por
Miguel Nicolelis*, especial para o
Viomundo
Desde que cheguei ao Brasil, há duas semanas, eu vinha sentindo uma
sensação muito estranha. Como se fora acometido por um ataque contínuo
da famosa ilusão, conhecida popularmente como déjà vu, eu passei esses
últimos 15 dias tendo a impressão de nunca ter saído de casa, lá na
pacata Chapel Hill, Carolina do Norte, Estados Unidos.
Mas como isso poderia ser verdade? Durante esse tempo todo eu
claramente estava ou São Paulo ou em Natal. Todo mundo ao meu redor
falava português, não inglês. Todo mundo era gentil. A comida tinha
gosto, as pessoas sorriam na rua. No aeroporto, por exemplo, não
precisava abrir a mala de mão, tirar computador, tirar sapato, tirar o
cinto, ou entrar no scan de corpo todo para provar que eu não era um
terrorista. Ainda assim, com todas essas provas evidentes de que eu
estava no Brasil e não nos EUA, até no jogo do Palmeiras, no meio da
imortal “porcada”, a sensação era a mesma: eu não saí da América do
Norte! Mesmo quando faltou luz na Arena de Barueri durante o jogo,
porque nem a 25 km da capital paulista a Eletropaulo consegue garantir o
suprimento de energia elétrica para um prélio vital do time do coração
do ex-governador do estado (aparentemente ninguém vai muito com a cara
dele na Eletropaulo. Nada a ver com o Palmeiras), eu consegui me sentir à
vontade.
Custou-me muito a descobrir o que se sucedia.
Porém, ontem à noite, durante o debate dos candidatos a Presidência
da República na Rede Record, uma verdadeira revelação me veio à mente.
De repente, numa epifania, como poucas que tive na vida, tudo ficou
muito claro. Tudo evidente. Não havia nada de errado com meus sentidos,
nem com a minha mente. Havia, sim, todo um contexto que fez com que o
meu cérebro de meia idade revivesse anos de experiências traumatizantes
na América do Norte.
Pois ali na minha frente, na TV, não estava o candidato José Serra,
do PSDB, o “partido do salário mais defasado do Brasil”, como gostam de
frisar os sofridos professores da rede pública de ensino paulistana, mas
sim uma encarnação perfeita, mesmo que caricata, de um verdadeiro
George Bush tropical. Para os que estão confusos, eu me explico de
imediato. Orientado por um marqueteiro que, se não é americano nato,
provavelmente fez um bom estágio na “máquina de moer carne de
candidatos” em que se transformou a indústria de marketing político
americano, o candidato Serra tem utilizado todos os truques da bíblia
Republicana. Como estudante aplicado que ainda não se graduou (fato
corriqueiro na sua biografia), ele está pronto para realizar uns “exames
difíceis” e ser aceito para uma pós-graduação em aniquilação de
caracteres em alguma universidade de Nova Iorque.
Ao ouvir e ver o candidato, ao longo dessas duas semanas e no debate
de ontem à noite, eu pude identificar facilmente todos os truques e
estratégias patenteados pelo partido Republicano Americano. Pasmem
vocês, nos últimos anos, essa mensagem rasa de ódio, preconceito,
racismo, coberta por camadas recentes de fé e devoção cristã, tem sido
prontamente empacotada e distribuída para o consumo do pobre povo
daquela nação, pela mídia oficial que gravita ao seu redor.
Para quem, como eu, vive há 22 anos nos EUA, não resta mais nenhuma
dúvida. Quem quer que tenha definido a estratégia da campanha do
candidato Serra decidiu importar para a disputa presidencial brasileira
tanto a estratégia vergonhosa e peçonhenta da “vitória a qualquer
custo”, como toda a truculência e assalto à verdade que têm
caracterizado as últimas eleições nos Estados Unidos. Apelando
invariavelmente para o que há de mais sórdido na natureza humana, nessa
abordagem de marketing político nem os fatos, nem os dados ou as
estatísticas, muito menos a verdade ou a realidade importam. O objetivo é
simplesmente paralisar o candidato adversário e causar consternação
geral no eleitorado, através de um bombardeio incessante de denúncias
(verdadeiras ou não, não faz diferença), meias calúnias, ou difamações,
mesmo que elas sejam as mais absurdas possíveis.
Assim, de repente, Obama não era mais americano, mas um agente
queniano obcecado em transformar a nação americana numa república
islâmica. Como lá, aqui Dilma Rousseff agora é chamada de búlgara, em
correntes de emails clandestinos. Como os EUA de Bill Clinton, apesar de
o país ter experimentado o maior boom econômico em recente memória, foi
vendido ao povo americano como estando em petição de miséria pelo então
candidato de primeira viagem George Bush.
Aqui, o Brasil de Lula, que desfruta do melhor momento de toda a sua
história, provavelmente desde o período em que os últimos dinossauros
deixaram suas pegadas no que é hoje o município de Sousa, na Paraíba,
passa a ser vendido como um país em estado de caos perpétuo, algo
alarmante mesmo. Ao distorcer a verdade, os fatos, os números e, num
último capítulo de manipulação extremada, a própria percepção da
realidade, através do pronto e voluntário reforço do bombardeio
midiático, que simplesmente repete o trololó do candidato (para usar o
seu vernáculo favorito), sem crítica, sem análise, sem um pingo de
honestidade jornalística, busca-se, como nos EUA de George Bush e do
partido Republicano, vender o branco como preto, a comédia como farsa.
Não interessa que 26 milhões de brasileiros tenham saído da miséria.
Nem que pela primeira vez na nossa história tenhamos a chance de remover
o substantivo masculino “pobre” dos dicionários da língua portuguesa.
Não faz a menor diferença que 15 milhões de novos empregos tenham sido
criados nos últimos anos. Ou que, pela primeira vez desde que se tem
notícia, o Brasil seja respeitado por toda a comunidade internacional.
Para o candidato da oposição esse número insignificante de empregos é,
na sua realidade marciana, fruto apenas de uma maior fiscalização que
empurrou com a barriga do livro de multas 10 milhões de pessoas para o
emprego formal desde o governo do imperador FHC.
Nada, nem a realidade, é capaz de impressionar os fariseus e arautos
que estão sempre prontos a denegrir o sucesso desse país de mulatos,
imigrantes e gente que trabalha e batalha incansavelmente para
sobreviver ao preconceito, ao racismo, à indiferença e à arrogância
daqueles que foram rejeitados pelas urnas e vencidos por um mero
torneiro mecânico que virou pop star da política internacional. Nada vai
conseguir remover o gosto amargo desse agora já fato histórico, que
atormenta, como a dor de um membro fantasma, o ego daqueles que nunca
acreditaram ser o povo brasileiro capaz de construir uma nação digna,
justa e democrática com o seu próprio esforço. Como George Bush ao
Norte, o seu clone do hemisfério sul não governa para o povo, nem dele
busca a sua inspiração. A sua busca pelo poder serve a outros
interesses; o maior deles, justiça seja feita, não é escuso, somente
irrelevante, visto tratar-se apenas do arquivo morto da sua vaidade, o
maior dos defeitos humanos, já dizia dona Lygia, minha santa avó
anarquista. Para esse candidato, basta-lhe poder adicionar no currículo
uma linha que dirá: Presidente do Brasil (de tanto a tanto). Vaidade é
assim, contenta-se com pouco, desde que esse pouco venha embalado num
gigantesco espelho.
Voltando à estratégia americana de ganhar eleições, numa segunda
fase, caso o oponente sobreviva ao primeiro assalto, apela-se para outra
arma infalível: a evidente falta de valores cristãos do oponente,
manifestada pela sua explícita aquiescência para com o aborto; sua
libertinagem sexual e falta de valores morais, invariavelmente associada
à defesa do fantasma que assombra a tradição, família e propriedade da
direita histérica, representado pela tão difamada quanto legítima
aprovação da união civil de casais homossexuais. Nesse rolo compressor
implacável, pois o que vale é a vitória, custe o que custar, pouco
importa ao George Bush tupiniquim que milhares de mulheres humildes e
abandonadas morram todos os anos, pelos hospitais e prontos-socorros
desse Brasil afora, vítimas de infecções horrendas, causadas por abortos
clandestinos.
George Bush, tanto o original quanto o genérico dos trópicos,
provavelmente conhece muitas mulheres do seu meio que, por contingências
e vicissitudes da vida, foram forçadas a abortos em clínicas bem
equipadas, conduzidas por profissionais altamente especializados,
regiamente pagos para tal prática. Nenhum dos dois George Bushes, porém,
jamais deu um plantão no pronto-socorro do Hospital das Clínicas de São
Paulo e testemunhou, com os próprios olhos e lágrimas, a morte de uma
adolescente, vítima de septicemia generalizada, causada por um aborto
ilegal, cometido por algum carniceiro que se passou por médico e
salvador.
Alguns amigos de longa data, que também vivem no exterior, andam
espantados com o grau de violência, mentiras e fraudes morais dessa
campanha eleitoral brasileira. Alguns usam termos como crime lesa pátria
para descrever as ações do candidato do Brasil que não deu certo, seus
aliados e a grande mídia.
Poucos se surpreenderam, porém, com o fato de que até o atentado da
bolinha de papel foi transformado em evento digno de investigação no
maior telejornal do hemisfério sul (ou seria da zona sul do Rio de
Janeiro? Não sei bem). No caso em questão, como nos EUA, a dita grande
imprensa que circunda a candidatura do George Bush tupiniquim acusa o
Presidente da República de não se comportar com apropriado decoro
presidencial, ao tirar um bom sarro e trazer à tona, com bom humor, a
melhor metáfora futebolística que poderia descrever a farsa. Sejamos
honestos, a completa fabricação, desmascarada em verso, prosa e análise
de vídeo, quadro a quadro, por um brilhante professor de jornalismo
digital gaúcho.
Curiosamente, a mesma imprensa e seus arautos colunistas não tecem um
único comentário sobre a gravidade do fato de ter um pretendente ao
cargo máximo da República ter aceitado participar de uma clara e
explicita fabricação. Ou será que esse detalhe não merece algumas mal
traçadas linhas da imprensa? Caso ainda estivéssemos no meio de uma
campanha tipicamente brasileira, o já internacionalmente famoso
“atentado da bolinha de papel” seria motivo das mais variadas chacotas e
piadas de botequim. Mas como estamos vivendo dentro de um verdadeiro
clone das campanhas americanas, querem criminalizar até a bolinha de
papel. Se a moda pega, só eu conheço pelo menos uns dez médicos
brasileiros, extremamente famosos, antigos colegas de Colégio
Bandeirantes e da Faculdade de Medicina da USP, que logo poderiam estar
respondendo a processos por crimes hediondos, haja vista terem sido eles
famosos terroristas do passado, que se valiam, não de uma, mas de uma
verdadeira enxurrada, dessas armas de destruição em massa (de pulgas)
para atingir professores menos avisados, que ousavam dar de costas para
tais criminosos sem alma .
Valha-me Nossa Senhora da Aparecida — certamente o nosso George Bush
tupiniquim aprovaria esse meu apelo aos céus –, nós, brasileiros, não
merecemos ser a próxima vítima do entulho ético do marketing eleitoral
americano. Nós merecemos algo muito melhor. Pode parecer paranoia de
neurocientista exilado, mas nos EUA eu testemunhei como os arautos dessa
forma de fazer política, representado pelo George Bush original e seus
asseclas, conseguiram vender, com grande sucesso e fanfarra, uma guerra
injustificável, que causou a morte de mais de 50 mil americanos e
centenas de milhares de civis iraquianos inocentes.
Tudo começou com uma eleição roubada, decidida pela Corte Suprema.
Tudo começou com uma campanha eleitoral baseada em falsas premissas e
mentiras deslavadas. A seguir, o açodamento vergonhoso do medo
paranóico, instilado numa população em choque, com a devida colaboração
de uma mídia condescendente e vendida, foi suficiente para levar a maior
potência do mundo a duas guerras imorais que culminaram, ironicamente,
no maior terremoto econômico desde a quebra da bolsa de 1929.
Hoje os mesmos Republicanos que levaram o país a essas guerras
irracionais e ao fundo do poço financeiro acusam o Presidente Obama de
ser o responsável direto de todos os flagelos que assolam a sociedade
americana, como o desemprego maciço, a perda das pensões e
aposentadorias, a queda vertiginosa do valor dos imóveis e a completa
insegurança sobre o que o futuro pode trazer, que surgiram como
conseqüência imediata das duas catastróficas gestões de George Bush
filho.
Enquanto no Brasil criam-se 200 mil empregos pro mês, nos EUA
perdem-se 200 mil empregos a cada 30 dias. Confrontado com números como
esses, muitos dos meus vizinhos em Chapel Hill adorariam receber um
passaporte brasileiro ou mesmo um visto de trabalho temporário e
mudar-se para esse nosso paraíso tropical. Eles sabem pelo menos isto: o
mundo está mudando rapidamente e, logo, logo, no andar dessa carruagem,
o verdadeiro primeiro mundo vai estar aqui, sob a luz do Cruzeiro do
Sul!
Fica, pois, aqui o alerta de um brasileiro que testemunhou os eventos
da recente história política americana em loco. Hoje é a farsa do
atentado da bolinha de papel. Parece inofensivo. Motivo de pilhéria. Eu,
como gato escaldado, que já viu esse filme repulsivo mais de uma vez,
não ficaria tão tranqüilo, nem baixaria a guarda. Quem fabrica um
atentado, quem se apega ou apela para questões de foro íntimo, como a
crença religiosa (ou sua inexistência), como plataforma de campanha
hoje, é o mesmo que, se eleito, se sentirá livre para pregar peças
maiores, omitir fatos de maior relevância e governar sem a preocupação
de dar satisfações aqueles que, iludidos, cometeram o deslize histórico
de cair no mais terrível de todos os contos do vigário, aquele que nega a
própria realidade que nos cerca.
Aliás, ocorre-me um último pensamento. A única forma do ex-presidente
(Imperador?) Fernando Henrique Cardoso demonstrar que o seu governo não
foi o maior desastre político-econômico, testemunhado por todo o
continente americano, seria compará-lo, taco a taco, à catastrófica
gestão de George Bush filho. Sendo assim, talvez o candidato Serra tenha
raciocinado que, como a sua probabilidade de vitória era realmente
baixa, em último caso, ele poderia demonstrar a todo o Brasil quão
melhor o governo FHC teria sido do que uma eventual presidência do
George Bush genérico do hemisfério sul. Vão-se os anéis, sobram os
dedos. Perdido por perdido, vamos salvar pelo menos um amigo. Se tal ato
de solidariedade foi tramado dentro dos circuitos neurais do cérebro do
candidato da oposição (truco!), só me restaria elogiá-lo por este
repente de humildade e espírito cristão.
Ciente, num raro momento de contrição, de que algumas das minhas
teorias possam ter causado um leve incômodo, ou mesmo, talvez, um
passageiro mal-estar ao candidato, eu ousaria esticar um pouco do meu
crédito junto a esse grande novo porta-voz do cristianismo e fazer um
pequeno pedido, de cunho pessoal, formulado por um torcedor palmeirense
anônimo, ao candidato da oposição. O pedido, mais do que singelo, seria o
seguinte:
Candidato, será que dá pro senhor pedir pro governador Goldman
ou pro futuro governador Dr. Alckmin para eles não desligarem a luz da
Arena Barueri na semana que vem? Como o senhor sabe, o nosso Verdão
disputa uma vaguinha na semifinal da Copa Sulamericana e, aqui entre
nós, não fica bem outro apagão ser mostrado para todo esse Brazilzão,
iluminado pelo Luz para Todos, do Lula. Afinal de contas, se ocorrer
outro vexame como esse, o povão vai começar a falar que se o senhor não
consegue nem garantir a luz do estádio pro seu time do coração jogar,
como é que pode ter a pretensão de prometer que vai ter luz para todo o
resto desse país enorme? Depois, o senhor vem aqui e pergunta por que eu
vou votar na Dilma? Parece abestalhado, sô!
* Miguel Nicolelis é um dos mais importantes neurocientistas
do mundo. É professor da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e
criador do Instituto Internacional de Neurociência de Natal, (RN). Em
2008, foi indicado ao Prêmio Nobel de Medicina.