O perfil de um agricultor agroecológico
Os ensinamentos de Amauri contra latifúndios, agrotóxicos e o lançamento de seu terceiro livro
Os olhos azuis miram a vegetação. Ora tímidos, ora vagos se tornam serenos ao início calmo da fala. O personagem é Amauri Adolfo da Silva, poeta, homeopata, produtor rural, ou como faz questão: um agricultor agroecológico. Os vislumbres de Amauri viraram livro, o último: O Trem – Um sonho de luz e ternura que conta a saga de uma locomotiva que só trilha uma direção: o Norte. Caminho sem volta, metáfora do panorama do campo brasileiro nos últimos trinta anos, fruto da modernização agrícola. “O crescimento da ciência sem consciência", diz.
Sob a luz mansa de uma sexta-feira, fábula e realidade se fundem no clima ameno propiciado pela hospitalidade de Amauri. Os sete hectares de terra, em Espera Feliz, Zona da Mata Mineira, apontam a inspiração: o sol nasce no decote das montanhas, o cheiro do café moído no moinho girado pelas mãos hábeis e da broa de farinha de biju inebriam os sentidos e compõem o quadro com a flora variada: “Ipê tabaco, Cedro, Uvalha, Capoeira branca, Ingá, Cabiúna, Jacarandá, Angico” - e flores, muitas flores
Redemoinho foi o primeiro livro de Amauri, teve edição independente e traz poemas. Pedaços de Poesia, que espera ser editado, é o que o nome promete. Já O TREM, Amauri pensa lançá-lo em uma das estações da desativada Estrada de Ferro Leopoldina-Cataguazes, a mais antiga ferrovia do Estado de Minas Gerais.
Cachinho de Luz e Olhos de Ternura são as duas personagens principais da obra. Luz e ternura são características que retirou das filhas, mas não significa que sejam elas. Na ficção, as meninas descobrem uma locomotiva que faz o caminho contrário. Partem rumo ao Sul, em busca de um baú de saberes, e encontram contadores de histórias, artesãos, benzedeiras, folia de reis, festa do padroeiro e muitas mulheres chamadas de Maria, como ainda é comum no interior mineiro.
O corpo franzino e o rosto miúdo já têm 41 anos. Reclama do pouco tempo e do excesso de compromissos que o afastam da propriedade. É militante engajado em lutas do campesinato da região há 25 anos. Participou das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), envolveu-se com a Teologia da Libertação, da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) local e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STRs) no município, além da intensa luta contra os agrotóxicos.
Volta e meia dispensa o chinelo e as botas para caminhar descalço pela propriedade. Acompanhado da esposa Vera, conversa com animais e plantas. Maneja a propriedade com técnicas peculiares: homeopatia, florais e reick, maneira de trabalho que chama de agroecologia. “É uma forma de respeito a todos os tipos de vida. Gosto de dizer que trabalho em mutirão com todos os seres que existem na propriedade, em sistema de solidariedade. Esse é um caminho de vida, contra um outro de morte, que é esse do latifúndio. Os valores são outros, não dá para você pensar só no dinheiro”.
O papo se prolonga e, aos poucos, a história surge e com ela a de vários outros agricultores da região. Amauri lembra que a monocultura e o latifúndio cresceram ali à época de seu pai, década 70, quando trouxeram a substituição do modo de produção tradicional pelo o que ele chama de “pacote tecnológico” - uso de fertilizantes químicos, máquinas e melhoramentos genéticos - que, mesmo contrariado, foi obrigado a adotar, pois o crédito rural estava vinculado ao uso: “Falavam para a gente que aquilo era remédio. Trabalhávamos sem nenhuma proteção”. Em conseqüência, aos 12 anos sofreu com uma intoxicação.
Há quatro anos não faz adubação química, orgânica ou mesmo pulverização na lavoura e diz conseguir produção de café semelhante à dos vizinhos, produtores convencionais. “As pessoas sempre me perguntam: quanto você está produzindo? Acho que a pergunta deveria ser mudada para: quanto custa produzir? Quanto, por exemplo, gasto com saúde? Tem gente que passa vida inteira tentando ganhar dinheiro e esquece da saúde. E quando consegue juntar uma boa quantia de dinheiro, é obrigado a gastar tudo com hospital”, ensina
Desenvolvimento local
A manhã passa rápido após o café. Amaury tem um encontro cujo tema é desenvolvimento local. Numa pequena casa próxima a entrada da cidade está a escolinha sindical. Os presentes: representantes de entidades locais – Pastoral da Juventude, Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais, Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata Mineira, Sindicatos dos Trabalhadores Rurais - e alguns agricultores.
As cadeiras formam um círculo e a discussão tem início. Sentado, segurando uma pequena corrente presa a um cristal que balança, Amauri mais escuta do que fala. Quando intervem, não levanta a voz. Quem está distante precisa esticar o pescoço: “Não tem como haver desenvolvimento se não houver envolvimento das pessoas...”.
Na primeira quinzena de agosto, Amauri recebeu em seu sítio, Espaço Saber Cuidar, cerca de 20 estudantes, de nove estados, que participavam do 28º Encontro Nacional de Estudantes de Ciências Biológicas (ENEB). Na ocasião, falou sobre agroecologia. A experiência não é única e o contato, cada vez mais freqüente com a academia traz a região gente desejosa de conhecer o saber local dos agricultores. Amauri também palestrou para mais de 500 estudantes no principal auditório da Universidade Federal de Viçosa (UFV), durante o 48º Congresso Nacional dos Estudantes da Agronomia (CONEA), realizado em agosto de 2005.
Caminhando pelas trilhas e atento aos pequenos detalhes, no final da tarde coloca música para as plantas. Planeja montar um sistema de som que chegue a sua área de cultivo. “Música clássica” é o repertório para as plantas. Qualquer música? “Beethoven não. Dele elas não gostam”.
O que os vizinhos pensam? “Muitos deles acham que sou louco, mas digo: loucura não é usar veneno, não é maltratar os animais, a mulher, deixar os filhos o dia todo em frente à TV assistindo cenas de violência? Muitas vezes, de tanto ver, nos acostumamos com o absurdo e o tomamos como normal”, finaliza, antes de seguir para uma cidade vizinha onde falará sobre homeopatia para outros agricultores.
Leornado Dupin é jornalista.