequências para a vida das pessoas”, afirmou.
    As atividades desenvolvidas na Semana da Pátria são as mais variadas: atos públicos, romarias, celebrações especiais, seminários e cursos de reflexão, blocos na rua, caminhadas, teatro, música, dança, feiras de economia solidária, acampamentos.

    Histórico

    O Grito dos Excluídos teve origem no então Setor Pastoral Social da CNBB. Sua primeira edição deu continuidade à reflexão da Campanha da Fraternidade de 1995, cujo tema foi “Fraternidade e Excluídos” e lema foi “Eras, tu, Senhor”.
    Por outro lado, brotou da necessidade de concretizar os debates da 2ª Semana Social Brasileira, realizada nos anos de 1993 e 1994, com o tema “Brasil, alternativas e protagonistas”. Ou seja, o Grito é promovido pela Pastoral Social, mas, desde o início, conta com numerosos parceiros ligados às demais Igrejas do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), aos movimentos sociais, entidades e organizações.
    O pressuposto básico do Grito é o contexto de aprofundamento do modelo neoliberal como resposta à crise generalizada a partir dos anos 70 e que se agrava nas décadas seguintes.

    domingo, 21 de agosto de 2011

    O Espiritismo é Subversivo?


  •  Jacques Peccatte no PENSE


  • Ao contrário da idéia comum que torna o Espiritismo uma religião, os espíritas do Cercle Spirite Allan Kardec, da França, não aceitam os conceitos demasiado simples, que não permitem refletir sobre a evolução do mundo atual.

    O Espiritismo deve integrar-se à vida de nosso tempo, a fim de questionar os eventos culturais, sociais e políticos à luz de nosso conhecimento espírita.

    Tudo o que acontece no planeta merece interesse e reflexão por parte de todos os seres humanos, sobretudo hoje, porque vivemos mais ou menos conscientemente, num modo transnacional dentro do qual a situação de cada país é interdependente dos outros. A globalização econômica é uma realidade atual e a exploração dos países pobres pelos ricos segue, como nos tempos da colonização.

    O Espiritismo de Allan Kardec nunca aceitou esse processo de injustiça nem a resignação diante das misérias. É essencial que, dentro da atualização do Espiritismo, levemos em conta as evoluções coletivas de nossas sociedades.

    Vemos que no neoliberalismo atual, todas as partes da Terra são dependentes desse sistema mundial, incapaz de procurar o bem-estar de todos. As desigualdades se ampliam a cada dia, desigualdades entre os países e entre os indivíduos. A riqueza global aumenta consideravelmente e, paralelamente, a pobreza é cada vez maior.

    A filosofia espírita incorpora conceitos de solidariedade e de fraternidade que estão totalmente ausentes das sociedade humanas, apenas na forma de organizações caritativas. Desgraçadamente a caridade é o único meio de solidariedade que deve preencher as deficiências das sociedades fundadas no egoísmo. O objetivo de cada sociedade deve ser o desenvolvimento econômico, o que é perfeitamente normal e evidente, mas os países pobres estão condenados a abastecer os países ricos, sem benefícios nem desenvolvimento. É um intercâmbio de sentido único.

    Existe uma estratégia dos países desenvolvidos, em particular dos Estados Unidos, que consiste em dirigir o mundo segundo seus próprios interesses e benefícios. É uma política muito evidente, por exemplo, no tocante ao continente africano.

    A geopolítica mundial não é estabelecida ao acaso. Não existe fatalidade, mas vontades muito bem calculadas por parte dos poderes econômicos.

    Como espírita, não posso calar-me diante dessas realidades. Se os habitantes da Terra são irmãos, como aceitar tais diferenças? Penso que esses problemas fazem parte da filosofia espírita em seu aspecto moral.

    Não podemos nos contentar com uma moral individual dentro da qual cada um se preocupa com sua família e de seu vizinho (que é, sem embargo, muito bom). Mas devemos também, como espíritas, considerar o enfoque espírita dentro de uma moral universal. A famosa evolução intelectual e moral definida por Kardec significa que não devemos esquecer o aspecto intelectual, quer dizer, uma compreensão real do mundo atual, a fim de situar-se moralmente frente a um conjunto humano que sofre de sua inferioridade geral.

    Pensamos, aqui na França, que o papel do espírita moderno é refletir, falar, denunciar eventualmente e participar da luta contra o mal, seja qual for a sua forma. Nesse sentido, segundo o título deste artigo, penso que os espíritas podem ser subversivos, não aceitando uma resignação comum e nenhuma fatalidade. Creio que o Espiritismo é uma luta contra todas as injustiças que constatamos na condição humana, participando das mudanças e progresso do mundo.

    Nos séculos passados, o poder foi essencialmente das religiões. Depois despertaram-se sistemas laicos, um pouco mais democráticos. No século 19 foi fundado o Espiritismo por Allan Kardec. Mas, lamentavelmente, constatamos que atualmente o Espiritismo não tem uma verdadeira influência cultural intelectual e moral dentro das sociedades.

    No conjunto, as religiões mantém uma influência preponderante em certos países. E os sistemas sociais e políticos não avançam no sentido da participação. Qual poderia ser o papel do Espiritismo diante da evolução das sociedades atuais no mundo? É uma pergunta que merece ser considerada e eu a proponho a todos os espíritas preocupados com o futuro do planeta.

    Fonte: Jornal de cultura espírita “Abertura”, maio de 2000, ano XIII, nº 148, Santos-SP.

    Jacques Peccatte, líder espírita francês, um dos fundadores e dirigentes do Círculo Espírita Allan Kardec, de Nancy, França, é diretor-responsável e redator do periódico trimestral “Le Journal Spirite”.
    E-mail: j.peccatte@free.fr

    quinta-feira, 11 de agosto de 2011

    Caiu a Lágrima, Nasceu a Ação






  • Escreve: Paulo César Fernandes no PENSE






  • Eu vejo. Eu vejo uma quase gota de lágrima em teus olhos. Ela. Parada. Não aumenta ou diminui.
    E sei dos teus pensamentos sobre o mundo.
    Um mundo que todos criticam, lamentam, têm saudosismo sem saber do que e nem porque.
    Mas essa quase lágrima sabe. Sabe de tudo.


    Daqueles que são “os de dentro”, e muito mais ainda daqueles que “são os de fora”. Os que ninguém quer ver, ninguém quer por perto; ninguém quer que existam.


    E eles não são “os de foras” por livre escolha; tolhidos que foram de todas as possibilidades de uma vida sequer similar à vida dos “de dentro”.


    Existe uma categoria espacial distinta para cada um destes grupos.


    De um lado o requinte; a sofisticação; o consumo pleno, sem limites. Do outro lado os lugares de habitar compostos de elementos descartados pela sociedade de consumo, um consumo sequer sonhado por eles ao montar seus lugares de habitar.


    Exatamente este consumo que consome, e toda a parafernália político-econômica, envolvendo grandes corporações transnacionais; e mais ainda, os núcleos centrais dos gabinetes governamentais e parlamentares dessas nações ditas desenvolvidas, aí está o que eles chamam de vida. Nesta concepção, poder é vida.


    O pensador Antonio Negri e seu colega Hardt escreveram um livro chamado “Império”. Sua tese central é que não mais temos blocos de poder como nos tempos da Guerra Fria. Instituiu-se um novo Império Supranacional comandando a vida cotidiana dos habitantes do planeta.


    Digo eu que é este Império globalizado e sem sede central que norteia a vida das nações: das nações “de dentro” como a Europa Central e os Estados Unidos, nações riquíssimas apesar da propalada crise. Estas apenas diminuíram a quantidade de sangue e energia das demais nações.


    Tal Império comanda ainda as nações “de fora”, tão pequenas e espoliadas que nem seus nomes conhecemos, uma vez que se situam na África; na Ásia; Sudoeste da Ásia etc. Nações que vivem engalfinhadas em lutas fraticidas, lutas fomentadas pelos centros “culturais” e econômicos, pois dessas guerras regionais obtêm lucros exorbitantes. Fomentam atritos religiosos; conflitos étnicos, de diversas motivações desde que sempre se apresente um novo conflito.


    A imprensa mundial, os meios de comunicação de massa globalizados se calam ante a mortandade diária. Uma imprensa que se coloca como guardiã da verdade e da moral. Esta se cala diante de tanta imoralidade. Cúmplice de tantas vidas ceifadas. Dói muito.


    Esta estabilidade dessa futura lágrima se mantém exatamente pelo fato de todos esses teus pensamentos serem estonteantes. Portadores de uma lógica visceral, mas estonteantes.
    E tu sabes que em nossas diversas cidades esses “de fora” também existem e habitam. São representados por praticantes de pequenos roubos, latrocínios; outros ainda enveredam pelo caminho das drogas que, cada vez mais rapidamente, elimina seus consumidores. Mas isto não tem a menor importância na lógica deste nosso mundo. Logo depois chegará um novo consumidor; e mais outro e mais outro ainda...
    Você está pensando o mesmo que eu?
    Que essas medidas paliativas de combate ao tráfico por um lado; tratamento de usuários por outro lado não seriam tão somente iniciativas para aplacar a nossa consciência, a consciência da sociedade como um todo?
    Atitudes e mais atitudes sempre passando ao largo odo ponto focal. E qual seria esse ponto focal?


    Os “de dentro”de todos os níveis querem o mais rápido possível eliminar o incomodo da existência dos “de fora”, também chamados de “estranhos”, pois são estranhos ao universo do consumo sofisticado. Não se adequam e negam tudo aquilo que está do lado de lá da “fronteira social”. Preferem e buscam seus espaços, sua linguagem corporal, sua estética específica. Mutante. Renovável. Tal qual fazem os “de dentro”.
    Tua lágrima pode cair agora, pois o quadro é tenebroso; e sem solução a curto e médio prazo. São muitas as instituições a mudar. Coisa que os interesses imediatistas sempre se opõem. Sempre se opõem ao justo, ao correto, ao ético, ao progressista.
    A fronteira social veio para ficar, enquanto as pessoas não se derem conta do emaranhado das ramificações em todas as esferas do poder. Em todos os continentes isso ocorre. Mesmo na rica Europa.
    Quadro horripilante, negativo, assustador... Mas é exatamente aí que reside sua beleza.
    Em algum momento qualquer as lágrimas dos teus olhos secarão.
    Virá a revolta mais densa e profunda.
    Finda a revolta, se inicia para ti um novo momento, um novo marco existencial: a busca de conhecer, e conhecer cada vez mais e mais de perto o contexto real desses nossos Tempos Líquidos.
    Mais ainda. Permitir que mais e mais pessoas passem a ter contato com esse quadro que todos nós queremos sempre fugir, nos esconder.
    Mas, uma coisa é certa: somente o conhecimento, calcado na mais crua realidade, na racionalidade mais profunda nos fará agir num novo sentido, e de uma maneira firme, forte. Como se fôssemos dois, nos engajar cada qual da sua maneira, na urgente luta de extinção de todas as fronteiras sociais em todos os lugares dessa nossa Terra.


    A coragem e a RAZÃO estarão presentes nos cinco continentes e trarão o mundo que todos merecemos.


    Nota: Reverencio o polonês Zygmunt Bauman, cujas ideias vêm iluminando minha compreensão do presente momento e se fazem presentes neste texto.


    Paulo César Fernandes, jornalista e psicólogo, tem pós-graduação em Ciências da Comunicação. Articulista de vários periódicos espíritas, atua no Centro Espírita Allan Kardec, de Santos-SP, onde reside. É autor do livro “Um Blues no Meio do Caminho”, lançado pelo CPDoc - Centro de Pesquisa e Documentação Espírita, do qual é um dos membros.
    E-mail: pcfernandes1951@bol.com.br

    sábado, 6 de agosto de 2011

    O Trompetista e o Suicida



  •  Eugenio Lara no PENSE





  • Difícil imaginar outra modalidade mais universal de comunicação do que a música. Certamente, a comunicação entre os espíritos mais elevados deve ser também por música, como se fosse um concerto, a mente em harmonia, com ritmo, pulsão, beleza: o improviso emocionalmente controlado. Em “Contatos Imediatos do Terceiro Grau”, belo filme de Steven Spielberg, a linguagem musical, universal, foi o meio de contato com os extraterrestres, com poucas notas musicais, minimalistas. Bela sacada!


    A música funciona sempre como catalisador de nossas emoções. Basta ver os hinos entoados durante as antigas batalhas ou na guerra esportiva, nos hinos cantados de modo veemente, agressivo, pelas torcidas organizadas ou mesmo pelas não-organizadas, nos bares, nas quadras, na várzea, nos estádios monumentais: a música nas passeatas, nos festivais, como foi em Woodstock e hoje nos bailes funk, de emos, góticos, em raves, nos pagodes da vida.


    Quantos músicos não foram perseguidos, torturados e mortos por empregarem sua arte musical como ação eficiente de protesto, de denúncia? Lembro-me de meus prediletos Victor Jarra, Geraldo Vandré, Violeta Parra, Taiguara, de tantos músicos outros que ousaram ofertar sua expressão musical a serviço dos direitos humanos, contra a repressão, a violência, o autoritarismo, contra as corporações, o Estado repressor.


    Poderia ficar aqui, ad infinitum, citando variados casos onde a música funciona como fonte inspiradora, de acalanto, consolação, de protesto. Entretanto, escrevo essas palavras iniciais para expressar a profunda emoção lacrimosa que senti ao ver e ouvir na TV o depoimento de um músico radicado em Brasília-DF, um trompetista bastante reconhecido e requisitado, sobre a energia que a música movimenta, sem que nos demos conta disso.


    Refiro-me ao músico paraibano Moisés Alves, em um depoimento comovente sobre a sua costumeira compulsão em tocar seu trompete, tirando dele notas e harmonias sensíveis, alegres, ternas ou tristes, improvisadas. Em meio à apresentação de sua banda Moisés Alves Quinteto, no Clube do Choro de Brasília - Capital do Choro, retransmitida pela TV Senado, ele proferiu um testemunho que vale a pena compartilhar. De modo sincero, expôs a paixão que tem pela música e a necessidade inexplicável em tocar seu instrumento.


    Conta ele que, certa vez, estava no apartamento de um amigo, muito rico, em um imóvel luxuoso, lá mesmo em Brasília, onde mora. Ele pediu ao amigo se poderia tocar, pois estava sentindo uma vontade compulsiva, algo que sempre ocorre com ele. Naquele dia, o desejo foi mais forte...


    Tarde seca e pouco ensolarada, como são as tardes de Brasília no final de inverno. Tocou seu trompete à beira da janela na sala, improvisou um belo solo. Mais ou menos uma hora e meia após a inusitada execução musical, alguém bateu à porta do apartamento. Seu amigo, ao atender, se deparou com um vizinho extasiado, embevecido, querendo saber se era ele mesmo que havia tocado o solo de trompete. Disse-lhe que não, que o solo havia sido obra de um amigo seu, ali presente. Chamou-lhe. O rapaz se apresentou e deu um testemunho marcante e emocionado: “Eu estava prestes a me suicidar quando ouvi aquela música. Parei com meus pensamentos destrutivos e ao ouvir aquele som, desisti da ideia de me matar”.


    O pobre suicida, não mais que de repente, começou a ver as coisas sob outro ângulo, mudou seu tônus mental devido àquela música. Deve ter imaginado que, apesar de tudo, de toda a desgraça e desilusão de sua vida, valeria a pena prosseguir, ao curtir aquele som agradável e mavioso. E em seu depoimento, concluiu Moisés: “a música movimenta energias que desconhecemos”.


    Imaginar que os espíritos nos dirigem, como eles mesmo afirmaram a Allan Kardec, sempre me pareceu um exagero, compreensível, ainda mais em uma época anterior à psicanálise, à engenharia genética, à física quântica. Algo bem diferente daquela frase notória do fundador do positivismo, Auguste Comte: “os vivos são sempre e cada vez mais governados necessariamente pelos mortos”. No caso, não se trata de uma imortalidade subjetiva, meramente cultural, como imaginava o grande idealizador da Religião da Humanidade. Trata-se de uma imortalidade dinâmica e objetiva, no dizer do pensador espírita Jaci Regis, pois neste caso, apesar da compulsão costumeira de nosso amigo trompetista, aquele momento foi especial sob o ponto de vista extrafísico. A meu ver, a influência espiritual foi decisiva, muito mais do que um suposto acaso ou algum tipo de sincronicidade, vazia de sentido.


    Eu, no lugar de nosso amigo suicida, se ouvisse um daqueles funks repetitivos e insuportáveis, naquele momento dramático, aí sim reforçaria minha coragem em me matar. Seria a cereja no bolo de meu suicídio voluntário. Por sorte, não era surdo. O que ele ouviu naquele instante foi decisivo, determinante. O amparo espiritual de nosso simpático suicida foi eficiente. Essas coisas acontecem a todo momento. Nós é que em nossa santa ignorância, não percebemos. Porque a vida é muito mais simples e interessante do que imaginamos...




    Eugenio Lara, arquiteto, jornalista e designer gráfico, é fundador e editor do site PENSE - Pensamento Social Espírita [www.viasantos.com/pense], membro-fundador do Centro de Pesquisa e Documentação Espírita (CPDoc) e autor dos livros em edição digital: Racismo e Espiritismo; Milenarismo e Espiritismo; Amélie Boudet, uma Mulher de Verdade - Ensaio Biográfico; Conceito Espírita de Evolução; Os Quatro Espíritos de Kardec e Os Celtas e o Espiritismo.
    E-mail: eugenlara@hotmail.com

    sexta-feira, 22 de julho de 2011

    Religiosidade sem preconceito



    Setores religiosos marcam posição contra homofobia para mostrar que conservadorismo não é unanimidade entre fiéis


    Joana Tavares
    da Redação do BrasilDeFato

    De um lado, representantes de bancadas religiosas atacam os homossexuais e seus direitos como cidadãos. De outro, a apropriação da palavra bíblica no lema da parada LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) de São Paulo: “Amai-vos uns aos outros: basta de homofobia”. Apesar de recentes e constantes demonstrações de intolerância religiosa contra as pessoas que se atraem pelo mesmo sexo, nem sempre a religião e a homossexualidade estão de lados opostos.

    Promovido pela Rede Ecumênica de Juventude (Reju), pela entidade Koinonia – Presença Ecumênica e Serviço, pela Paróquia Anglicana Santíssima Trindade e pela Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, um ato inter-religioso e um painel foram dedicados ao tema “Religião e homoafetividade”, nos dias 9 e 10 de junho. Um grupo de igrejas cristãs organizaram uma petição pública em apoio ao PLC 122, que criminaliza a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero e tramita atualmente no Senado. Na programação oficial do 15º Mês do Orgulho LGBT de São Paulo – que culmina com a parada, dia 26 – diversas atividades colocam a relação entre religião e sexualidade em discussão. Um dos blocos previstos na marcha é dos religiosos contra a homofobia.

    O amor lança fora todo medo”
    Com esse tema bíblico, um luterano doutor em teologia, um padre e teólogo católico e uma mãe de santo se sentaram à mesma mesa para debater as concepções das religiões e a relação com a homossexualidade e a homofobia.
    Anivaldo Padilha, membro da Igreja Metodista e militante do movimento ecumênico desde a década de 1960, fez a mediação da mesa, apontando que nenhum religioso com posições contrárias aceitou participar do debate. “A homofobia muitas vezes é justificada por argumentos teológicos. No entanto, os conservadores não representam todos os religiosos”, apontou.
    Iya Maria Emilia d´Oyá, da Casa de Culto ao Orixá Ventos de Oyá (candomblé da tradição Ketu), presidente da Associação Federativa da Cultura e Cultos Afro-Brasileiros de São Bernardo do Campo e assistente social da prefeitura da mesma cidade, apontou que as religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda, possuem uma relação diferente com o sagrado em relação às religiões cristãs. Para essas religiões, os orixás são a ligação com os sentimentos e com a natureza. “Não temos livros sagrados. Nossa tradição é oral. A sexualidade é vivida e experimentada de maneira muito tranquila. A relação sexual é vista como uma troca de energia, sem indicação de formas”, disse.

    Mãe Emília, como é conhecida, complementa que há homossexuais fazendo parte dos cultos de candomblé e umbanda porque são religiões que os acolhem. “Quem já é excluído na sociedade, se sente confortado”, aponta. Ela coloca que o grande desafio é colocar a questão para diálogo, dentro e fora dos templos de qualquer religião. “A religiosidade, de qualquer tipo, pode ser uma grande arma para enfrentar a discriminação”.
    James Alison, padre e teólogo católico, apresenta as bases da doutrina para explicar a tensão entre a Igreja e a homossexualidade, colocando a relação entre a natureza e a graça. “A graça aperfeiçoa a natureza. Chegamos a ser filhos de Deus sendo o que a gente é; no florescimento da graça”. Ele explica que até muito recentemente – há menos de 50 anos – não havia conflitos entre a população LGBT e a doutrina da Igreja católica porque não havia reconhecimento dessa população. “Não era reconhecido o ser das pessoas, eram apenas atos homossexuais”, aponta.
    Com a visibilidade da causa gay e o reconhecimento de que não se poderia confundir o ser e o ato, o Vaticano finalmente se pronunciou sobre o assunto, reconhecendo que a orientação sexual não é pecado, apesar de que algumas práticas ligadas a ela podem ser assim consideradas por membros do clero. “Compreende-se que ser gay não é ser um heterossexual defeituoso; é criação de Deus. Aí vem o problema da inércia clerical, em fazer valer o entendimento que ser gay é algo que algumas pessoas simplesmente são”, coloca.

    Sequestro simbólico
    O luterano André S. Musskopf, doutor pela Escola Superior de Teologia, argumenta que a questão está ligada ao controle dos corpos e do desejo das pessoas, para o controle da riqueza e do poder. “Religião, sexo, política e poder não podem ser separados. É através desse controle que se mantém o status quo”, aponta. Ele reforça que a escolha do tema da Parada LGBT foi muito oportuna, pois salienta que a palavra de Deus pertence ao povo, não a instituições religiosas que promovem um “sequestro” dos bens materiais e simbólicos.
    “O ‘amai-vos’ tem uma dimensão política e civil, da garantia de direitos, mas também uma dimensão teológica e religiosa, na medida em que o amor é o que nos move em direção aos outros, o que nos motiva na vida. Precisamos parar de ter medo dos fantasmas e entender que a homossexualidade não precisa ser justificada, é algo comum e próximo de todos”, afirma.

    domingo, 17 de julho de 2011

    Religião, religiosidade e educação

    Por Jurema Nunes e Monica Valéria no ACORDA CULTURA

    O sagrado constitui uma categoria universal da experiência humana. Uma das formas de relacionar-se com essa categoria é através do que conhecemos por religião. A religião e a noção de religiosidade estão entre nós desde sempre. A experiência religiosa, dizem alguns, está na base da ação social e dá-lhe sentido. Religião seria o resultado do que somos capazes de registrar em relação ao inefável e religiosidade seria a disposição do indivíduo para integrar-se às coisas sagradas. Advindo do latim, re-ligare, pode ser um conjunto de práticas e crenças relacionadas com o transcendental, que tem como elementos derivativos os rituais, os códigos e as leis morais. Enquanto algumas encontram a base de tais códigos e leis nos dogmas, outras têm preceitos e interdições.

    A religião dá-nos, através dos ritos, mesmo que mínimos, uma noção de segurança - um como se - que transforma o mundo ameaçador e enigmático - como diria Bronislaw Malinowski (1884-1942), um dos fundadores da antropologia social. A religião é um fenômeno social e individual, inextricavelmente ligado a outros aspectos da cultura e da sociedade. Um exemplo disso é o fato de que, embora hoje, em África, as religiões tradicionais representem uma porcentagem menor que segmentos cristãos e islâmicos, ainda persiste a ideia de que “nascer, casar e morrer” tenha que ser permeado por tais tradições de alguma forma.

    O cerne das religiões tradicionais do continente africano é, ao que parece, a criatividade e a emoção – importante legado para nossa afro-brasilidade. Afirma-se que a religiosidade tradicional de África possui uma interação muito flexível e fluida no ambiente institucional no qual opera. Os africanos em diáspora foram capazes de criar e recriar expressões de sua religiosidade tradicional em várias situações, reagindo a mudanças, perigos e possibilidades. A religião não está longe da ideia de oficio, tendo seu foco central na ação. Parte de uma estratégia de sobrevivência, de estar no mundo, de corporeidade no chão que se pisa, servindo a fins práticos, imediatos ou remotos, sociais ou individuais. O que não exclui possibilidades de contato com o transcendental. Velhos significados são remontados em novas formas e sentidos possíveis em cada realidade. Essa transformação foi fundamental na desenvolvimento da maioria das manifestações religiosas das Américas. Sendo primordialmente voltada para o grupo, as experiências coletivas e individuais são expressas na vivência da comunidade religiosa.

    Nei Lopes afirma: “embora as religiões negro-africanas tenham suas peculiaridades, todas comungam de uma ideia central, segundo a qual a vontade do ser supremo manifesta-se por meio de heróis fundadores, entre eles vivos ou espíritos dos antepassados. Há, portanto, uma ontologia negro-africana, uma estrutura religiosa, embora os africanos não tivessem durante muito tempo um termo equivalente ao termo ocidental religião”.

    Um vasto continente, cuja população “modelou” o outro – oponente ou parceiro – de tal maneira que não somente transformou o outro, mas também se adaptou, impregnando o conhecimento da noção de relatio, uma síntese criativa, coração e expressão da experiência religiosa africana e afro-americana. A ontologia que se configura explica o significado da vida, enquanto corpo e matéria, a criação do mundo, as relações entre os seres visíveis e invisíveis. Há a busca por explicar o permanente combate e recorrente inter-relação entre o bem e o mal, a vida e a morte, saúde e doença, prazer e dor, contentamento e sofrimento, fartura e escassez... saberes e fazeres expressados e mantidos através da oralidade, por gerações. E esta ação pode aquecer geração ainda não nascida se utilizarmos os aprendizados e debates sobre tal legado como subsídio educativo, jamais meramente ilustrativo, mas constituinte de nossa história e cultura.

    Precisamos conhecer como se processa a cosmovisão “africana” buscando suas dimensões, e sua recriação no Brasil. Esse intento responde à renovação curricular que visa fortalecer o reconhecimento positivo das contribuições dos negros à sociedade brasileira.

    Aproximadamente quatro milhões de africanos escravizados chegaram aos nossos portos em sucessivas levas, trazendo anseios, crenças e muito conhecimento. Trouxeram consigo o cabedal de memórias, tudo que fica além do esquecimento, algo que constrói e vivifica. Muitos sucumbiram, mas todos provaram sua resiliência cotidianamente. Aquele que resistiu, o fez em corpo, verbo, som e gesto. Corpo enquanto lugar, que recebe o eterno e o realiza.

    As tradições aqui mantidas resistiram pela força deste corpo que se fez verbo pelo poder que a palavra traz. Mito reiterado no calor dos cânticos, no frescor das ervas, no cozimento das oferendas, no destemor dos combates.

    O conceito de ancestralidade mítica compreende um tempo numa composição de eventos que aconteceram, estão acontecendo ou acontecerão num futuro próximo. Para fazer sentido, o tempo tem de ser experimentado, assim se tornando real. É através da sociedade, presente e passada, que ele é vivenciado. Tal sociedade pode ser a de hoje, mas pode ser e ter a mesma potência àquela de muitas gerações anteriores. Cada grupo, cada nação, cada casa religiosa tem um história, que se move do instante em que se vive para o enorme passado, uma história orquestrada pelo mito.

    Há inumeráveis mitos no continente africano que narram a criação do universo, a origem do homem. O passado não está perdido, é lugar cheio de atividades e acontecimentos. Aqui o lugar corpo-memória se funde à pedagogia do cotidiano – intermediando as relações com o Todo. Aqui, no Novo Mundo, homens e mulheres lembraram-se de suas tradições ancestrais o que estava mais próximo de seus sentimentos e mentes. Como os poderes cósmicos permeiam a vida, o gênero humano escolhe manter tais poderes, destruí-los ou enfraquecê-los por meio de sua experiência. O ato ritualístico nesta perspectiva é validado no aqui-e-agora, na temporalidade do instante, porque tal momento contém o universo.

    Conhecer, aprender e respeitar as expressões culturais negras
    Em conversas com professores pode-se observar que o tema religiosidade é o mais difícil de ser trabalhado. Isto ocorre pelas vivências, em sua maioria constrangedoras, acontecidas em suas vidas pessoais e profissionais no espaço escolar. Apesar de discriminada, a religião de matriz africana é assunto na sala de aula. Para exemplificar, seguem dois relatos colhidos em capacitações do Projeto “A Cor da Cultura”, em 2006:

    Uma professora nos conta que um aluno cita que nas redondezas da escola existe um “centro de macumba” que toca nos fins de semana a noite toda e, como ele é vizinho, já aprendeu todas as músicas. Neste momento começa um reboliço na sala com comentários contra ao Centro Espírita e uma defesa de alguns participantes (alunos ogãs e rodantes) já se pronunciam, em defesa do espaço religioso cantando os “pontos” que conhecem. Uns afirmam que aprenderam de tanto ouvir e outros admitem que frequentam o lugar.

    A presença de um iniciado ao culto da tradição dos orixás, iaô, em sala de aula logo após o processo religioso, trouxe uma confusão para a turma. O desrespeito ao colega que utilizava seus aparatos (fios de conta e cabeça coberta) foi apresentado através das risadas e apelidos depreciativos ao “macumbeiro”.

    Situações como as descritas acima possibilitam ao professor relacionar o momento com as re-significações que a Lei 10639/03 permite e determina a inclusão da discussão de forma elucidativa, através de novas informações alcançadas em pesquisas na área envolvida, no material do Kit do Projeto A Cor da Cultura e outras fontes. Desse modo, o alcance da pesquisa envolverá a toda comunidade escolar e, assim, abordar o tema e outros, que virão compor a discussão sobre a presença da população de origem africana no Brasil.

    A partir dos anos 90, fruto de reivindicações do movimento negro, vimos uma nova abordagem sob a égide da Lei. Essa mudança paulatina apontava para a diversidade em termos de proposta curricular. Aponta-se para a importância de conhecer, aprender e respeitar as expressões culturais negras, entre elas a religiosidade. Valorizar tais manifestações possibilita compreender os diferentes modos de viver, conviver, pensar e ser no mundo. O desafio está em ampliar o olhar dos docentes e, consequentemente, dos discentes - para que haja uma real mudança nas concepções engessadas que o racismo e as pré-concepções nos legaram. Estamos numa forja, aprendendo. A escola brasileira não pode mais silenciar–se a esse saber, negando aos alunos tal conhecimento, que evoca a re-criação e a capacidade de resiliência que nos forma. Numa realidade como a nossa, isso é mais que válido.

    Sabemos que essas tradições, tão importantes quanto qualquer outra, foram ditas como inferiores ou reduzidas a pecha de crendices, e ainda hoje precisamos de uma lei que imponha a necessidade de ensinar tal saber nas escolas. Esse é, na justa medida, o desafio da educação para diversidade. Uma valorização da história e ancestralidade africana e de suas manifestações no Brasil, não a partir de um “exotismo”, mas a partir do respeito e de um olhar sobre nós mesmos, nossa inteireza. A invibilização da portentosa herança africana em terras brasileiras foi cosida em racismos, pré-concepções e conseqüente falta de conhecimento, e isto foi feito por anos a fio. Tal ação não condiz com as propostas contidas na LDB, mas se constitui um real desafio. Entretanto, para alguns autores, é possível e necessário, confiar nos caminhos da ancestralidade como forma de apropriação pedagógica para compartilhar ensinamentos da cosmovisão africana em instituições de educação formal.

    sábado, 16 de julho de 2011

    Deolindo Amorim: o Filósofo e Didata do Espiritismo



  • Escreve: Jaci Regis no PENSE


  • Deolindo Amorim foi um grande didata a serviço do pensamento espírita. De personalidade serena e afetuosa, lutou incessantemente contra a corrupção do pensamento doutrinário e pelo entendimento da obra de Allan Kardec, sempre de forma elegante e independente.


    Deolindo Amorim nasceu em 23 de janeiro de 1906 no Estado da Bahia, numa família pobre e católica. Foi presbiteriano fervoroso. Rompeu com sua igreja e permaneceu muitos anos sem definição filosófica ou religiosa. Em 1935 descobriu o Espiritismo.

    A palavra descobriu é empregada no seu sentido de percepção totalizadora de uma idéia. É, certamente, um exercício intelectual, mas ultrapassa esse universo para penetrar no universo da apreensão do objeto.

    Quando se descobre uma doutrina, por exemplo, ela se incorpora a nossa estrutura mental, ao nosso modo de estar no mundo.

    Bem ao contrário de qualquer recaída fanática, a descoberta é a forma de inserir-se no conteúdo, abrangendo, pouco a pouco, não apenas os enunciados, as ideias, os conteúdos. É mais, percebe-se os objetivos, divisa-se o rumo e a essência. Enquanto o adepto, o estudioso permanece na superfície ou na profundidade da ideia, o descobridor se integra, faz uma ligação definitiva com a Doutrina. Foi o que aconteceu com Deolindo Amorim.

    Nascido a 23 de janeiro de 1908, Deolindo mudou-se para o Rio de Janeiro. Radicado na antiga capital do Brasil, tornou-se jornalista e, posteriormente funcionário público, tendo galgado elevada posição funcional no Ministério da Fazenda.

    Desde que descobriu a Doutrina Espírita, tornou-se, progressiva e determinadamente, no baluarte pela definição específica do que é o Espiritismo.

    Conheci pessoalmente Deolindo Amorim. Missivista atencioso, ele teceu comentários elogiosos à minha obra “Comportamento Espírita”, na ocasião de seu lançamento. A dimensão de seu trabalho certamente não cabe nos limites destas notas. Sua figura simpática, serena, não significava, entretanto, fraqueza ou acomodação. Polemizou com companheiros de forma responsável e respeitosa. Prosseguiu seu caminho com coerência e dignidade. Manteve posições firmes, mesmo contra amigos e situações.

    Personalidade afetuosa, mostrou uma determinação e uma estrutura de pensamento ímpares. Foi, ao longo de sua vida, uma barreira positiva, definida, contra a corrupção do pensamento doutrinário. Lutou sem descanso pelo bom entendimento da obra de Allan Kardec.

    Creio que a figura ímpar de Deolindo pode ser definida como o didata por excelência, o professor eficaz do Espiritismo.

    O ATIVISTA

    Deolindo não ficou na teoria. Além de escrever livros, editar jornais, representar periódicos e enviar artigos para muitos jornais e revistas, proferir conferências, tomou iniciativas que marcaram o movimento espírita brasileiro.

    Já em 1939 ele idealizou e promoveu o I Congresso de Jornalistas e Escritores Espíritas, realizado na cidade do Rio de Janeiro. Foi uma reunião de intelectuais espíritas, semente de propostas posteriores. O momento era crucial, o Espiritismo era perseguido pela Igreja e pela Polícia. A II Grande Guerra estava iniciada.

    Esteve ao lado de Leopoldo Machado na promoção do I Congresso de Mocidades e Juventudes Espíritas do Brasil e na criação do Conselho Consultivo de Mocidades Espíritas.
    Foi parceiro fiel de Aurino Souto, presidente da Liga Espírita do Brasil. Finalmente, fundou em 7 de dezembro de 1957 O Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB), instituição de grande influência no estudo e divulgação do Espiritismo, com sede no Rio de Janeiro e que dirigiu até sua desencarnação.

    EM DEFESA DO ESPIRITISMO

    Um dos problemas mais emergentes relativos ao bom entendimento da Doutrina Espírita foi a constante tentativa de confundi-lo seja com a Umbanda, o Candomblé, com as religiões cristãs e doutrinas espiritualistas. Principalmente com os cultos afro-católicos, as confusões foram muitos grandes. Hoje, talvez, esse aspecto esteja quase superado mas já foi mais grave. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB) pretendeu fazer uma divisão absurda: chamar de Espiritismo todas as práticas mediúnicas ou semelhantes e de Doutrina Espírita, a obra de Kardec.

    Em 1947 Deolindo publicou Africanismo e Espiritismo, onde deixa clara a inexistência de ligações filosóficas, práticas ou doutrinárias entre o Espiritismo e as correntes espiritualistas apoiadas na cultura africana, trazida pelo escravos e que se converteram em várias seitas de gosto popular.

    Determinado a explanar, didaticamente, as bases da doutrina de Allan Kardec, ele escreveu “O Espiritismo e os Problemas Humanos”, “O Espiritismo à Luz da Crítica”, em resposta a um padre que escrevera livro atacando a Doutrina. “Espiritismo e Criminologia”, oriundo de uma conferência no Instituto de Criminologia da Universidade do Rio de Janeiro. Em 1958, lançou “O Espiritismo e as Doutrina Espiritualistas”, onde não combate nenhuma corrente ou ideia espiritualista, como a Teosofia, a Rosacruz, seitas de origem asiática ou africana. Ele simplesmente define, separa, identifica o que é o Espiritismo, mostrando a sua independência filosófica, embora ressaltando eventuais coincidências de pontos filosóficos, devido à base espiritualista desses movimentos.

    O DIDATA DA DOUTRINA

    Deolindo não lançou teorias, nem propôs ideias revolucionárias de atualização ou desenvolvimento da Doutrina. Esmerou-se e o fez com absoluto sucesso, em definir o conteúdo, a abrangência, o papel e o lugar do Espiritismo na sociedade e nas doutrinas espiritualistas.

    Não se pense, todavia, que tenha sido ortodoxo e conservador. Nada disso. Foi uma mente aberta ao novo, entendeu perfeitamente o sentido evolucionista do Espiritismo e recusou-se a aceitar as ideias conservadoras, retrógradas.

    Na Introdução de “O Espiritismo e as Doutrina Espiritualistas” ele diz: “Escrevemos este trabalho com o sincero propósito de concorrer, embora despretensiosamente, para que se esclareça cada vez mais a verdadeira posição do Espiritismo perante as doutrinas e os cultos espiritualistas. Todas as doutrinas, como todos os credos, sejam quais forem as suas origens, nos merecem o mais justo respeito. (...) Devemos, porém, dizer claramente o que é e o que não é Espiritismo, para que não haja confusão nem tomem corpo interpretações duvidosas.”

    E reafirma sua posição: “Repetimos que o Espiritismo é universalista, porque os fatos do espírito são universais, os seus problemas têm o sentido da universalidade, mas também é oportuno acentuar que o Espiritismo não é uma forma de sincretismo doutrinário ou religioso, sem unidade nem consistência”.

    Que é o Espiritismo, afinal? Vejamos o que nos diz Allan Kardec: O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Ciência de observação, sim, nem precisamos dizê-lo, porque tem por objeto uma fenomenologia que já foi comprovada em experiências; doutrina filosófica, realmente, porque, tendo por base experimental o fenômeno mediúnico, faz inquirições sobre as causas e leis, deduzindo consequências que incidem no domínio moral, da religião, da filosofia em si. Eis, em síntese, o que é o Espiritismo

    Finalizando o excelente “O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas”, afirma que “Como doutrina essencialmente progressista, recebe os enriquecimentos das ciências, como acompanha os fenômenos sociais e culturais, sem perder, todavia, a sua integridade e as suas características. Nenhuma religião, nenhum culto espiritualista poderia absorvê-lo ou confundi-lo, a despeito da existência de aspectos comuns, porque as suas concepções basilares, tendo consequências científicas, filosóficas e religiosas, não permitem adaptações e concessões arbitrárias. Desta proposição, consequentemente, chegamos à conclusão de que O Espiritismo é uma doutrina que se basta a si mesma, sem empréstimos nem acréscimos artificiais”.

    A QUESTÃO RELIGIOSA

    Sobre a questão religiosa no Espiritismo, sua posição foi bem igual a de Kardec. Citando as palavras do fundador, concluía que, como qualquer filosofia espiritualista, o Espiritismo tinha consequências religiosas, mas de forma alguma se tornava uma religião constituída.

    “Allan Kardec frisa bem que o Espiritismo não é uma religião constituída. Não o fora nos primeiros tempos, quando o seus delineamentos ainda estavam na fase de elaboração, nem o seria hoje, com a experiência histórica de mais de um século, quando a Doutrina já está definitivamente consolidada. O qualificativo constituída não exclui a ideia religiosa. Há muita diferença entre o culto organizado e atos religiosos ou consequências religiosas. O Espiritismo tem, indiscutivelmente, consequências religiosas, e muito profundas, mas a sua esquematização, a sua índole e a sua conceituação básica não comportam qualquer forma de culto material, nem, sacerdotes, nem chefes carismáticos... O verdadeiro culto para o Espiritismo é o culto interior, é o sentimento, a elevação do pensamento.”

    “O fato de haver Allan Kardec preferido não instituir nenhum sistema moral, porque lhe bastou a moral cristã para o coroamento da doutrina por ele codificada, não quer dizer que o Espiritismo concorde ou deva concordar com tudo quanto ensinam as diversas religiões e denominações cristãs; muito menos seria possível introduzir no Espiritismo práticas, dogmas e formas peculiares às religiões oriundas do Cristianismo.”

    E, “não é possível reduzir o Espiritismo às limitações de uma seita cristã, assim como não se pode concordar com a suposição corrente de que tudo seja a mesma coisa.”

    “Tendo-se preocupado fundamentalmente com a interpretação filosófica do fenômeno e suas consequências na ordem moral, a Codificação do Espiritismo não cogitou, nem poderia cogitar, de qualquer culto material, assim como não prescreve cerimônias de iniciação, nem hierarquia sacerdotal” .

    Se reconhecida, como é obvio, que o Espiritismo tem uma ligação estreita com a moral de Jesus, e consequentemente com o Evangelho, deixa claro que essa foi uma decisão de Kardec e separa de maneira muito clara o cristianismo do Espiritismo.

    Pelo fato de aceitar a mensagem do evangelho, afirmou, não significa que o Espiritismo aceita tudo do cristianismo. Ele sempre foi contrário à confusão dos que tentam diluir o Espiritismo seja com os cultos espiritualistas, seja com os rituais do cristianismo. Repudiava o tudo é a mesma coisa, frase usada para justificar as deturpações gritantes contra a identidade da Doutrina.

    “É o Espiritismo que interpreta o evangelho, não é o evangelho que interpreta o Espiritismo.”

    REFORÇO À INTELECTUALIDADE

    Como é comum no movimento espírita, Deolindo foi muito criticado por optar pela cultura e pela inteligência. Existiu, no Rio de Janeiro, a Faculdade Brasileira de Estudos Psíquicos que ele não fundou, como às vezes se diz, mas a que pertenceu e foi seu último presidente. Tornada insubsistente a continuidade da Faculdade, ele promoveu a criação do Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB) fundado em 7 de dezembro de 1957 e por ele dirigido até sua desencarnação.

    Quanto à questão da unificação do movimento, Deolindo nunca aderiu à Federação Espírita Brasileira, tanto que aliou-se à Liga Espírita do Brasil, entidade criada em 1927, por Aurino Souto e da qual Deolindo foi o último 2º vice-presidente.

    Em 1949, com o chamado Pacto Áureo, a Liga Espírita do Brasil, que não tinha representatividade nacional, deixou de existir, transformando-se numa entidade federativa estadual. Hoje, depois de várias denominações, é a USERJ - União das Sociedades Espíritas do Estado do Rio de Janeiro.

    Deolindo foi contra o acordo. Suas palavras sobre o assunto, em 1949: “quando a Liga aceitou o Acordo de 5 de outubro, acordo que se denominou depois, Pacto Áureo, tomei posição contrária (...) votei contra a resolução, porque não concordei com o modo pelo qual se firmara esse documento. E o fiz em voz alta, de pé, na Assembleia, com mais doze companheiros que pensavam da mesma forma”.

    Admirava muito Léon Denis, de quem disse: “Léon Denis pertence, com inteira justiça, à galeria dos mais autênticos filósofos espíritas. Discípulo e continuador de Allan Kardec, ninguém o foi, até hoje, com mais afeição e com vigor intelectual”.

    Mas seu respeito a sua fidelidade ao pensamento de Allan Kardec foi não apenas exemplar, mas de um tirocínio brilhante e uma defesa inteligente e atuante.

    Em 24 de abril de 1984, aos 77 anos de vida terrena, desencarnou Deolindo Amorim, fechando um ciclo fecundo de pensadores espíritas, dos quais, com justiça, ele está num lugar privilegiado.

    Todavia, mais do que nunca, neste momento em que o Espiritismo precisa decidir seu próprio caminho, o pensamento, a palavra e a postura de Deolindo Amorim são elementos indispensáveis para entender, seguir e definir o futuro da Doutrina.

    Fonte: Jornal de cultura espírita “Abertura”, dezembro de 2000, ano XIII, nº 155 - Santos-SP.

    Jaci Regis (1932-2010), psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS), idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE), fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”, “Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.

    domingo, 29 de maio de 2011

    Aborto seletivo pode explicar déficit de 8 milhões de meninas na Índia

    A India e suas contradições: espiritualismo x materialismo; alta tecnologia x pobreza extrema; humanidade x consumismo...

    Famílias forçam mães a abortar os bebês após exames confirmando sexo feminino
    Moncho Torres/24.05.2011/EFEMoncho Torres/24.05.2011/EFE

    Nas últimas três décadas, houve 12 milhões de abortos seletivos de fetos femininos na Índia
    A indiana Kulwant (aqui chamada por um nome fictício, por razões legais) tem três filhas com idades de 24, 23 e 20 anos e um filho com 16 anos.
    No período entre os nascimentos da terceira menina e do menino, Kulwant engravidou três vezes, mas foi forçada pela família a abortar os bebês após exames de ultrassom terem confirmado que eram do sexo feminino.
    O caso ilustra um problema cada vez mais sério na Índia: o censo de 2011 no país revelou um forte declínio no número de meninas com menos de sete anos.
    Militantes que fazem campanha para que a prática de abortar meninas seja abandonada temem que oito milhões de fetos do sexo feminino tenham sido abortados na última década. Para alguns, o que acontece hoje na Índia é infanticídio.
    Emocionada, Kulwant disse que a sogra a "insultava por eu ter tido apenas meninas. Ela disse que seu filho ia se divorciar de mim se eu não tivesse um menino".
    Ela contou que tem vívidas lembranças do primeiro aborto.
    - O bebê já tinha quase cinco meses. Ela era linda. Eu tenho saudades dela e das outras que matamos.

    Indesejadas

    Até o nascimento do filho, todos os dias, Kulwant levava surras e ouvia xingamentos do marido, sogra e cunhado. Uma vez, segundo ela, o grupo tentou colocar fogo nela.
    - Eles estavam com raiva. Não queriam meninas na família, queriam meninos para que pudessem receber bons dotes.
    A prática de pagar dotes foi declarada ilegal na Índia em 1961, mas o problema persiste e o valor do dote sobe constantemente, afetando ricos e pobres.
    O marido de Kulwant morreu três anos após o nascimento do filho.
    - Foi praga por causa das meninas que matamos. Por isso ele morreu tão jovem.
    A vizinha de Kulwant, Rekha (nome fictício), tem uma menina de três anos de idade. Em setembro do ano passado, quando ficou grávida novamente, foi forçada pela sogra a abortar dois gêmeos após um exame de ultrassom revelar que eram meninas.
    - Eu disse que não há diferença entre meninas e meninos, mas aqui eles pensam de outra forma. Não há felicidade quando nasce uma menina. Eles dizem que o menino vai carregar a linhagem adiante, mas meninas se casam e vão para uma outra família.
    Kulwant e Rekha vivem em Sagarpur, uma região de classe média-baixa no sudeste de Nova Déli.

    Bebê Milagre

    Longe dali, na cidadezinha de Bihvarpur, no Estado de Bihar, a bebê Anuskha - a mais jovem de quatro meninas - sobreviveu por pouco.
    Quando sua mãe, Sunita Devi, ficou grávida em 2009, foi a uma clínica para fazer um exame de ultrassom.
    - Perguntei ao médico se era menina ou menino. Eu disse a ela que era pobre e que tinha três meninas, e não podia tomar conta de mais uma.
    A médica disse que o bebê era do sexo feminino.
    - Pedi um aborto. Ela disse que ia custar US$ 110.
    Sunita não tinha o dinheiro e não fez o aborto. Hoje, Anushka tem nove meses de idade. A mãe diz que não sabe como vai alimentar e educar as filhas, ou pagar por seus dotes.
    A história dessas mulheres se repete em milhões de lares em toda a Índia, afetando ricos e pobres. Porém, quanto maior o poder econômico da família, menores são as chances de que "milagres" como o de Anushka se repitam.

    Números

    Embora o número total de mulheres tenha aumentado no país - devido a fatores como um aumento na expectativa de vida - a proporção entre o número de meninas e o de meninos no país é a segunda pior do mundo, só ficando atrás da China.
    Em 1961, para cada mil meninos com menos de sete anos de idade, havia na Índia 976 meninas. Hoje, o índice nacional caiu para 914 meninas. Os números são piores em algumas localidades.
    Em um distrito na região sudoeste de Nova Déli, o índice é de 836 meninas com menos de sete anos para cada mil meninos. A média em toda a capital não é muito melhor, 866 meninas para cada mil meninos.
    Os dois Estados com os piores índices, Punjab e Haryana, são vizinhos da capital. Nesses locais, no entanto, houve alguma melhora em comparação com censo anterior.
    O censo recente revelou pioras nos índices de 17 Estados, com as piores quedas registradas em Jammu e Kashmir.

    'Vergonha Nacional'

    Especialistas atribuem o problema a uma série de fatores, entre eles, infanticídio, abuso e negligência de crianças do sexo feminino.
    O governo indiano foi forçado a admitir que sua estratégia para combater o problema falhou, disse o ministro da Fazenda do país, G.K. Pillai, após a publicação do relatório do censo.
    - Quaisquer que tenham sido as medidas adotadas nos últimos 40 anos, elas não tiveram nenhum impacto sobre os números.
    O primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, qualificou o aborto de fetos do sexo feminino e o infanticídio como uma "vergonha nacional" e pediu que haja uma cruzada para salvar bebês meninas.
    O mais conhecido ativista indiano a fazer campanhas sobre o assunto, Sabu George, disse, no entanto, que até o momento o governo não se empenhou verdadeiramente em parar com a prática.
    Para George e outros militantes, o declínio no número de meninas se deve, principalmente, à disponibilidade cada vez maior, na Índia, de exames pré-natais para a determinação do sexo do bebê.

    Controle da Natalidade

    George explicou que, até 30 anos atrás, os índices eram "razoáveis". Porém, em 1974, o prestigioso All India Institute of Medical Sciences publicou um estudo que dizia que testes para a determinação do sexo do bebê eram uma benção para as mulheres indianas.
    Para o instituto, as mulheres não precisavam mais ter vários bebês para atingir o número certo de filhos homens. A entidade encorajou a determinação e eliminação de fetos do sexo feminino como um instrumento efetivo de controle populacional.
    - No final da década de 80, todos os jornais de Nova Déli estavam anunciando ultrassons para a determinação de sexo. Clínicas do Punjab se gabavam de que tinham dez anos de experiência em eliminar meninas e convidavam os pais a visitá-las.
    Em 1994, o o Ato Teste de Determinação Pré-Natal tornou abortos para a seleção do sexo ilegais. Em 2004, a lei recebeu uma emenda proibindo a seleção do sexo do bebê mesmo no estágio anterior à concepção.
    O aborto de forma geral é permitido até as primeiras 12 semanas de gravidez. O sexo do feto só pode ser determinado por ultrassom após cerca de 14 semanas.
    "O que é necessário é uma implementação mais severa da lei", disse Varsha Joshi, diretora de operações do censo em Nova Déli.
    Existem hoje na Índia 40 mil clínicas de ultrassom registradas e muitas mais sem registro. Segundo Joshi, a maioria das famílias envolvidas na prática pertence à classe média indiana, hoje em expansão, e à elite econômica do país. Para ela, esses grupos sabem que a tecnologia existe e tem condições de pagar pelo teste e subsequente aborto.
    "Temos de adotar medidas efetivas para controlar a promoção da determinação do sexo pela comunidade médica. E abrir processos contra médicos que fazem isso", disse o ativista Sabu George.
    - Caso contrário, temos medo de pensar em como será a situação em 2021.

    Modelo a Ser Seguido?

    Alguns Estados indianos, no entanto, vêm criando iniciativas que podem, talvez, servir de modelo para os demais.
    É o caso do Estado de Bihar, onde famílias de baixa renda estão participando do Esquema de Proteção da Menina.
    Como parte do programa, o Estado investe duas mil rúpias (cerca de R$ 70) em um fundo aberto no nome da criança. O dinheiro cresce ao longo da vida da menina. Quando ela completa 18 anos, segundo as autoridades, o fundo vale dez vezes mais e pode ser usado para pagar pelo casamento ou pela educação universitária da menina.
    O programa está disponível apenas para os que vivem abaixo da linha da pobreza e cada família pode registrar apenas duas filhas.
    A iniciativa, anunciada em novembro de 2007, é parte de um plano do governo para tornar bebês meninas desejadas e, ao mesmo tempo, tornar atraente a ideia de uma família pequena.
    Infelizmente, o programa não pode ajudar Anushka, o "bebê milagre". Sua mãe é analfabeta e ela não tem certidão de nascimento, então não pode participar do esquema.

    Fonte: BBC Brasil