domingo, 12 de agosto de 2007

A rotina

Joana de Angelis


A natural transformação social, decorrente dos efeitos da ciência aliada à tecnologia a partir do século 19, impôs que o individualismo competitivo pós renascentista cedesse lugar ao coletivismo industrial e comunitário da atualidade.
A cisão decorrente do pensamento cartesiano, na dicotomia do corpo e da alma, ensejou uma radical mudança nos hábitos da sociedade, dando surgimento a uma série de conflitos que irrompem na personalidade humana e conduzem a alienações perturbadoras.
Antes, os tabus e as superstições geravam comportamentos extravagantes, e a falsa moral mascarava os erros que se tornavam fatores de desagregação da personalidade, a serviço da hipocrisia refinada.
A mudança de hábitos, no entanto, se liberou o homem de algumas fobias e mecanismos de evasão perniciosos, impôs outros padrões comportamentais de massificação, nos quais surgem novos ídolos e mitos devoradores, que respondem por equivalentes fenômenos de desequilíbrio.
Houve troca de conduta, mas não de renovação saudável na forma de encarar-se a vida e de vivê-la.
De um lado, a ciência em constante progresso, não se fazendo acompanhar por um correspondente desenvolvimento ético-espiritual, candidata-se a conduzir o homem ao niilismo, ao conceito de aniquilamento.
Noutro sentido, o contubérnio subjacente, apresenta um elenco exasperador de áreas conflitantes nas guerras e ameaças de guerras que se sucedem, nas variações da economia, nos volumosos bolsões de miséria de vária ordem, empurrando o homem para a ansiedade, a insegurança, a suspeição contumaz, a violência.
A fim de fugir à luta desigual — o homem contra a máquina — os mecanismos responsáveis pela segurança emocional levam o indivíduo, que não se encoraja ao competitivismo doentio, à acomodação, igualmente enferma, como forma de sobrevivência no báratro em que se encontra, receando ser vencido, esmagado ou consumido pela massa crescente ou pelo desespero avassalador.
Estabelece algumas poucas metas, que conquista com relativa facilidade, passando a uma existência rotineira e neu-rotizante, que culmina por matar-lhe o entusiasmo de viver, os estímulos para enfrentar desafios novos.
Rotina é como ferrugem na engrenagem de preciosa maquinaria, que a corrói e arrebenta.
Disfarçada como segurança, emperra o carro do progresso social e automatiza a mente, que cede o campo do raciocínio ao mesmismo cansador, deprimente.
O homem repete a ação de ontem com igual intensidade hoje; trabalha no mesmo labor e recompõe idênticos passos; mantém as mesmas desinteressantes conversações: retorna ao lar ou busca os repetidos espairecimentos: bar, clube, televisão, jornal, sexo, com frenético receio da solidão, até alcançar a aposentadoria.. - Nesse ínterim, realiza férias programadas, visita lugares que o desagradam, porém reúne-se a outros grupos igualmente tediosos e, quando chega ao denominado período do gozo-repouso, deixa-se arrastar pela inutilidade agradável, vitimado por problemas cardíacos, que resultam das pressões largamente sustentadas ou por neuroses que a monotonia engendra.
O homem é um mamífero biossocial, construído para experiências e iniciativas constantes, renovadoras.
A sua vida é resultado de bilhões de anos de transformações celulares, sob o comando do Espírito, que elaborou equipamentos orgânicos e psíquicos para as respostas evolutivas que a futura perfeição lhe exige.
O trabalho constitui-lhe estímulo aos valores que lhe dormem latentes, aguardando despertamento, ampliação, desdobramento.
Deixando que esse potencial permaneça inativo por indolência ou rotina, a frustração emocional entorpece os sentimentos do ser ou leva-o à violência, ao crime, como processo de libertação da masmorra que ele mesmo construiu, nela encarcerando-se.
Subitamente, qual correnteza contida que arrebenta a barragem, rompe os limites do habitual e dá vazão aos conflitos, aos instintos agressivos, tombando em processos alucinados de desequilíbrios e choque.
Nesse sentido, os suportes morais e espirituais contribuem para a mudança da rotina, abrindo espaços mentais e emocionais para o idealismo do amor ao próximo, da solidariedade, dos serviços de enobrecimento humano.
O homem se deve renovar incessantemente, alterando para melhor os hábitos e atividades, motivando-se para o aprimoramento íntimo, com conseqüente movimentação das forças que fomentam o progresso pessoal e comunitário, a benefício da sociedade em geral.
Face a esse esforço e empenho, o homem interior sobrepõe-se ao exterior, social, trabalhado pelos atavismos das repressões e castrações, propondo conceitos mais dignos de convivência humana, em consonância com as ambições espirituais que lhe passam a comandar as disposições íntimas.
O excesso de tecnologia, que aparentemente resolveria os problemas humanos, engendrou novos dramas e conflitos comportamentais, na rotina degradante, que necessitam ser reexaminados para posterior correção.
O individualismo, que deu ênfase ao enganoso conceito do homem de ferro e da mulher boneca, objeto de luxo e de inutilidade, cedeu lugar ao coletivismo consumista, sem identidade, em que os valores obedecem a novos padrões de crítica e de aceitação para os triunfos imediatos sob os altos preços da destruição do indivíduo como pessoa racional e livre.
A liberdade custa um alto preço e deve ser conquistada na grande luta que se trava no cotidiano.
Liberdade de ser e atuar, de ter respeitados os seus valores e opções de discernir e aplicar, considerando, naturalmente, os códigos éticos e sociais, sem a submissão acomodada e indiferente aos padrões de conveniência dos grupos dominantes.
A escala de interesses, apequenando o homem, brinda-o com prêmios que foram estabelecidos pelo sistema desumano, sem participação do indivíduo como célula viva e pensante do conjunto geral.
Como profilaxia e terapêutica eficaz, existem os desafios propostos por Jesus, que são de grande utilidade, induzindo a criatura a dar passos mais largos e audaciosos do que aqueles que levam na direção dos breves objetivos da existência apenas material.
A desenvoltura das propostas evangélicas facilita a ruptura da rotina, dando saudável dinâmica para uma vida integral em favor do homem-espírito eterno e não apenas da máquina humana pensante a caminho do túmulo, da dissolução, do esquecimento.

sábado, 11 de agosto de 2007

Muçulmanos contra a Al-Qaeda

Tanto no Iraque quanto no Afeganistão, a rede terrorista de Bin Laden enfrenta oposição crescente de outros grupos armados árabes. Suspeita-se, ao priorizar o combate entre facções muçulmanas, ela esteja fazendo o jogo da Casa Branca

Syed Saleem Shahzad

Dois incidentes ilustram as divergências crescentes no seio dos movimentos islâmicos armados. No Waziristão do Sul, uma zona tribal do Paquistão situada na borda da fronteira afegã, talibãs locais perpetraram, em março de 2007, um massacre de combatentes estrangeiros do Movimento Islâmico do Uzbequistão, filiado à Al-Qaeda. Quase simultaneamente, ferozes combates opunham o Exército Islâmico no Iraque ao ramo local da Al-Qaeda. Duas visões – duas maneiras de conceber o combate islâmico – confrontam-se cada vez mais violentamente.

Desde 2003, voluntários estrangeiros afluem ao Paquistão e ao Iraque. Porém, em vez de satisfazer aos dirigentes dos talibãs e aos grupos de resistência islâmicos autóctones, esse afluxo de combatentes ligados ao takfirismo – uma ideologia que considera os “maus muçulmanos” seus principais inimigos (ler, nesta edição, Takfirismo, uma ideologia messiânica) – provocou mal-estar e sofrimento. Combatendo governos muçulmanos, esses militantes desencadearam o caos nas mesmas populações que diziam defender.

Durante três anos, entre 2003 e 2006, a própria complexidade da situação nesse vasto teatro de guerra, composto pelo Waziristão do Norte, Waziristão do Sul, Afeganistão e Iraque, reforçou a influência doutrinária da Al-Qaeda e reduziu os grupos autóctones ao silêncio. No Waziristão, zelotas takfiristas favoreceram o surgimento de enclaves islâmicos, que escaparam da jurisdição do Paquistão e alimentaram ações armadas nos grandes centros urbanos, com o objetivo último de desencadear um levante contra o regime militar pró-ocidental de Islamabad. Em resposta, o exército paquistanês conduziu operações sangrentas, massacrando centenas de não-combatentes, entre os quais mulheres e crianças, alimentando assim o furor dos extremistas. Já na época, muitos dirigentes talibãs reconheciam, reservadamente, que os takfiristas estavam se desviando, ao abandonar a estratégia exclusivamente anti-ocidental, pregada por Osama Bin Laden nos anos 1990, e ao transformar sua guerra de resistência nacional contra a ocupação estrangeira em um ataque ao poder militar do Paquistão.

No Iraque, tafkiristas visam os xiitas, e esquecem de lutar contra norte-americanos

No Iraque, Abu Mussab Al-Zarkawi, um dos principais dirigentes takfiristas, que deixara o Waziristão para ir a esse país às vésperas da invasão norte-americana, tornou-se o responsável mais visível da resistência. Zarkawi declarara publicamente fidelidade a Bin Laden. Em torno dele haviam-se agrupado militantes, na maioria estrangeiros, que constituíam o ramo iraquiano da Al-Qaeda. A situação no Iraque logo iria se assemelhar às do Waziristão e do Afeganistão.

Depois da queda de Saddam Hussein, as forças de resistência locais levaram algum tempo para se mobilizar. Precisaram de vários meses para organizar as diversas tribos, grupos religiosos fragmentados, membros do Baas, o antigo partido de Saddam Hussein, e oficiais da extinta Guarda Republicana em unidades eficientes de combate. Nesse ínterim, os combatentes estrangeiros, vindos dos quatro cantos do mundo muçulmano sob os estandartes negros da Al-Qaeda, constituíram um majlis alchoura (conselho) e deram prova de uma eficácia que os grupos locais ainda não demonstravam. Nessas condições, estes últimos não podiam expressar suas reservas à ideologia takfirista. Alguns já haviam tido a oportunidade de deplorar os métodos da Al-Qaeda, que, embora sunita como eles, deixava a luta contra o ocupante norte-americano para atacar lugares sagrados dos xiitas.

No entanto, com o anúncio feito pela Al-Qaeda, no fim de 2006, da criação de um emirado “ideologicamente puro” no Iraque, a estratégia dos grupos autóctones foi totalmente submetida à ideologia takfirista e a seu programa fratricida. A guerra contra a ocupação transformou-se em uma miríade de lutas sectárias. Mas os germes da ruptura entre os combatentes “internacionalistas” e a resistência autóctone estavam semeados.

Divisões têm origem na luta islâmica contra presença soviética no Afeganistão

Para compreender essas divergências, é necessário examinar as circunstâncias particulares que contribuíram para as transformações ideológicas da Al-Qaeda, quando da jihad contra a ocupação soviética no Afeganistão, durante os anos 1980, e depois. Os árabes que haviam afluído àquele país com o intuito de se juntar à resistência local dividiam-se em dois campos: “iemenita” e “egípcio”.

Os zelotas religiosos, enviados ao Afeganistão por seus imãs, pertenciam ao primeiro. Quando não estavam combatendo, passavam os dias em atividades rudes, cozinhando para si mesmos e dormindo logo após a isha, a última prece do dia. Com o fim da jihad afegã, voltaram ao seu país ou se misturaram à população local, no Afeganistão ou no Paquistão, onde muitos se casaram. Nos meios da Al-Qaeda, estes eram qualificados como dravesh – os que gostam da vida fácil.

O campo “egípcio” compunha-se dos mais politizados e ideologicamente motivados. A maioria era afiliada aos Irmãos Muçulmanos [1], mas rejeitava a via parlamentar preconizada por essa organização. Para os partidários dessas idéias, homens muitas vezes instruídos – médicos, engenheiros etc – a jihad afegã constituía um forte cimento. Muitos eram antigos militares que haviam aderido ao movimento clandestino Jihad Islâmica, do doutor Ayman al-Zawahiri (que viria a ser o braço direito de Bin Laden). Foi esse o grupo que assassinou Anuar Sadat em 1981, para puni-lo por ter assinado a paz com Israel em Camp David, três anos antes. Todos estavam convencidos de que os Estados Unidos e os “governos fantoches” do Oriente Médio eram os responsáveis pelo declínio do mundo árabe.

No campo egípcio, depois da isha, debatia-se sem cessar sobre o futuro. Os dirigentes inculcavam nos adeptos a necessidade de investir energia nas forças armadas de seu próprio país e de cultivar ideologicamente os melhores cérebros.

Talibãs afegãos afastam-se da Al-Qaeda e se aproximaram do Paquistão

Nas origens da Al-Qaeda encontra-se o Maktab Al-Khadamat (Agência de Serviços), criada por Abdallah Azzam a partir de 1980, a fim de apoiar a resistência afegã. O fundador veio a falecer em 1989 num atentado [2]. Bin Laden, um de seus principais discípulos, sucedeu-o à frente do movimento, para transformá-lo na Al-Qaeda.

“A maioria dos combatentes ’iemenitas’ – guerreiros bastante rústicos, cuja única ambição era o martírio – deixou o Afeganistão depois da queda do governo comunista”, explicou, durante uma entrevista recente em Amã, o filho do fundador do Maktab Al-Khadamat, Hudaifa Azzam. “Os ‘egípcios’ ficaram, pois suas ambições políticas continuavam insatisfeitas. Mais tarde, juntaram-se a Bin Laden, que voltara do Sudão em 1996, e começaram a convertê-lo à visão takfirista — pois, até então, seu pensamento era inteiramente voltado para a luta contra a hegemonia norte-americana no Oriente Médio”.

Hudaifa Azzam passou quase vinte anos junto aos militantes árabes no Afeganistão e no Paquistão. “Quando encontrei Bin Laden em Islamabad, em 1997, ele estava acompanhado do somaliano Abu Obadia e dos egípcios Abu Haf e Saiful Adil, os três pertencentes ao campo ‘egípcio’. Percebi então que as idéias extremistas destes últimos tinham influência sobre ele. Em 1985, quando meu pai pediu a Bin Laden que fosse ao Afeganistão, ele respondeu que iria apenas com a permissão do rei Fahd, da Arábia Saudita, que, na época, ele ainda honrava com o título de Wali al-Amr (“Autoridade Suprema”). Depois do 11 de setembro, quando denunciou os dirigentes sauditas, pude medir o quanto o campo ‘egípcio’ o havia influenciado”.

Era essa, portanto, a situação quando, no início de 2006, mais de 40 mil combatentes aguerridos de origem árabe, tchetchna e uzbeque, ao lado dos waziristaneses e de outros militantes paquistaneses vindos das cidades, reuniram-se no Waziristão do Sul e do Norte. A liderança talibã viu-se diante de um dilema, pois a maioria desses militantes preferia combater as forças armadas paquistanesas na zona tribal a lutar contra a ocupação do Afeganistão.

Novos confrontos pareciam inevitáveis. A cúpula talibã entendeu que o conflito punha em risco a grande ofensiva contra as forças da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), preparada para a primavera de 2006, e que era preciso desmontá-lo o mais rapidamente possível. O mulá Muhammad Omar, chefe em fuga dos talibãs, enviou o mulá Dadullah (um dos melhores comandantes do sudoeste do Afeganistão, morto em maio de 2007) para persuadir os talibãs paquistaneses e as facções da Al-Qaeda a se concentrarem nessa ofensiva, em vez de desperdiçarem suas forças. A mediação resultou, sim, num acordo de paz, mas entre os talibãs da zona tribal e as forças armadas paquistanesas. Tal acordo, firmado em 5 de setembro de 2006, previa, principalmente, a dispensa de todos os combatentes estrangeiros. O cessar-fogo permitiu ao poder paquistanês tecer sólidos laços com os líderes talibãs nos dois Waziristãos. Esses líderes receberam quantidades consideráveis de armas e dinheiro, além de lisonjeiros convites em Islamabad.

O acordo assinado resultava da constatação feita pela direção dos talibãs: depois de cinco anos de colaboração com a Al-Qaeda, a resistência no Afeganistão estava num impasse. Certamente ela havia se tornado mais forte. Mas os talibãs não puderam atingir nenhum objetivo estratégico maior, como teria sido a tomada de Kandahar ou o cerco de Kabul. Os comandantes talibãs perceberam que sua organização não podia esperar ganhar uma batalha contra o poder do Estado. A solução consistia, portanto, em encontrar outros recursos, de origem governamental. Voltaram-se então, naturalmente, para seu antigo protetor, o Paquistão. Daí o acordo de 5 de setembro.

O acordo resiste, apesar das provocações dos partidários de Bin Laden

Os líderes talibãs, tanto no Waziristão quanto no Afeganistão, estavam satisfeitos com o compromisso e pouco criticaram a expulsão dos combatentes estrangeiros. Supunha-se que eles fossem se juntar em massa à resistência afegã. Não estavam descontentes tampouco por se livrarem da Al-Qaeda e dos elementos que desenvolviam uma estratégia global, desviando-os do combate contra as forças da OTAN.

Em contrapartida, o acordo era inaceitável para os “guerreiros planetários” da Al-Qaeda, que sonhavam com um conflito regional em várias frentes, conduzido a partir das bases novamente estabelecidas no Waziristão. A perspectiva de pequenas escaramuças no Afeganistão pouco compensava seu sonho de uma vitória brilhante sobre a direção paquistanesa, muçulmana não-praticante. Além disso, a Al-Qaeda pensava em se beneficiar com novos trunfos.

Os dirigentes da rede terrorista logo entenderam que os acordos entre o Paquistão e os talibãs constituíam uma ameaça. Temiam também que os talibãs fossem emboscados pelos serviços de informações paquistaneses. Procuraram, então, sabotar a trégua, explorando divergências entre os signatários. Uma dessas oportunidades lhes foi oferecida pelo bombardeio de um campo de treinamento no Waziristão do Sul pela aviação paquistanesa, em 17 de janeiro de 2007, causando a morte de vários combatentes estrangeiros. Baitullah Mehsud, um dos raros dirigentes talibãs no Waziristão do Sul, denunciou os acordos, considerando que o Paquistão os havia violado. Tahir Yaldeshiv, conhecido militante uzbeque e ideólogo takfirista baseado no Waziristão do Sul, logo lhe deu apoio, despachando mais de uma dezena de grupos de kamikazes a fim de espalhar o terror nos centros urbanos paquistaneses. O balanço foi pesado para a população civil, mas os acordos sobreviveram, apesar das preocupações do presidente Pervez Musharaff com o seminário da Mesquita Vermelha (Lal Masjid) de Islamabad, que procurava impor uma islamização ao estilo talibã na capital.

Se os acordos sobreviveram foi porque convinham a ambas as partes. Eles permitiam aos dirigentes paquistaneses construir uma estratégia capaz de fazer face à ação da Al-Qaeda na zona tribal. Por outro lado, eram uma resposta à desilusão dos talibãs, cansados da estratégia global da Al-Qaeda, considerada monomaníaca, que servira apenas para enfraquecer a resistência afegã. Haji Nazir, comandante talibã pouco conhecido, cortejado e alimentado com dinheiro e armas pelos serviços de segurança paquistaneses, tornou-se rapidamente o homem forte do Waziristão do Sul. Nazir deixou a escolha aos combatentes estrangeiros: serem desarmados ou irem reforçar a ofensiva contra as tropas da OTAN no Afeganistão. Como se podia prever, eles rejeitaram a oferta. E um confronto armado, em março de 2007, fez mais de 140 mortos, na maior parte originários da Ásia central. No Waziristão do Norte, houve incidentes do mesmo tipo.

Os comandantes talibãs precisaram levantar o cerco aos militantes estrangeiros e permitir-lhes seguir qualquer destino de sua escolha. Estes preferiram ir para o Iraque, nova terra prometida, em vez de para o Afeganistão.

Suspeita: ao dividir os árabes no Iraque, a Al-Qaeda estaria trabalhando para os EUA?

A Al-Qaeda começou a enviar combatentes dos dois Waziristão para o Iraque imediatamente depois da invasão norte-americana de 2003. Esse movimento foi acelerado pelas divergências ideológicas e estratégicas que a opunham aos talibãs. “Logo que foi nomeado administrador do Iraque, Paul Bremer [3] dissolveu todas as forças de segurança do país”, lembra Muhammad Bashar Al-Faidy, dirigente da Associação dos Ulemas Muçulmanos, um dos atuais integrantes da resistência anti-norte-americana. “Fomos então visitá-lo em delegação e o alertamos contra essa decisão, que iria permitir que todos atravessassem nossas fronteiras. Deveríamos ter preservado ao menos os guardas de fronteira. Bremer não concordava: para ele, todas as forças de segurança estavam com Saddam. Logo, os iraquianos assistiram, impotentes, a um afluxo de todo tipo de indivíduos sem escrúpulos, terroristas da Al-Qaeda ou vindos do Irã, que se juntaram no Iraque em torno de objetivos próprios”. Ele conclui: “Hoje, creio que essa política de Bremer era conscientemente destinada a atrair os militantes da Al-Qaeda para o Iraque, onde ele pensava que fosse mais fácil matá-los ou capturá-los do que no Afeganistão ou no Waziristão [4].

Todavia, enquanto a Al-Qaeda se esforça para tomar a direção da luta e convertê-la à sua visão global, os dirigentes iraquianos da resistência, movidos antes de tudo por objetivos nacionalistas, preocupam-se cada vez mais e gostariam de se livrar desses combatentes estrangeiros. Indícios dessas dissensões foram recentemente relatados pela mídia árabe. A rede de televisão Al-Jazira transmitiu, em abril de 2007, as palavras de Ibrahim Al-Shammari, porta-voz do Exercito Islâmico, sobre sua ruptura com a Al-Qaeda. Os objetivos dos dois movimentos são tão diferentes, afirmou, que, em certas circunstâncias, o Exército Islâmico preferiria tratar com os Estados Unidos.

A esse respeito, Al-Faidy não tem meias palavras: “Todos os elementos estrangeiros que se integraram às milícias irregulares são uma maldição para a resistência. Eles se obstinam em querer controlar o Iraque para levar à frente seu próprio projeto. A Al-Qaeda foi infiltrada por numerosos serviços de informações, sem falar de seus desvios religiosos, como o takfirismo. Afinal de contas, é o povo iraquiano que está pagando um pesado tributo. O mesmo se dá com as milícias xiitas apoiadas pelos serviços iranianos. Elas querem dominar o sul do Iraque e já assassinaram, até o momento, cerca de trinta xeques. Os xeques dessa região gostariam de se juntar à resistência contra o ocupante, mas as atividades dessas milícias apoiadas pelo Irã os impedem”.

Segundo o dirigente da associação dos ulemas, a maior parte das operações de envergadura montadas no Iraque é realizada pelos grupos nacionais de resistência. Mas, como estes são lentos em reivindicá-las, os meios de comunicação internacionais os atribuem freqüentemente à Al-Qaeda. “Até mesmo James Baker [5]”. ]] admite que a Al-Qaeda é apenas um elo modesto da resistência. Pagamos hoje o preço de ter aceito a Al-Qaeda dentro da resistência, num primeiro impulso de entusiasmo. Depois da invasão norte-americana, queríamos convencer todo mundo a se juntar à luta contra o invasor. Quando chegaram ao Iraque os primeiros combatentes da Al-Qaeda, nós os recebemos de braços abertos. Mas, hoje, tudo o que eles fazem prejudica seriamente a resistência”.

Seja a resistência iraquiana sejam os talibãs ou outros grupos que aceitaram a Al-Qaeda em suas fileiras, todos agora pagam o preço.



[1] A Organização dos Irmãos Muçulmanos foi criada em 1928, no Egito, por Assam Al-Banna. Disseminou-se depois pelo mundo árabe. Ler «Une internationale en trompe-l’œil”, de Wendy Kristianasen, Le Monde Diplomatique, edição francesa, abril de 2000.

[2] O assassinato continua um mistério. Segundo alguns, Bin Laden teria sido o mandante, depois de divergências surgidas entre os dois homens.

[3] Paul Bremer foi procônsul dos Estados Unidos no Iraque, entre maio de 2003 e junho de 2004.

[4] Outra possibilidade a ser considerada é que Bremer pretendesse se valer da Al-Qaeda para debilitar a posição dos xiitas no Iraque – o que, de fato, viria a ocorrer. As relações entre a Al-Qaeda e o governo Bush ainda estão por ser esclarecidas (nota da edição brasileira impressa)

[5] Alusão às conclusões do Relatório Baker-Hamilton, The Irak Study Group Report, publicado nos Estados-Unidos em dezembro de 2006, que levanta uma série de propostas para a política norte-americana no Iraque. Representantes democratas e republicanos participaram da redação, mas suas principais conclusões foram rejeitadas pelo presidente Bush. Pode ser consultado em: www.usip.org/isg/iraq_study_group_report/report/1206/index.html

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Tráfico de órgãos é terceiro crime mais lucrativo, segundo Polícia Federal.

“Tráfico de órgãos é o terceiro crime organizado mais lucrativo no mundo. Só perde para o de drogas e o de armas”. A declaração é do coordenador de operações especiais de fronteiras da Polícia Federal, Mauro Sposito. Ele participou de audiência pública sobre Tráfico de Órgãos na Amazônia, realizada pelas Comissões da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional e de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. O evento atendeu as solicitações dos deputados Carlos Souza (PP-AM) pela CAINDR e Raul Jungmann (PPS-PE) pela CSPCCO.
Os deputados solicitantes da audiência, a presidente da CAINDR, deputada Vanessa Grazziotin (PCdo-AM) e a deputada Elcione Barbalho (PMDB-PA), que também contribuiu com informações sobre casos de mortes no Estado do Pará, definiram que será feito um levantamento de todas as Leis que tramitam na Casa sobre essa questão. A partir desse levantamento, eles pretendem contribuir com o Ministério da Saúde no que se refere a melhorias para o Sistema Nacional de Transplantes.
Mauro Sposito explicou que existem vários formas do crime organizado de tráfico de órgãos acontecer: brasileiros vão ao exterior e, por necessidade financeira, vendem seus órgãos lá; órgãos são extraídos no Brasil e enviados para o exterior; estrangeiros vem ao Brasil e vendem seus órgãos aqui; brasileiros extraem seus órgãos no Brasil e os comercializam aqui mesmo. Segundo ele, a Polícia Federal está investigando todas essas práticas.
Porém, com relação a Amazônia, assunto específico da audiência, Sposito disse que assim que foram feitas, as denúncias foram investigadas e continuam sendo. Porém, nada foi comprovado. Ele acredita que as informações veiculadas na mídia podem estar escondendo algo mais grave. “Essa investigação é uma das nossas prioridades na região. Mas até agora não evidência concreta da retirada de órgãos de índios. As investigações mostram que as denúncias decorrem muito provavelmente de lendas e rituais antigos dos índios”, ressaltou.
Tanto a representante do Ministério da Saúde, Camila Carlone Gaspar, como o deputado Neucimar Fraga (PR-ES), que presidiu a CPI do Tráfico de Órgãos Humanos, realizada em 2004 na Câmara, disseram ser muito difícil que ocorra tráfico de órgãos na Amazônia, destinados a transplante, devido a complexidade de equipamentos necessários para o acondicionamento desses órgãos. Mas Neucimar Fraga lembrou que órgãos humanos são usados também por faculdades para estudos.
Camila Gaspar informou que o Sistema de Transplante só está agora chegando na Amazônia. Segundo ela, até o ano passado só existiam Centrais de Transplantes no Amazonas e no Pará. “Este ano é que estamos chegando ao Acre, Roraima e Amapá. Sabemos que o Sistema ainda tem muito a melhorar”, reconheceu.
A técnica esclareceu ainda que a CPI contribuiu para alguns avanços no Sistema de Transplantes. “Integrou-se o Sistema em todas os Estados e não existem mais as listas duplas. Em 2005 modificou-se a legislação com relação às Comissões intra-hospitalares, órgãos responsáveis por coordenar as ações de transplantes. Hoje, para concedermos autorização para um hospital trabalhar com transplante, o mesmo tem que comprovar que possui a Comissão e que ela funciona”, enfatizou.
O deputado Neucimar Fraga falou sobre a dificuldades de investigar esse assunto no Brasil. “Sempre que se tenta investigar denúncias de tráfico de órgãos, jogam a investigação contra a fila de transplante. Na CPI fomos acusados de estar prestando um desserviço a sociedade. É um crime de alta complexidade que envolve médicos e outros profissionais de saúde”, desabafou.
Entre os principais pontos dificultadores para que o tema seja investigado profundamente, Fraga citou o corporativismo médico. Para ele, existe e necessidade que esse assunto seja levado mais a sério pelos Ministérios envolvidos na questão e pela Polícia Federal.
Para o deputado Carlos Souza, seja qual for o motivo que leve pessoas a aparecerem mortas sem seus órgãos, tem que ser investigado. Ele citou o caso da índia de 20 anos que foi encontrada morta com o abdômen costurado de forma grosseira e sem parte de seus órgãos.
Para o deputado Raul Jungmann, é urgente que seja delimitado qual a extensão desse processo.
De tudo que foi exposto, ele concluiu que essas denúncias ficam numa zona muito obscura. “Podem ser rituais satânicos, podem ser problemas entre comunidades indígenas ou podem ser tráfico de órgãos. Mas a verdade é que a freqüência das denúncias tanto no Norte como no Nordeste aponta no sentido de que há máfia de tráfico sim e isso precisa ser investigado rigorosamente”, ressaltou.

Bety Rita Ramos
Assessoria de Imprensa
Portal Câmara dos deputados

Para analistas franceses, contágio pode gerar grande crise


A incerteza financeira da sema tem o seu centro nos Estados Unidos e sua bolha imobiliária, porém o principal sinal de alarme veio da França. Foi ali que, na quinta-feira (9), o banco francês BNP Paribas congelou o saque de três de seus fundos de investimentos, fazendo um arrrepio de medo percorrer as bolsas do planeta. O diário francês Libération entrevistou na sexta-feira dois economistas, Jean-Paul Fitoussi e Dominique Plihon, um da fundação Sciences-Po Paris, uma instituição nacional, e o outro presidente do conselho científico da ONG Attac.


Jean-Paul Fitoussi (esq.) e Dominique Plihon

Libération - A intervenção do Banco Central Europeu (BCE, que injetou no mercado mais de US$ 200 bilhões em dois dias) marca uma virada na crise dos créditos imobiliários?


Jean-Paul Fitoussi - Os bancos intervêm para apagar o incêndio que eles mesmos atearam. Impulsionados por sua missão primeira – a estabilização da inflação –, eles fragilizaram o mercado ao elevar as taxas de juros, o que favoreceu a crise imobiliária. Uma tragédia grega entra em cartaz: a inflação retorna, via alta dos preços do petróleo e das matérias-primas agrícolas, os bancos reagem e elevam os juros, e os operadores financeiros, que apostavam na estabilidade, se vêem fragilizados.


Dominique Plihon - Temos aqui uma injeção de liquidez de emergência, do emprestador em úntima instância. É um sinal muito claro: há um princípio de incêndio no sistema bancário. O BCE quer que os pagamentos sejam honrados para que os bancos não travem o sistema. Tenta evitar um efeito dominó: os bancos em dificuldade carregariam consigo outros bancos, dos quais são devedores...


L - Quais são os riscos de contágio?


DP - O risco é real e profundo, mas uma grande crise generalizada não é inevitável. Pode-se vê-lo cada dia um pouco melhor: os grandes bancos europeus se voltaram para o mercado americano, frequentemente através de LBO (Leverage Buy Out, a recompra de empresas de crédito). Essas operações têm uma propensão para gerar riscos. Em compensação, caso se descubra que, como parece ser o caso hoje, que esses bancos estão fortemente afetados, pode acontecer uma desconfiança generalizada, que pode conduzir a um efeito de pânico, uma queda do consumo e portanto do crescimento.


J-PF - A acumulação de dívidas de risco por devedores insolventes já contamina os bancos, como o prova o caso do BNP Paribas. Eis que ele se torna vítima do modelo presa-predador. Quando os predadores devoram em excesso as populações pobres, superendividadas para adquirir um imóvel, ficam por sua vez em perigo. Em princípio, estamos diante de um efeito dominó que pode gerar uma crise de amplitude muito grande.


L - 1987, 1997, 2007: existe uma inevitabilidade nos ciclos das crises financeiras?


J-PF - Desgraçadamente, é raro que se aprenda com as crises precedentes. Ontem foi a bolha internet, hoje a bolha imobiliária. E o que é mais inquietante, ainda que pouquíssimo falado por enquanto, é o carry trade (empréstimo em uma moeda cujas taxas de juros são baixos para aplicar a soma em países que oferecem juros maiores) sobre o yen japonês. Mas agora o yen se recupera, e o sistema, que abocanhou mais de US$ 200 bilhões, pode implodir.


DP - As crises econômicas não se repetem, assumem sempre novos contornos. É verdade que, apesar do déficit global de governança, grandes progressos ocorreram na prevenção e gestão de riscos. Porém o mais inquietador é a disparada dos preços das matérias-primas e alimentos e a especulação que a acompanha. Sem regulação, essa exuberância irracional corre o risco de provocar grandes estragos, porque a cegueira, para o desastre dos mercados, não mudou.


Fonte: http://www.liberation.fr



sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Chico Buarque e Elis Regina - Pois é

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Alternativas ao aquecimento global



Apresentação

“Reservemos o pessimismo para tempos melhores”, gosta de provocar o escritor uruguaio Eduardo Galeano, espalhando palavras que viu, certa vez, pintadas num muro em Bogotá. A frase contraria certa postura intelectual, ao sugerir que espírito crítico não pode ser sinônimo de desesperança – e que esta última converte-se, com freqüência, no último refúgio dos conservadores.

É o que mostra, aliás, o debate sobre aquecimento global. Quando se tornou impossível negar o fenômeno, os meios de comunicação tradicionais passaram a espetacularizá-lo. Multiplicam-se, nos jornais e TVs, as matérias dedicadas ao tema, quase sempre em tom de sensacionalismo e com ênfase na suposta inevitabilidade da tragédia. Dramatizar o assunto é, neste caso, um meio de evitar duas perguntas cruciais. Quais os nexos entre a mudança climática e uma sociedade que se tornou incapaz de refletir sobre si mesma, porque foi dominada pela lógica dos mercados? Há alternativas a ambos os fenômenos?

Conhecido tanto pela profundidade de seus artigos quanto pelo olhar incomum que eles projetam sobre questões relevantes e polêmicas, Le Monde Diplomatique escolheu exatamente este tema para lançar, no Brasil, uma série de livros temáticos. Serão publicados a cada três meses, pelo Instituto Paulo Freire – a quem cabe produzir, no país, a edição internet do jornal e seu Caderno Brasil.

A edição que você tem em mãos reúne sete artigos. Parte deles compõe o acervo de quase dois mil textos traduzidos, desde 1999, da edição francesa do jornal – e reunidos numa biblioteca virtual que pode ser acessada em www.diplo.org.br/temas. Outros foram produzidos no Brasil. Em seu conjunto, os artigos constróem, servindo-se de dados rigorosos e análises não-convencionais, um ponto de vista oposto à visão fatalista que hoje predomina sobre o assunto. Ele se apóia em duas bases essenciais: a) Embora represente uma ameaça terrível, o aquecimento da atmosfera pode ser perfeitamente revertido; b) Para alcançar esta vitória, os seres humanos serão obrigados a superar as relações alienadas que mantêm consigo mesmos e com o ambiente.

Tecnologicamente, a era petróleo acabou. Como superar o sistema que a sustenta?

A série de textos é aberta por “A possível revolução energética”, de Antonio Martins. Trabalhando a partir dos dados de um vasto relatório do Greenpeace sobre energias alternativas (sobre o qual a mídia guardou silêncio), o autor demonstra que, do ponto de vista tecnológico, já é perfeitamente possível substituir o petróleo. Fontes como o sol, os ventos e a biomassa, combinadas com mudanças em nossos padrões de consumo, permitiriam reduzir as emissões de gás carbônico à metade do volume atual, até 2050. Não haveria nenhum dano ao bem-estar. Ao contrário: seria possível estender a eletricidade a dois bilhões de pessoas, hoje privadas até mesmo do acesso à lâmpada elétrica. Tais soluções são portadoras de uma lógica pós-capitalista: elas significam que a energia deve ser vista com um direito – que precisa ser assegurado a todo ser humano – e não uma mercadoria, que cada um produz e consome segundo seu poder de compra.

O texto seguinte, “Bem-vindos ao fim da era petróleo”, de Nicolas Sarkis, é o retrato de uma insensatez. Nos últimos anos, o aquecimento global deixou de ser uma abstração teórica para se materializar nas imagens que registram o derretimento de imensas massas de gelo. Neste mesmo período, o consumo de combustíveis fósseis intensificou-se como nunca. A demanda mundial, que crescia ao ritmo de 1,54% ao ano, na década de 1990, aumentou 3,7% em 2004. O autor demonstra que esta é a causa essencial da persistente alta nas cotações do óleo. E vai além: como nossas sociedades continuam incapazes de articular uma substituição programada desta fonte de energia, elevações devastadoras dos preços e crises de abastecimento podem tornar-se comuns, nos próximos anos.

Por que insistimos em aprofundar nossa dependência? Em “Os danos do movimento perpétuo”, Philippe Mühlstein explora a relação entre o consumo cego de combustíveis e os interesses econômicos hoje hegemônicos. Ele mostra que a eficiência energética do transporte pessoal por trem ou metrô é onze vezes maior que por automóvel – e, no entanto, nossos modelos urbanísticos não param de privilegiar, além do asfalto, as cidades que exigem longos deslocamentos. Além disso, ao estimular a deslocalização de empresas para regiões de mão-de-obra barata, o modelo atual de globalização multiplicou o transporte de cargas. O autor relata casos em que a insanidade torna-se funcional. Empresas alemãs enviam ao sul da Itália, para lavagem e corte, batatas que, em seguida, serão industrializadas e vendidas em seu país de origem.

Uma das marcas do paradigma energético atual é a desigualdade. “As primeiras vítimas”, de Agnés Sinai descreve esta característica. A autora revela que um consumidor médio nos Estados Unidos emite, em seu trabalho e consumo, cinco toneladas de gases do efeito estufa ao ano – 50 vezes mais que um cidadão de Burkina Faso. No entanto, mostra o texto, as primeiras vítimas de uma eventual catástrofe ambiental serão os que menos contribuíram para provocá-la. Gente como os esquimós, ou os habitantes da Aliança dos Pequenos Estados-Ilhas (Aosis, na sigla em inglês). Embora evidentemente favorável ao Protocolo de Kyoto, o artigo expõe algumas de suas graves contradições, como os créditos de carbono. O mecanismo premia os países do Sul que poluem, enquanto deixa órfãos os que hoje quase não emitem CO2.

Para o cientificismo: o planeta era mero recurso a ser consumido incessantemente

Em 1945, o poeta Paul Valéry cunhou uma frase que serve como emblema para os tempos que vivemos. “Começou o tempo do mundo que termina”, disse ele. O aquecimento obriga a enxergar o planeta como algo mais que um recurso, a ser incessantemente consumido. Mas esta nova mirada exige também outras relações entre os próprios seres humanos. É urgente ultrapassar o modelo da competição, segundo o qual “a vida de cada indivíduo ou coletividade é reduzida a uma sucessão de batalhas, às vezes ganhas, mas que terminam numa guerra perdida de antemão”.

Uma possível forma de fazê-lo é apresentada por Serge Latouche, em “As vantagens do decrescimento”. Ainda pouco debatido no Brasil, este conceito questiona o culto ao aumento incessante do Produto Interno Bruto (PIB). Enfeitiçadas por este índice, argumenta o autor, as sociedades – e junto com elas, a esquerda tradicional – fecham os olhos ao que está por trás dele. Passam a perseguir um “desenvolvimento” que significa, não raro, envenenamento da natureza, ampliação das desigualdades, aumento das jornadas de trabalho, consumo banal. Latouche esclarece que não propõe, como alternativa, a redução do PIB – mas uma “descolonização do imaginário”, que substitua valores como egoísmo, consumo ilimitado, obsessão pelo trabalho e eficiência produtivista por altruísmo, ampliação da vida social, direito ao lazer e apreciação das belas obras.

As sinergias perversas que a desigualdade social estabelece com a devastação da natureza – e a necessidade de rompê-las – são o tema do artigo de Ladislau Dowbor. Em “Inovação social e sustentabilidade”, ele examina e compara, com argúcia, quatro recentes relatórios internacionais sobre a situação das sociedades e do planeta. Um deles, produzido pela Universidade das Nações Unidas, constata, por exemplo, que 1% das famílias do planeta já acumula 40% da riqueza global, enquanto que a metade dos habitantes da Terra é obrigada a dividir 1%. A partir de dados como este, Ladislau provoca: “o modelo de consumo do planeta é o dos ricos. Por que razão não teriam todos os chineses e indianos direito a ter também, cada um, seu automóvel?” Esta lógica, diz ele, conduz a que “achemos normal mobilizar um carro de duas toneladas para levar nosso corpo de 70 quilos para postar no correio uma carta de 20 gramas...” Ladislau vê, como única alternativa, “pensar de maneira inovadora sobre os processos decisóros que regem o planeta e nosso quotidiano”. E conclui: “os desfios principais do planeta não consistem em inventar um chip mais veloz ou uma arma mais eficiente, mas em nos dotarmos de formas de organização social que permitam ao cidadão ter impacto sobre o que realmente importa”.

Devaneios? Susan George mostra que não. Em “Outra globalização é possível”, ela demonstra, por meio de um exemplo histórico quase esquecido, que não estamos condenados à ditadura dos mercados. Em 1942, ainda durante a II Guerra Mundial, o economista britânico John Maynard Keynes formulou, em detalhes, um projeto para reorganizar o comércio e as finanças internacionais, em bases muito distintas às que hoje prevalecem. Seu plano garantia, entre outros pontos, padrões mundiais de respeito aos direitos trabalhistas (penalizando com barreiras alfandegárias os produtos dos países que resistissem às normas); direito das sociedades a proteger suas indústrias nascentes; sustentação dos preços dos produtos primários; criação de mecanismos financeiros capazes de evitar a desigualdade no comércio entre as nações. Keynes acreditava nas virtudes do capital, mas o capitalismo real terminou por ignorar suas idéias. Há 65 anos, ele vislumbrou alguns dos riscos a que estavam submetidas as sociedades que entregam seu destino aos mercados. Diante do espectro da catástrofe climática, saberemos inventar lógicas sociais que superem a pequenez do cálculo econômico e estabeleçam o direito humano à construção consciente do futuro coletivo?

Os editores

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