Orçamento da Minustah poderia reverter em 71 mil casas construídas por ano | Foto: laembajada/Flickr
Vivian Virissimo no SUL21
Na visão do haitiano Patrice Florvilus, que participou de uma atividade autogestionária na manhã desta quinta-feira (26) no FST, a pior contribuição da cobertura da mídia internacional foi transmitir a ideia de que o Haiti é alvo de uma “maldição”. “As
notícias passaram a ideia que o terremoto e a epidemia de cólera no Haiti são frutos de uma maldição sobre o povo haitiano e isso não é verdadeiro. A verdadeira maldição é a instabilidade política e a hegemonia capitalista e neoliberal de uma burguesia nacionalista”.
De acordo com o último informe da Organização das Nações Unidas (ONU), o Haiti é o pais com maior segurança do continente americano — e, contraditoriamente, é também a nação com maior número de militares que representam diferentes países.
“Somos o país com mais segurança e temos mais militares e aparato militar do que todas as partes do mundo. Só o orçamento da Minustah poderia resultar na construção de 71 mil casas por ano. Se não ajudam na reconstrução da infraestrutura, qual é seu papel? Por que não temos mais representantes da sociedade civil ao invés de militares? Porque eles estão lá para assumir a hegemonia de seus países”, criticou Florvilus, que atua como educador popular há 10 anos e é responsável pela Reagrupação Educação para Todos e Todas no Haiti.
Na mesa que abordou
A luta pelo Direito à Educação – Haiti Somos Todos e Todas, Florvilus descreveu a situação preocupante da educação no país, que tem o sistema composto por 98% de
escolas privadas. Segundo ele, mesmo com US$5 bilhões em doações da comunidade internacional, nenhuma escola pública foi construída até hoje no país.
Patrice Florvilus: "Se não ajudam na reconstrução da infraestrutura, qual é seu papel? Por que não temos mais representantes da sociedade civil ao invés de militares?" | Foto: André Carvalho/Sul21
O haitiano explicou que essa situação pode ser entendida quando se analisa os diversos acordos internacionais, nos últimos dez anos, que aceleraram o processo de liberalização do mercado e que freiaram o avanço de políticas públicas no Haiti. “O ministro de educação não tem preocupação com escolas públicas e segue o modelo chileno, que está completamente em crise. Aplica uma política de supostamente melhorar a qualidade da educação e aposta num modelo de expansão da
escola privada que já chega a 98%”, criticou.
Florvilus apresentou outros dados que mostram a situação do ensino no Haiti após o abalo sísmico: 94% da infra-estrutura escolar foi destruída, sendo 77% de escolas públicas, 3/2 dos centros de formação profissional, afetando a vida escolar de 15.000.00 de estudantes. Além disso, 90% dos edifícios universitários desabaram, sendo que as 11 universidades públicas foram quase totalmente destruídas. O terremoto também causou a morte de 38 mil alunos e 1.346 professores.
Segundo ele, o grande problema é que o estado haitiano não tem controle sobre o sistema educativo, já que entre 61% e 66% do orçamento é proveniente de outros países. “Não temos controle do sistema, que é composto por representantes do Canadá, França e de outros países da América Latina. Cada país que apóia quer um espaço e o estado não consegue regularizar este situação”, argumentou.
Cooperação internacional é imposta ao povo haitiano
“Nem se pode falar de cooperação de fato, pois não se está contando com a cooperação do povo haitiano. As coisas estão ocorrendo de uma forma imposta" | Foto: André Carvalho/Sul21
O haitiano também falou da situação dos campos de refugiados que foram construídos para servirem de abrigo ao povo por três meses e permanecem ativos dois anos depois, sendo a residência atual de 10 mil pessoas. “Não existe nenhum tipo de solução por parte do Estado haitiano e da parte da comunidade internacional. Já se passaram dois anos e nada foi feito”, disse o Haitiano.
Florvilus aproveitou para denunciar que a reconstrução do país está sendo feita por imposição, pois muitas organizações da sociedade civil não estão sendo consultadas. Segundo ele, a maior parte das verbas internacionais está sendo gerida pela Fundação Bill Clinton. O impacto da cooperação internacional foi questionada pelo haitiano. “Nem se pode falar de cooperação de fato, pois não se está contando com a cooperação do povo haitiano. As coisas estão ocorrendo de uma forma imposta. Por isso acreditamos mais na solidariedade, o governo tem seus próprios objetivos, temos que nos solidarizar mais para afrontar o plano dos governos”, afirmou o haitiano.
“O Haiti paga o preço de se contrapor ao império”, falou pesquisador
O pesquisador Pablo Gentili da FLACSO, outro participante da atividade autogestionária, concordou com a afirmação de Florvilus de que o caso haitiano não pode ser reduzido a uma maldição ou tragédia sem considerar o processo histórico no país. “O que aconteceu no Haiti não é uma tragédia, pois tragédias remetem a um fato inesperado, causas desconhecidas. Nem o terremoto haitiano é uma tragédia no sentido literal, pois isso acontece no Caribe o tempo todo. Todos sabem, há muitos anos, que essa região do planeta são mais propensas a terremoto”, afirmou.
Pablo Gentilli: "O Haiti paga o preço da ousadia da igualdade e liberdade" | Foto: André Carvalho/Sul21
Para apresentar os componentes históricos da situação haitiana, Gentili ressaltou que o Haiti foi a primeira nação da América Latina e Caribe a conquistar a independência. “O Haiti paga o preço de se contrapor ao império, foi o primeiro país que garantiu sua independência em 1804 quando a maioria o fez em 1809, 1810, 1812. Uma nação negra que naturalmente aboliu a escravatura antes que qualquer outra. O Brasil, que é a sexta economia do mundo, só aboliu em 1888”, comparou.
Gentili acrescentou que o Haiti iniciou seu processo de endividamento internacional justamente para conquistar sua independência com o pagamento de uma indenização aos franceses. “O Haiti paga o preço da ousadia da igualdade e liberdade. É o primeiro país endividado, teve que pagar uma indenização à França e já em 1840, entrou numa segunda onda de dívida”, lembrou, relacionando essas crescentes dívida a falta de infra-estrutura para lidar com grandes terremotos, por exemplo.
Ele também falou sobre o sistema educacional no Haiti. “O grau de privatização do sistema educacional haitiano não existe em nenhum outro país. Poderia ser um contra-senso num dos países mais pobres do planeta ter o sistema privado mais desenvolvido. Poderia, mas não é, pois este é um mercado que se beneficia do desespero das pessoas para ter acesso a um direito humano que é o direito a educação”, explicou.
Ele também informou que um estudo da UNESCO aponta que o custo de reconstrução do sistema público de educação é tão alto que seria mais fácil subsidiar o ensino privado. “Há um enorme mercado do ensino superior no Haiti e em todos os países. Pobreza não quer dizer que contradição com privatização, muitas vezes inclusive potencializa esse processo”, disse. O pesquisador criticou que este é um princípio neoliberal de que o o melhor é transferir recursos para as famílias, sem importar na qualidade do ensino ou na inserção destas pessoas no mercado de trabalho.
A forte presença militar e a ausência de outras formas de ajuda humanitária também foram criticadas pela população. “A única coisa que o Brasil enviou para o Haiti foram militares. Todos sabem da incapacidade que militares tem em lidar com guerras, quanto mais em missões de paz. Os recursos não deveriam ser passados para a fundação Clinton, mas para organizações haitianas para reconstrução de suas instituições, para organização da militância popular com o fortalecimento do movimento democrático”, argumentou o pesquisador.
A atividade autogestionária foi promovida pela Campaña Latinoamericana por el Derecho a la Educación. Esta organização é uma rede de fóruns regionais e internacionais e de entidades da sociedade civil que trabalham pelo direito humano da educação e que formam uma rede de apoiadores ao povo haitiano.