A literatura que vem da Ásia
Que o leitor mais exigente não se engane: há, em tais best-sellers, algo que cativa e que aparece justificado num fazer literário que, não sendo fruto da mente de gênios da literatura, ainda assim, tem o seu lugar.
Isa Fonseca - LeMonde-Br
O cinema asiático tem estado cada vez mais presente em nossas telas, permitindo o acesso a uma cultura que não a nossa. Estamos também vivendo, ultimamente, uma fase de abundância de obras nas livrarias, especialmente romances, que relatam os pormenores quanto aos valores dessa cultura, antes tão obscuros para nós que vivemos no ocidente. Principalmente em foco, a questão da mulher e a evidente opressão na sociedade patriarcal por onde transitam.
O caçador de pipas (Editora Nova Fronteira), best-seller de Khaled Hosseini, vem nos dar a justa medida desse fenômeno, por assim dizer, literário, que vem suprir nossa curiosidade quanto aos costumes orientais. Excetuando-se os deslizes de tradução – como o problema de declinação de alguns tempos verbais, muito provavelmente ocasionados pela própria dificuldade que as transposições de linguagem oferecem (mas que poderia ser resolvida com uma adequada revisão do português), – a narrativa flui de maneira segura e precisa. Como a grande maioria dos best-sellers, não é uma leitura para os muito exigentes, que prefeririam ter em mãos, muito provavelmente, uma obra do indiano Naipaul, ganhador do Booker Prize na década de 70 e do Nobel, mais recentemente, em 2001.
Em seu segundo romance, A cidade do sol (Editora Nova Fronteira) – originalmente A thousand splendid suns, que, de acordo com o contexto da obra, parece fazer mais sentido e soa mais poético –, Khaled Hosseini permanece com seu estilo narrativo fluente e sem grandes surpresas (nenhuma inovação estilística), oferecendo-nos um recorte mais detalhado de como é o tratamento dado às mulheres no Afeganistão. E, novamente, os problemas com os tempos verbais se repetem, ocasionando um certo desconforto ao leitor.
Macetes do fazer literário
Uma questão bastante próxima — e que aparece, também, consecutivamente na obra da autora que citaremos a seguir —, é o uso inadequado do termo "agora", no lugar de "então", e mesmo a demarcação do tempo, quando se coloca "hoje...". Como novos acontecimentos vêm a seguir, os termos "agora" e "hoje", bastante determinados, acabam por não fazer sentido em meio a uma ação que o autor julga presente. E tais termos, colocados no momento, no calor da escritura da história, dão a entender que há um esquecimento ou uma ignorância da lógica própria do fio narrativo (que são os novos episódios que virão). Imaturidade do escritor quanto ao fazer literário? É bem possível, porque tais termos soam deslocados para o leitor, que vem seguindo o curso de uma série de eventos que não tiveram ainda o seu término — ou seja, há fatos que ainda estão por vir, fatos estes que se sucedem descritivamente, como é próprio de tais romances, de narrativa simples e, de certo modo, previsível —, causando deste modo um estranhamento ao leitor mais atento.
Eis um exemplo: a certa altura, diz o narrador de A cidade do sol: "Agora, naqueles olhos, via como tinha sido tola". E continua: "Tinha sido uma esposa infiel? Foi a pergunta que se fez". No contexto de uma narrativa inventiva e vertiginosa, como é a prosa de um João Gilberto Noll, por exemplo, em um texto como em seu romance Lorde, em que fatos e memória se misturam e tempos narrativos também, tais termos, lançados aqui e ali, fazem sentido — pela própria concepção de corpo do texto. Mas nestas obras que citamos acima e na que será citada a seguir, não. Uma simples troca de "agora", por "então" ou "naquele momento", resolveria a questão e traria menos desconforto ao leitor.
Mas estes são pequenos, por assim dizer, macetes do fazer literário, que são obtidos com o tempo e a maturidade de quem faz literatura, e que está atento ao o que é o fazer literário. Ou seja, mesmo nas narrativas mais simples, é preciso que o talento, fruto também da maturidade e experiência do autor, transpareça, esteja presente; para não embaraçar e confundir o leitor.
Os fios da fortuna
Em outro best-seller mais recente, Os fios da fortuna (Editora Nova Fronteira), de Anita Amirrezvani, iraniana criada na Califórnia, a história se passa no século 17, mas ao final da obra a escritora deixa claro que muita coisa ainda não mudou na região do Irã, antiga Pérsia, como o contrato de casamento temporário, o sigheh, que permite ao marido recusar ou prolongar a validade de tal contrato, a seu bel-prazer. Outros tipos de opressão vão sendo relatados no romance, como as humilhações por que passa a mulher que não pode ter filhos ou que, ao perder o marido, enfrenta dificuldades quanto à sobrevivência. Este, aliás, é o motivo que sustenta toda a narrativa da trama, pois mãe e filha adolescente são obrigadas a viverem sob o teto de parentes, ao perderem o chefe da casa, mas tratadas como escravas e sem o direito de decidirem sobre seus destinos.
Ao longo da obra, vê-se que não basta a mulher ser talentosa para ter direito a um trabalho que dê visibilidade a este predicado, o qual poderia ser o suporte de um sustento. Mãe e filha trabalham arduamente em tarefas domésticas em seu novo lar e já na metrópole, sendo que a garota é comprovadamente uma boa (que se tornará ótima) tecelã, desde os tempos em que vivia em sua aldeia. Mesmo ainda tendo muito a aprender e se esforçando para tal, lutar por um espaço na sociedade objetivando reconhecimento, na maneira como essa é configurada, revela-se praticamente impossível. E é por este caminho que o romance mais nos atrai, ou seja, a capacidade de luta e recuperação das quedas por que passa a personagem principal.
Que o leitor não espere do romance, como nos anteriores citados, algum arroubo de criatividade, ou escrita inventiva. Mas Os fios da fortuna não chega a ser uma obra medíocre, muito pelo contrário. A autora insere, de maneira habilidosa, contos folclóricos e histórias da tradição oral em meio à narrativa que é o fio condutor da trama – recurso que dá certa originalidade ao corpo do texto. No mais, Anita Amirrezvani sabe conduzir o leitor, instigando-o, como aliás é um dos ensinamentos proposto por muitas destas histórias, como encontramos em As mil e uma noites.
Mulheres sem voz
Os fios da fortuna mostra-se, portanto, uma obra agradável de ser lida e bastante reveladora dos costumes orientais. E, quanto a estes, é interessante notar os assuntos referentes à culinária, aos trajes típicos, ao mobiliário e à arquitetura, aos detalhes da feitura das tecelagens (cor, motivos, estrutura), assim como às particularidades dos espaços públicos (aliás, são estas referências que dão sentido a tais obras asiáticas e que se tornam best-sellers aqui). Mas o mais tocante é perceber a fragilidade da mulher em tal contexto, seus sentimentos de humilhação e rebaixamento, o desprezo que lhes lançam a sociedade e parentes quando são consideradas vítimas da “má sorte”. E esta tal má sorte, no tocante às mulheres, é algo que parece rondar suas vidas o tempo todo, pois de algum modo sempre aparecem como mal-ajustadas a uma cultura que privilegia os valores ditados pelo machismo. Triste saber que até hoje, ainda, muitos de tais costumes prevalecem.
Que o leitor mais exigente não se engane: há, em tais best-sellers, algo que cativa e que aparece justificado num fazer literário que, não sendo fruto da mente de gênios da literatura, ainda assim, tem o seu lugar e, a julgar pelo sucesso de tais romances, ao longo destes últimos anos, os seus fiéis leitores. Se tais obras, futuramente, serão descartadas e alijadas, ao menos fizeram sentido, ao desvelar, em forma de literatura, os costumes orientais. Nada desprezível nesse tempo em que vivemos – de ditaduras, massacres, refugiados e imagens televisivas misteriosas de mulheres guarnecidas por seus véus, suas burcas. Ao menos podemos perceber, um pouco, o que passa em suas mentes de oprimidas, de mulheres sem voz e de direitos escassos.