Encontro com a guerrilha curda
Um repórter do Diplô visita, na fronteira da Turquia com o Iraque, um acampamento do PKK – um dos grupos que luta por um país independente para os curdos. Conhecidos há 5 mil anos, mas dispersos desde a I Guerra entre quatro países, eles são 30 milhões – o maior povo sem pátria do planeta
Olivier Piot
Um alpendre de madeira escondido pelas redes de camuflagem. Fuzis Kalachnikov pendurados ao acaso. Sob esse dossel improvisado, uma mesa acaba de ser posta. Carnes, verduras, frutas e chá. Uma recepção bem-vinda depois das dez horas de estrada que acabamos de enfrentar desde Erbil, a capital da região administrada pelo governo curdo do Iraque. Um dia inteiro de viagem, sob o calor do verão escaldante. Um labirinto de pistas caóticas para chegar a esta zona árida e montanhosa situada no extremo norte do país, ao longo das fronteiras turca e iraniana. No caminho, bem depois de Rewandiz, houve um ponto em que desapareceram as barreiras de soldados do governo curdo iraquiano. Entramos, então, na zona - tampão de 350 quilômetros de extensão, sobre a linha da fronteira com a Turquia. Os uniformes diferentes indicavam que o controle cabia, agora, às forças armadas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK).
Este refúgio estratégico dos combatentes da resistência curda (peshmergas) não é de hoje. Desde 1984, quando os separatistas do PKK deflagraram a luta armada contra o Estado turco, militantes passaram a ser enviados para a área como força de reserva. Os acampamentos foram instalados nas montanhas e os dirigentes do partido, muitos dos quais formados entre os palestinos do sul do Líbano, ajudaram a organizar essas bases de retaguarda. Mas a guerrilha se desenrolava então principalmente do outro lado da fronteira, nas regiões curdas do sudeste da Turquia. Durante os anos 80 e 90, só os militantes mais expostos se retiravam para o Iraque. Pois a zona tinha outra vocação: formar militar e politicamente os quadros destinados a voltar à Turquia para pleitear, pelas armas, a independência do Curdistão anatólio.
A situação mudou em 1993, com a morte do presidente turco Turgut Ozal, favorável à legalização do PKK. Desmoronou, então, a esperança de uma solução negociada com o governo de Ancara. Um ano depois, os deputados eleitos pela chapa do primeiro partido pró-curdo, o Partido do Trabalho do Povo (HEP), tiveram sua imunidade parlamentar retirada. Em fevereiro de 1999, o presidente do PKK, Abdullah Ocalan, foi detido e aprisionado na ilha turca de Imrali [1]. Desde o primeiro mês de sua prisão, ele lançou um apelo pelo fim da luta armada. Seu objetivo: privilegiar a “transformação democrática” da Turquia, negociando a solução da “questão curda” com as autoridades de Ancara.
Os militantes do PKK foram chamados a se reunir, com suas armas, nas montanhas iraquianas. Em 2002, o partido mudou de nome para Congresso pela Liberdade e Democracia no Curdistão (Kadek). As referências ao marxismo-leninismo e à luta de classes foram abandonadas [2]. Sinal dessa evolução legalista, o Partido da Turquia Democrática (DTP), pró-curdo, criado em 2005, que se recusava a qualificar o PKK como “organização terrorista”, conquistou, em julho de 2007, vinte cadeiras no parlamento de Ancara. Em contrapartida, cerca 3.500 peshmergas do PKK foram afastados da ação imediata e são mantidos na reserva nas bases de retaguarda do norte do Iraque. Em solo turco, 2 mil combatentes permanecem na clandestinidade.
Até 2007, sinais de trégua. Então, as eleições acendem o patriotismo do exército turco
Agosto de 2007. Em meio à dezena de combatentes da resistência que nos recebem nos montes Zagros, um homem se destaca. Cinqüentão, rosto macilento, cabelos castanhos claros, ele exibe a atitude marcial de um militante de primeira hora, mas não se apresenta. “O que você acha da Argélia? Dos independentistas da Córsega? De Che Guevara?” Uma chuva de perguntas. Meu interlocutor confessa ter passado 25 anos nas prisões turcas. Ali, leu muito. Libertado junto com outros no início desta década, logo se uniu à resistência. Falamos de Balzac, de Lenin e, é claro, de Ocalan, “o presidente dos curdos”. De repente, ele se levanta. Um carro vem em nossa direção. Cinco homens armados descem. Um deles é mais velho. Trata-se de Murat Karayilan, presidente do Congresso do Povo do Curdistão (KCK), a instância colegiada dirigente do partido.
Sua presença aqui é perigosa. Ninguém ignora. Mas como os bombardeios iranianos são freqüentes [3], o alto dirigente tem de se deslocar sempre que possível. Nossas baterias de telefone são retiradas, o computador é momentaneamente confiscado. A entrevista ocorre num cômodo bem arrumado. Tapete no chão, janelas obstruídas. Nas paredes, retratos de mártires do partido e, é claro, de Ocalan. Quando Karayilan se prepara para responder as minhas perguntas, a ele se junta meu interlocutor de há pouco, especialista em literatura francesa e marxismo. Chamemo-lo Bozan, pois ele não diz seu nome. Tendo se apresentado inicialmente como um militante de base do PKK, agora revela ser o vice-presidente do KCK.
Uma tempestade que se armará sobre a zona que os homens do PKK controlam: acordo entre Ancara e Bagdá para erradicação das “forças terroristas” [4] da guerrilha; elevação de tom no discurso belicoso das autoridades turcas; voto do parlamento de Ancara autorizando a intervenção do exército no norte do Iraque. No mês de agosto, as cartas já haviam sido lançadas. “Desde fevereiro, os turcos têm deslocado milhares de soldados para a fronteira, e a queda-de-braço para as eleições legislativas na Turquia [julho de 2007] levou o exército a fazer a propaganda nacionalista”, explica Karayilan. “Fomos informados das tratativas entre Ancara, Bagdá e Washington. Espero simplesmente que o AKP [Partido da Justiça e do Desenvolvimento, no poder em Ancara] do primeiro-ministro turco Erdogan saiba aproveitar a chance que nossos novos deputados lhe oferecem para encontrar uma solução democrática e negociada para o problema curdo.”
Qual seria o objeto dessa negociação? O PKK ainda se apega à sua antiga reivindicação de um único Estado para as populações curdas da Turquia, do Iraque, do Irã e da Síria? “É um objetivo que permanece em nosso programa, mas é longínquo”, responde o dirigente. “Na realidade, e os turcos sabem disso, estamos dispostos a negociar uma autonomia regional semelhante à da Catalunha, no contexto das fronteiras da Turquia. É uma mão estendida.”
Os militantes são jovens. Vêem da Turquia, Iraque, Irã e Síria...
O Curdistão iraquiano, onde estão refugiados os combatentes do PKK, é administrado pelo Partido Democrático (PDK) e pela União Patriótica (UPK), duas organizações que assinaram um acordo em 2002. A região dispõe de uma grande autonomia dentro do Iraque e os dois partidos são aliados dos Estados Unidos. Karayilan conhece todos esses parâmetros do cenário regional. A começar pelas escolhas políticas dos “irmãos” curdos iraquianos. “O governo de Erbil já participou de duas guerras - sanduíche contra nós, com os turcos, nos anos 1990. Espero que não cometa o mesmo erro. Mas o passado nos ensinou a contar somente com nós mesmos”, comenta. “Ocorre que a questão curda é um ponto central do processo democrático da região. No Iraque, os norte-americanos fizeram a escolha certa ao apoiar, desde 1991, a vontade de autonomia dos curdos. Se quiserem avançar, sobretudo na democratização da sociedade turca, serão obrigados a olhar para além do Iraque.” Fitando o dirigente do KCK, acredito perceber uma dúvida em seus olhos. E se, no fundo, ninguém precisasse do PKK?
Visita a um acampamento de mulheres
Durante vários dias, visitamos “postos” de peshmergas na montanha. Como o acampamento de mulheres, membros da Yjastar (seção feminina do exército de libertação), que representa 40% das forças combatentes. A mais de 2 mil metros de altitude, camuflada entre as árvores e os rochedos, sua base está ao pé do maciço que assinala a fronteira turca. As militantes são jovens; muitas vêm da Turquia, mas outras nasceram no Iraque, no Irã ou na Síria. Oriunda de uma aldeia ao sul de Esmirna, na Turquia, Aské, 21 anos, luta desde os catorze. “Meus pais eram muito engajados no partido”, confidencia. “Abracei a causa já no colégio. Com a convicção de que a libertação do povo curdo passa também por uma luta contra as relações feudais impostas às mulheres.”
Para produzir alimento, todas as combatentes desta zona cultivam a horta comunitária. Uma nascente jorra a dois passos. Uma vez por semana, o serviço logístico – cuja estrutura permanecerá “confidencial” – lhes fornece arroz, carne, cigarros, pilhas etc. E também jornais e as declarações do presidente Ocalan, transmitidas por escrito por intermédio de seu advogado, uma das raríssimas pessoas autorizadas a vê-lo em sua ilha-prisão. Para o noticiário recente, um pequeno aparelho de rádio permite que o grupo fique conectado ao mundo exterior, graças à BBC. Regularmente, as guerrilheiras debatem temas políticos e sociais. “É a maneira de continuarmos a nos instruir mutuamente”, declara a chefe de seção, 35 anos, a decana do acampamento.
A seu lado está Horin, vinda de Alepo, na Síria, para participar da guerrilha: “Também no território sírio a pressão sobre a população curda é muito forte. Por isso, quando a seção local do PKK me propôs que viesse me formar aqui, aceitei imediatamente”. Seu desejo: voltar à Síria para “conduzir a luta política”. E se o PKK conseguir negociar uma autonomia na Turquia? “Será bom, como no Iraque. Mas a luta deverá continuar até que obtenhamos o grande Curdistão, tal como nos foi prometido pelos Aliados em 1920.” [5]
Milhares de aldeias destruídas, centenas de milhares de pessoas deslocadas à força
Regresso ao acampamento-base, onde passamos a noite. Ao pé dos rochedos, cujas formas imponentes se delineiam por trás da tenda principal, os militantes olham, fascinados, para a tela de uma improvável televisão. A alguns metros, o disco esbranquiçado de uma parabólica esclarece o enigma: Os Visitantes 2, em versão turca! Os rostos dos guerrilheiros se vislumbram à luz bruxuleante das imagens que desfilam, freqüentemente interrompidas pelos “soluços” de uma transmissão aleatória. Perto das mesas de madeira usadas para as refeições, um retrato em preto-e-branco: o rosto imortalizado de um dos fundadores do PKK.
Cinco horas da manhã. O grupo já está reunido diante do chefe. Dez pessoas devem ir buscar lenha. Uma escalada exaustiva de uma hora numa encosta íngreme. Tudo para alimentar diariamente o fogo do chá tradicional. Café-da-manhã. O chefe junta-se a nós. É um rapaz com cerca de trinta anos, de cara fechada, dura, e uma perna que arrasta atrás de si ao se deslocar. “Fui ferido num confronto com o exército turco”, confidencia de imediato. Nascido em Dyarbakir, a capital histórica do “Curdistão norte”, Ahmed se juntou ao PKK aos catorze anos de idade. “Na minha região, a repressão turca foi muito dura: milhares de aldeias destruídas, centenas de milhares de pessoas transferidas à força. Foi nos anos 1990. Estou aqui há dois anos. É uma escolha que exige caráter firme e muitos sacrifícios. Os foguetes turcos, os mísseis iranianos, todos os dias a morte passa perto. Mas se não lutarmos pelo povo curdo, quem lutará?”
Em setembro-outubro, a situação ficou mais tensa no Curdistão. Vários choques confrontaram o exército turco e combatentes do PKK. Volto a pensar nas palavras de Karayilan: “Há anos interrompemos as incursões na Turquia e nossa guerrilha local se limita a responder às provocações dos soldados turcos. Mas se amanhã a Turquia escolher a guerra aberta, saberemos reagir. E todo o povo curdo se erguerá ao nosso lado”.
[1] Michel Verrier, “En Turquie, procès au peuple kurde”, Le Monde Diplomatique, junho de 1999.
[2] Michel Verrier, “Paisagens antes da guerra”, Le Monde Diplomatique Brasil, outubro de 2002.
[3] Combatentes curdos iranianos também estão refugiados nesta zona.
[4] O PKK está inscrito desde 1997 na lista das “organizações terroristas” estabelecida pelos Estados Unidos. Classificação que a União Européia, por sua vez, passou a adotar em 2002.
[5] Com a vitória ao final da Primeira Guerra Mundial, os Aliados previram a criação de um Estado curdo por ocasião do tratado de Sèvres (1920). Três anos depois, o tratado de Lausanne (1923) dividiu a região do Curdistão entre quatro Estados: Turquia, Irã, Iraque e Síria.