Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis!
Bertold Brecht
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
por Jean Bricmont
Entrevistado por Leila Lallali [*]
Qual é sua opinião sobre a situação atual na Faixa de Gaza?
Penso que é importante constatar que, além dos horrores cometidos e dos sofrimentos suportados, trata-se de uma enorme derrota para Israel. Não podemos avaliar quem ganha ou quem perde se não levarmos em conta as relações de força aí envolvidas. É quando Moscou ou Leningrado resistem aos alemães que estes perdem, bem antes de Stalingrado. Ora, no caso de Gaza, as relações de força são ainda mais desequilibradas do que no Líbano em 2006, e, entretanto, Israel não ganha, então sua derrota é ainda maior. Com efeito, é preciso compreender o que seria para Israel ganhar (o que se passou mais ou menos em 1967): soldados que se rendem ou fogem, dirigentes do Hamas presos e levados a Israel para serem julgados como "terroristas". Ora, nada disso se passa em Gaza. Ademais, é preciso ter em conta o efeito ideológico ligado à monstruosidade dos crimes, à revolta que eles inspiram, não somente no mundo árabe, mas em todo o "terceiro mundo", e também, em parte, na Europa. É preciso reconhecer o valor da emissora de televisão Al Jazeerah, e também da Internet, que permitiram que as pessoas realmente se informassem.
O senhor pensa que a agressão israelense a Gaza foi causada pelos foguetes do Hamas, ou existem outros objetivos?
Israel não me mantém informado de seus planos secretos, e, enquanto cientista, não gosto de especular muito. Então, não sei nada sobre isso. Há talvez objetivos eleitorais. O que é evidente é que os tiros de foguete, situados em um contexto global, não podem justificar a agressão. É evidente que teria sido necessário abandonar o bloqueio e negociar com o Hamas. Também evidente, e inquietante, é o fato de que nós mal podemos ver que objetivo os israelenses perseguem e podem racionalmente esperar atingir. Qualquer observador objetivo se dá conta de que este ataque não pode senão reforçar o Hamas, assim como a hostilidade com relação a Israel. Há qualquer coisa de profundamente irracional nesta atitude israelense, e, de certo modo, é isso o que há de mais inquietante.
Israel desafia o mundo e a Organização das Nações Unidas não é capaz de impedir que isso ocorra; como fazer face a este Estado?
Primeiramente, é preciso compreender que a impotência das Nações Unidas deve-se inteiramente ao bloqueio dos Estados Unidos. A Assembléia Geral e mesmo o Conselho de Segurança podem ter boas posições (mas é preciso lembrar que há o direito de veto). Logicamente, visto a força militar de Israel, não é evidente que se pudesse agir neste plano. Entretanto, podemos utilizar a arma . As sanções dependem de estados e é pouco provável que a Europa e os Estados Unidos as adotem. Por outro lado, podemos admirar a atitude da Bolívia e da Venezuela que, embora situadas longe do conflito, adotam posições de princípio notáveis, e das quais poderíamos esperar que inspirem estados que são geográfica e culturalmente mais próximos da Palestina.
O boicote é uma arma cidadã, que se desenvolve muito fortemente na Grã-Bretanha. Ela foi utilizada com sucesso contra a África do Sul e eu não vejo por que, por fim, ela não poderia ser eficaz contra Israel.
Como se situa a Europa quanto ao que se passa na Faixa de Gaza?
De que Europa falamos? A senhora sabe, assim como eu, que a Europa não está unida (não mais que a Liga Árabe aliás) e que os governos não refletem suas opiniões públicas. Ademais, é preciso dar-se conta de que o problema central reside nos Estados Unidos, particularmente no Congresso e no Senado. A Europa tem muita dificuldade em tomar uma posição independente dos Estados Unidos e, mesmo se ela o fizesse, isso não mudaria grande coisa enquanto os Estados Unidos apoiam cegamente Israel. O que não quer dizer que a Europa não devesse fazer nada – se ela se distanciasse dos Estados Unidos quanto a esta questão, isso reforçaria aqueles que, nos Estados Unidos, pensam que o apoio a Israel custa caro demais para algo que não lhe diz respeito tanto assim.
Qual é o interesse da Europa em sustentar a agressão israelense a Gaza?
Quem lhe disse que ela age por interesse? Penso que, se refletirmos bem, ela não tem interesse algum a longo prazo em sustentar Israel (e em se alienar de tantas pessoas no mundo). Mas quem, entre os homens ou mulheres políticos europeus, ou homens ou mulheres de negócios, vai fazer esta análise? E quem, a supor que ele ou ela o faça, vai ousar dizê-lo? Não se pode compreender nada do que se passa na Europa e nos Estados Unidos enquanto não se leva em conta o fator do medo – medo das organizações sionistas, de suas campanhas de difamação e intimidação. É por isso que eu penso que as organizações de solidariedade deveriam antes de tudo combater este sentimento de medo, sustentando todos aqueles que dão passos, mesmo pequenos e mesmo imperfeitos, na boa direção, isto é, de mais independência com relação a Israel.
O senhor pensa que Barack Obama vai mudar a política americana, ou ele vai seguir os rastros de Bush?
Novamente, não gosto de fazer previsões – nós veremos; mas todos os sinais que Obama deu durante sua campanha mostram um apoio sem falha a Israel. Mesmo se nós supomos que era uma tática (pois ele sabia que não seria eleito se fosse abertamente contrário às organizações sionistas), é preciso não esquecer que um presidente não é um ditador e que ele deverá levar em conta essas mesmas relações de força às quais se submeteu completamente durante sua campanha. Além disso, o Congresso e o Senado acabam de votar uma resolução totalmente pró-israelense sobre o conflito em curso; se Obama tinha a menor intenção de mudar alguma coisa, ele está avisado de que tem duas câmaras contra si.
Como o senhor vê o futuro das relações internacionais sob a administração Obama?
Haverá sem dúvida mais "diplomacia", mas, como observa Chomsky, Condoleeza Rice falava também de diplomacia. Sobretudo a primeira administração Bush foi todo o tempo partidária da guerra, mesmo se sozinha contra o resto do mundo. Posteriormente, o discurso mudou, e mudará ainda mais com Obama. Mas, no fundo, o que realmente ocorrerá? Meu temor é de que o entusiasmo, em parte legítimo, provocado pela eleição de um negro faça calar os críticos da política americana ou, pior, que as vozes críticas sejam acusadas de racismo. O problema é que Obama terá muito mais "legitimidade" que Bush, ao menos se tomarmos este no fim de seu governo. Ora, o que limita a nocividade dos Estados Unidos não são as intenções de seus dirigentes, mas sobretudo a oposição popular à sua política, o que será muito mais difícil com Obama do que com Bush.
Para o povo palestino, a única esperança é de que a crise econômica leve a uma tomada de consciência, nos Estados Unidos, de que muitas coisas não vão bem em sua política e, na verdade, lhes causam danos; e uma das mais importantes destas é o apoio cego a Israel.
Balanço do Fórum e do outro mundo possível
Os que acreditam que o fim do Fórum Social Mundial é o intercâmbio de experiências devem estar contentes. Para os que chegaram a Belém angustiados com a necessidade de respostas urgentes aos grandes problemas que o mundo enfrenta, ficou a frustração, o sentimento de que a forma atual do FSM está esgotada, que se o FSM não quer se diluir na intranscendência, tem que mudar de forma e passar a direção para os movimentos sociais. A análise é de Emir Sader.
Um balanço do FSM de Belém não deve ser feito em função de si mesmo. Ele não nasceu como um fim em si mesmo, mas como um instrumento de luta para a construção do “outro mundo possível”. Nesse sentido, qual o balanço que pode ser feito do FSM de Belém, do ponto de vista da construção desse “outro mundo”, que não é outro senão o de superação do neoliberalismo, de um mundo pósneoliberal?
Duas fotos são significativas dos dilemas do FSM: uma, a dos 5 presidentes que compareceram ao FSM – Evo, Rafael Correa, Hugo Chavez, Lugo e Lula -, de mãos dadas no alto; a outra, a fria e burocrática de representantes de ONGs brasileiras em entrevista anunciando o FSM. Na primeira, governos que, em distintos níveis, colocam em prática políticas que identificaram, desde o seu nascimento, o FSM: a Alba, o Banco do Sul, a prioridade das políticas sociais, a regulamentação da circulação do capital financeiro, a Operação Milagre, as campanhas que terminaram com analfabetismo na Venezuela e na Bolívia, a formação das primeiras gerações de médicos pobres no continente, pelas Escolas Latinoamericanas de Medicina, a Unasul, o Conselho Sulamericano de Segurança, o gasoduto continental, a Telesul – entre outras. A cara nova e vitoriosa do FSM, nos avanços da construção do posneoliberalismo na América Latina.
Na outra, ONGs, entidades cuja natureza é fortemente questionada, pelo seu caráter ambíguo de “não-governamentais”, pelo caráter nem sempre transparente dos seus financiamentos, das suas “parcerias”, dos mecanismos de ingresso e de escolha dos seus dirigentes – a ponto que, em países como a Bolivia e a Venezuela, entre outros, as ONGs se agrupam majoritamente na oposição de direita aos governos. Sua própria atuação no espaço que definem como “sociedade civil” só aumenta essas ambigüidades. Entidades que tiveram um papel importante no inicio do FSM, mas que monopolizaram sua direção, constituindo-se, de forma totalmente não democrática, como maioria no Secretariado original, deixando os movimentos sociais, amplamente representativos, como a CUT e o MST, em minoria.
A partir do momento em que a luta antineoliberal passou de sua fase defensiva à de disputa de hegemonia e construção de alternativas de governo, o FSM passou enfrentar o desafio de se manter ainda sob a direção de ONGs ou passar finalmente ao protagonismo dos movimentos sociais. No FSM de Belém tivemos a primeira alternativa, no momento daquela fria e burocrática entrevista coletiva das ONGs. E tivemos, como contrapartida, sua formidável cara real, com os povos indígenas e o Forum PanAmazonico, com os movimentos camponeses e a Via Campesina, com os sindicatos e o Mundo do Trabalho, com os movimentos feministas e a Marcha Mundial das Mulheres, os movimentos negros, os movimentos de estudantes, os de jovens – com estes confirmando que são a grande maioria dos protagonistas do FSM.
O FSM transcorreu entre os dois, entre a riqueza, a diversidade e a liberdade dos seus espaços de debate, e as marcas das ONGS, refletidas na atomização absoluta dos temas, na inexistência de prioridades – terra, água, energia, regulação do capital financeiro, guerra e paz, papel do Estado, democratização da mídia, por exemplo. À questão: o que o FSM tem a dizer e a propor de alternativas diante da crise econômica global e diante dos epicentros de guerra – Palestina, Iraque, Afeganistão, Colômbia -, que propostas de construção de um modelo superados do neoliberalismo e de alternativas políticas e de paz para os conflitos, a resposta é um grande silêncio. Houve várias mesas sobre a crise, nem sequer articuladas entre si. As atividades, “autogestionadas”, significam que os que detêm recursos – ONGs normalmente entre eles – conseguem programar suas atividades, enquanto os movimentos sociais se vêem tolhidos de fazer na dimensão que poderiam fazê-lo, para projetar-se definitivamente como os protagonistas fundamentais do FSM.
Para os que acreditam que o fim do FSM é o intercâmbio de experiências, devem estar contentes. Para os que chegaram angustiados com a necessidade de respostas urgentes aos grandes problemas que o mundo enfrenta, a frustração, o sentimento de que a forma atual do FSM está esgotada, que se o FSM não quer se diluir na intranscendência, tem que mudar de forma e passar a direção para os movimentos sociais.
Surpreendente a quantidade e a diversidade de origem dos participantes, notáveis as participações dos movimentos indígenas e dos jovens, em particular, momento mais importante do FSM a presença dos presidentes – cujas políticas deveriam ter sido objeto de exposição e debate com os movimentos sociais de maneira muito mais ampla e profunda. Triste que todo esse caudal não fosse ouvido, nem sequer por internet, a respeito do próprio FSM, das duas formas de funcionamento, da sua continuidade – outro sintoma do envelhecimento das conduções burocráticas dadas ao FSM. No dia seguinte ao final do FSM, reuniu-se o Conselho Internacional, de maneira fria e desconectada do que foi efetivamente o FSM, em que cada um – seja desconhecida ONG ou importante movimento social – tinha direito a dois minutos para intervir.
O “Outro mundo possível” vai bem, obrigado. Enfrenta enormes desafios diante dos efeitos da crise, gestada no centro do capitalismo e para a qual se defendem bastante melhor os que participam dos processos de integração regional do que os que assinaram Tratados de Livre Comercio. Enfrentam a hegemonia do capital financeiro, a reorganização da direita na região, tendo no monopólio da mídia privada sua direção política e ideológica. Mas avança e deve-se se estender, sempre na América Latina, para El Salvado, com a provável vitória de Mauricio Funes, candidato favorito, da Frente Farabundo Marti à presidência, em 15 de março próximo.
Já não se pode dizer o mesmo do FSM, que parece girar em falso, não se colocar à altura da construção das alternativas com que se enfrentam governos latinoamericanos e da luta de outras forças para passar da resistência à disputa hegemônica. Para isso as ONGs e seus representantes tem, definitivamente, que passar a um papel menos protagônico no FSM, deixando que os movimentos sociais dêem e tônica. Que nunca mais existam conferências como aquela de Belém, que nunca mais ONGs se pronunciem em nome do FSM, que os movimentos sociais – trata-se do Forum Social Mundial – assumam a direção formal e real do FSM, para que a luta antineoliberal trilhe os caminhos da luta efetiva por “outro mundo possivel” – de que a América Latina é o berço privilegiado.
Para enfrentar guerra da informação, Bolívia lança jornal estatal
No dia 22 de janeiro, começou a circular na Bolívia mais um jornal, "El Cambio. Não se trata de mais um jornal, mas sim de um diário estatal. Segundo o diretor do novo diário, Delfin Arias Vargas, a missão do novo jornal não é a de ser governamental. "Esse jornal não pode ser do governo, ele é estatal. Estamos manejando a informação como pensamos que se deve, como um bem social ao qual o povo boliviano tem direito", explica Vargas.
Spensy Pimentel - Agencia Carta maior
Por Astrid Lima
Estamos em pleno inverno europeu, mas um um forte vento, o Scirocco, proveniente da África, forma túneis de ar quente que rasgam o frio na cidade de Roma. Dentro deste corredor de calor, com cartazes que se movem ao ritmo do vento, centenas de médicos e enfermeiras estão reunidos na frente de Palazzo Montecitorio, a Câmara dos Deputados italiana, com velas nas mãos.
Nas camisetas brancas está escrito: “Médicos, não espiões”.
É a manifestação convocada pelos Médicos sem Fronteiras, pela Sociedade italiana dos Médicos das Migrações e pelo Observatório Italiano sobre a Saúde Global contra uma proposta de decreto do governo italiano, que obriga o médico a denunciar às autoridades todos os clandestinos que se apresentarem como pacientes.
Este decreto, claramente racista, está em contradição com o Texto Único sobre a Migração, que prevê que o acesso à estrutura sanitária por estrangeiros irregulares não deve comportar nenhum tipo de advertência às autoridades, com a mesma paridade de tratamento aplicada a todos os cidadãos italianos.
São poucas linhas, mas de grande demonstração de civilização. Na prática, afirma-se que o médico deve respeitar o paciente independente da sua nacionalidade, religião, cor, sexo, condição social, politica.
Está no próprio juramento de Hipócrates: Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto.
É um belo juramento, apesar de velho e superado em alguns trechos. Nele ainda é intrínseca a necessidade de qualificar a prática médica, a ciência desses modernos curandeiros, mesmo em uma sociedade muito mais complexa do que aquela de séculos atrás.
Se começa jurando por Apolo, por Esculápio, por Higia e Panacéia, deuses ligados à saúde, à cura, à luz e ao sol; e eu imagino, ali, naquele momento, o jovem médico, tão nervoso quanto um presidente eleito dos Estados Unidos, jurando, porém, por algo que vai além de um mandato, de sistemas eleitorais, de geopolíticas, de impérios. Nas suas mãos estão depositados vida, morte e ética:
estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito;
Se o exercício da medicina dependesse desse simples juramento, não existiria algo como a saúde privada, como os hospitais particulares, como as operações cirúrgicas onde tudo é contabilizado: sala operatória, enfermeiros, instrumentos, remédios, anestesistas, período de internação. Onde não há acesso sem antes a verificação do cartão de crédito.
A cada toque de caixa de um plano de saúde eu me pegunto quanto vale uma vida humana. Qual é a sua cotação, que preço vai curar uma ferida, sarar uma fratura, deter uma hemorragia, extirpar um tumor, fazer continuar a respirar.
Que rosto tem o gerente, o burocrata, o técnico, o promotor de vendas e todos aqueles que decidem quais são os percentuais de lucro sob os quais não é possível descer.
Que dinheiro é esse que tem sua origem na dor humana, nos seus medos e males? E que país é aquele em que o único sistema sanitário possível é o privado?
Na Itália a saúde pública ainda é de qualidade, acessível a todos, e é considerada, junto com a francesa, uma das melhores do mundo. Ainda não foi vencida pela barbárie dos camelôs sanitários, das clínicas sustentadas com carnês mensais e com manuais de subterfúgios que ensinam como obter o máximo do lucro com o mínimo dos custos.
Ainda é possível encontrar em um mesmo quarto de uma maternidade uma jovem italiana, uma cigana, uma africana, uma ex-jogadora da seleção nacional de Vôlei. Mulheres iguais diante da maternidade.
Neste pais é ainda possível que um simples cidadão – pobre ou clandestino — possa desfrutar do mesmo hospital, dos mesmos médicos do Papa, do presidente da República ou de um magnata, como Berlusconi.
Mas é noite em Roma. E ao frio se alterna um calor estranho, impossível, provocado pelo vento e pela areia do Saara, que me suscitam imagens de antigos rituais.
“Nós não denunciaremos ninguém”, declara, orgulhoso, um cirurgião ortopédico do Policlínico Gemelli, considerado um dos maiores hospitais italianos, o mesmo que acolheu tantas vezes João Paulo II.
Aquele pequeno grupo de médicos na frente do parlamento italiano, iluminados pelas luzes das velas, reivindicam a simples possibilidade de serem fiéis ao próprio juramento: curar sem mediocridades como denunciar o próximo, monetarizar a vida, medí-la em documentos, siglas ou carimbos.
Curar todos os homens, porque este é uma antiquíssima e mítica arte, que tem a cumplicidade dos deuses, mas que foi construída com o conhecimento da humanidade inteira.
Na primeira página desta sexta-feira, a Folha traz a fotografia de Hugo Chávez cantando ao lado da filha de Che Guevara, sob o título: Karaokê no Fórum Mundial. Não há nenhuma informação sobre o que se discutiu no histórico encontro dos presidentes, que reuniu Chávez, Morales, Lugo Correa e Lula.
Na página interna, entre os milhares de participantes do Fórum, a Folha escolheu (para ilustrar a ''reportagem'') um rapaz deitado na grama, de frente pro rio.
Claro que nada disso é mentira. Chávez cantou e o rapaz deitou na grama (aliás, a vista para o rio - a partir da Universidade Federal do Pará - é belíssima; o rapaz tem toda razão em aproveitar a rica paisagem paraense).
As escolhas são sintomáticas. Passam a imagem de que tudo, em Belém, não passa de deboche e descompromisso. É o oposto do que vi por lá. Passei por Belém no início da semana. Vi centenas de pessoas reunidas em escolas, ginásios, auditórios, debatendo formas de superar a barbárie neoliberal. Ou, simplesmente, se articulando para batalhas futuras.
Nada disso está nos jornais.
Ao fazer esse tipo de cobertura, a Folha talvez imagine que esteja ajudando a esvaziar o Fórum. A ''grande imprensa'' não percebeu que ocorre justamente o contrário: é a imprensa que se esvazia, ao tratar de forma canhestra um evento que reúne no Brasil quase cem mil pessoas de todas as partes do mundo.
Para ler sobre o Fórum, e sobre o encontro dos presidentes em Belém, já sei que é preciso buscar em outro lugar. Não nos nosso jornais.
Sugiro o bom artigo de Gilberto Maringoni, na Carta Maior.
Abaixo, alguns trechos do Maringoni:
''O que leva chefes de executivo a abrirem espaço em suas agendas para comparecerem a um encontro dessa natureza? Certamente votos é o que não vêm buscar. Mas procuram solidificar ou recompor vínculos objetivos e simbólicos com setores da sociedade que alicerçaram suas trajetórias e, em última análise, sustentam suas administrações. O caminho não é de mão única. O encontro ganha peso e densidade política internacional com isso.
(...)
Nem tudo é tranquilo, no entanto. As duas atividades desta quinta com os chefes de Estado envolveram uma disputa, estabelecida entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o governo Lula. Descontentes com o que avaliam serem os poucos avanços da reforma agrária, os dirigentes do movimento decidiram não convidar o presidente brasileiro para a atividade do período da tarde.
(...)
Em um diálogo inédito, os quatro mandatários ouviram previamente demandas de representantes dos movimentos, o que levou Morales a lembrar que ''somos presidentes originários das lutas sociais continentais''. O líder boliviano era o mais entusiasmado de todos. Acabara de vencer o plebiscito que aprovou por larga maioria a nova constituição do país, reduzindo o espaço institucional da oposição de direita.
(...)
Nos tórridos dias de Belém, muitos se queixam de falhas na organização. É natural, mas tudo acaba se articulando. Davos, por sua vez, aparenta funcionar com a precisão dos outrora famosos relógios suíços. Mas a desorganização que suas diretrizes provocaram no mundo tem poucos paralelos na história recente...''
(Clique aqui para ver o texto completo)
Agora, volto eu.
Não é só a Folha. Ouvia , há pouco, a rádio Bandeirantes de São Paulo. No ar, mais uma vez, a tentativa de ''folclorizar'' o encontro de Belém. Um jovem jornalista reproduziu trecho do discurso de Chávez , em que o venezuelano dizia que milhares de empregos se perderão graças à crise mundial, e que a Venezuela sofreria menos porque lá se constrói o socialismo.
O jovem jornalista, em tom irônico, debochou.
''Esse foi o Chávez, que estava acompanhado de uma tropa em Belém, hem! Sabe quem estava ao lado dele? O ''companheiro'' Evo...''
Não era o ''presidente'' Evo Morales. O jornalista queria deixar claro que se tratava de um ''companheiro'', como a demarcar o campo: é da turma dos petistas, índios, chavistas. Não é da nossa laia.
Joelmir Betting, que estava no estúdio, pareceu encampar o deboche, lembrando: ''... e o presidente da Colômbia não estava lá em Belém.''
O jovem jornalista adorou: ''ah, não, Uribe deve ter mais o que fazer, está preocupado com as Farc''.
Aí, Joelmir completou: ''não, não, é que o Uribe preferiu ir a Davos, na Suiça''
O jovem jornalista caiu do cavalo: ''ah, então não é preocupação com as Farc''.
E eu fiquei a rir sozinho no carro... Joelmir pode ser o que for. Mas não briga com os fatos.
Os novos-ricos do jornalismo - esses garotos criados lendo só a Folha e O Globo - não conseguem nem fazer ironia. Eles, sim, são folclóricos.
Vigie a mídia
Sei que irão me trucidar por dizer isto, mas não concebo a idéia de não ler jornal, de não assistir telejornais, de não deslizar pelos meandros da programação imbecilizante das tevês, de, enfim, não dar mergulhos eventuais em cada parte dessa grande mídia que, queiram os amigos ou não, ainda exerce uma enorme, uma descomunal influência sobre o país.
Como sempre digo, prefiro verdades terríveis a mentiras sem fim. O poder da mídia pode ser uma terrível verdade, mas dizer que esse poder não tem capacidade de transtornar a vida da nação é uma mentira que precisa ter fim, pois, do contrário, esse poder a que me refiro só tenderá a crescer.
Por outro lado, se você for inteligente, se souber usar a lógica, se tiver sensibilidade e sangue-frio suficientes para ver através da indignação que brota ante a mentira, ante o engodo, ante a tentativa de manipular espíritos, poderá extrair daquilo que lhe ofende a consciência os meios para combater essa que é uma anomalia perniciosa de nossa forma de organização social.
Escolhi lutar. Como? Denunciando, apontando erros, identificando estratégias, lendo nas entrelinhas.
Uma coisa é certa: eles (a elite diminuta e conservadora e sua mídia) têm mais informações do que nós (o conjunto da sociedade) sobre muitos setores da realidade contemporânea, ainda que tenhamos informações sobre outros que eles não levarem em conta constitui sua maior fraqueza.
Procuro fazer isso e com foco, responsavelmente. Em vez de sair atirando para tudo quanto é lado, elejo um grupo de veículos poderosos e eminentes (os mais poderosos e eminentes) e os analiso a fundo, de forma a ter conhecimento e autoridade nas minhas críticas.
Não entrarei em digressão escrevendo um rol de meios de comunicação em cada tipo de mídia. Direi que, quando se trata de jornal, escolhi ler o maior em tiragem de exemplares pagos, a Folha, e, de sua leitura, consigo extrair muita informação, até porque o jornal controla um instituto de pesquisas de opinião e de mercado que ostenta os maiores níveis de acerto.
A esta altura, meu leitor médio deve estar bufando e com vontade de me esganar, pois pessoas que dedicam leitura a alguém como eu passaram da fase de ser manipuladas pela mídia, mas, se tivermos o bom senso de ver como a mídia ainda consegue induzir multidões a comportamentos literalmente irracionais, acalmaremo-nos e esperaremos que eu termine de expor minha idéia.
Escrevo sem pressa, para aqueles que gostam de ler e de raciocinar. Assim, depois de tudo isto é que caio no assunto, agora que já lhes preparei o espírito para discutirem comigo, ainda que silenciosamente, a leitura que fiz da Folha de São Paulo do primeiro domingo de fevereiro.
A manchete principal de primeira página diz o que todos estão carecas de saber e que em parte explica por que seria impossível nosso sistema financeiro ter sucumbido à crise que pôs de joelhos o sistema financeiro internacional: “Ganho de banco no país é o mais alto do mundo”.
Pudera, com o spread mais alto do mundo nossos bancos só poderiam ser os mais rentáveis. Onde está a novidade? Na idéia “jamais alardeada à exaustão” de que o governo “popular” de Lula está muito longe de ser “popular”, pois deixa os bancos ganharem aqui o que não ganham em lugar nenhum? Ora, não me façam rir...
Mas onde está a necessidade de repisar acusação feita tantas vezes? Talvez a resposta comece a aparecer no primeiro editorial da Folha na edição do jornal em tela, que trata de brigar contra fenômeno que o veículo vê ocorrer “Nos EUA, no Brasil ou em qualquer outra sociedade”, conforme se vê na última frase do editorial.
A teoria do texto intitulado “Tempo de pacotes” é a de que “ainda que um período recessivo tenda a corroer com rapidez a popularidade de um governante [nota do editor: Ó esperança, és a última que morre], é inegável que o maior risco, no momento, vai na direção oposta. Trata-se de confundi-lo [o governante] com uma espécie de salvador da pátria [A quem se referirá isto, hein?], cujas resoluções antes se comemoram que analisam.
Esperto, o editorialista não foi direto ao ponto, preferindo comer o mingau pelas beiradas, dizendo que a teoria acima refere-se a Barack Obama, que estaria tendo “senso certeiro da simbologia” com as primeiras medidas que tomou, que calaram montes de bocas que haviam reverberado a idéia alucinada de que ele não assumiria tomando medidas de impacto já de saída, depois de uma campanha calcada no lema “change”.
Note-se, porém, que o editorial conclui dizendo que em vez de uma crise muitas vezes desgastar um governante, converte-o em “salvador da pátria” tanto nos EUA quanto no... Brasil.
Bingo!
Podem me dizer apressado, mas eu já venho desconfiando de que a população brasileira viu no noticiário alarmista sobre a crise que ela não é nossa e que o Brasil, além de ter se preparado para ela como nenhum outro país se preparou, está sendo bem conduzido na tormenta.
Logo em seguida, na mesma página A2, vem Clóvis Rossi criticar os defensores do neoliberalismo, que hoje se calam e não são cobrados, e atribuir ao primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, acerto em prever que o capitalismo desregulamentado era um risco. Sobre o Brasil, não falou quem combateu a desregulamentação. Tudo isso depois que Lula discursou criticando os arautos da globalização.
De certo, a manchete de primeira página já desqualificava Lula como crítico da desregulamentação porque os bancos brasileiros são os que mais ganham, ainda que a regulamentação brasileira não difira de qualquer outra que há no mundo, nem nos regimes bolivarianos, porque desregulamentar o mercado financeiro deixou de ser ponto de vista para se tornar imposição que até aqui desafiar significava a virtual quebra de um país.
Mas não haveria de ficar por aí, a tese tinha que ser vendida por completo, o que coube à indefectível Eliane Cantanhêde, que na imperdível coluna “Múltiplas personalidades” completa o serviço, mas deixa escapar uma enormidade, o que torna sua coluna deste domingo imperdível, devido ao que reproduzo o texto logo abaixo:
*
“ELIANE CANTANHÊDE
Múltiplas personalidades
PARIS - Há dois Lulas, ou muitos Lulas. O deste momento, de crise nos países ricos e de fórum de países pobres, é o Lula de esquerda, que se vira de costas para Davos e de frente para Belém.
Se fosse hora de crescimento mundial, Lula certamente estaria em Davos com os líderes dos países desenvolvidos, enaltecendo a estabilidade e o ajuste fiscal. Como não é, ficou no Brasil mesmo para se encontrar com Chávez, Evo Morales, Rafael Correa e Fernando Lugo.
Ironizou "o deus mercado" e os ricos, mandando o FMI ensinar a Obama como gerir os EUA. E aproveitou para, apesar dos cortes no Orçamento, prometer mais um milhão de habitações e ampliação do Bolsa Família para os jovens. Ou seja: um olho na crise, outro na sua popularidade hoje e na campanha de Dilma Rousseff amanhã.
Esses dois Lulas, que se alternam entre o Fórum Econômico e o Fórum Social, dividem opiniões. Como ficou claro num encontro de jornalistas sobre América Latina na Espanha, semana passada.
Em almoços e jantares, brasileiros criticavam o "oportunismo" e o lado marqueteiro de Lula, sempre tirando vantagem de tudo - inclusive dos êxitos alheios. Nas reuniões plenárias e mesas redondas, espanhóis, argentinos, venezuelanos, equatorianos... elogiavam a liderança política e o sucesso administrativo do Brasil e de Lula.
De onde, afinal, vem a boa fama de Lula no mundo? De onde os jornalistas internacionais tiram tanta simpatia por ele? Principalmente da imprensa brasileira, que, por exemplo, como tinha de ser, registrou todo o seu falatório e toda a sua desenvoltura no Fórum de Belém.
Isso mostra como as notícias sobre Lula e seu governo têm imenso espaço e repercussão, soterrando as críticas. Tudo o que ele diz, faz, promete e anuncia tem destaque. O resto fica confinado aos espaços de análise e de opinião.
Está explicada, portanto, a azia de Lula com a imprensa: ele chora de barriga cheia, muito cheia.”
*
Francamente, pessoal, sempre vi premeditação na má vontade com que a imprensa brasileira trata Lula, mas essa coluna me abalou tal percepção. A jornalista parece não ter percebido a enormidade que disse.
Eliane simplesmente reconheceu um fato citado por dez entre dez críticos da mídia grande nacional: enquanto é enorme a má vontade com Lula nessa imprensa, no resto do mundo e no Brasil ele se tornou um dos líderes políticos mais admirados.
Eliane, no texto em questão, confessa que não entende por que Lula é tão admirado, já que essa entidade guardiã da verdade suprema do universo, formada pelos jornais e tevês do eixo São Paulo - Rio, detesta o presidente.
Se imprensa, governos e cidadãos do mundo todo, e até a maioria esmagadora dos brasileiros, admiram Lula - penso que pelos resultados de seu governo -, será que o problema não está na imprensa tupiniquim?
Aliás, o texto de Eliane é tão bobo, tão ingênuo, que a poucas páginas dali o ombudsman da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, com seu estilo de minimizar as graves e reiteradas práticas anti-jornalísticas da Folha, faz um comentário que se choca com o que diz a colunista.
Eliane afirma, na coluna acima reproduzida, que o noticiário é generoso com Lula e que as críticas que se faz a ele ficam confinadas nos espaços destinados a opinião. O ombudsman da Folha, na mesma edição do jornal, mostra como o noticiário não é sempre tão isento assim.
Vejam como suas críticas demolem a teoria de Eliane Cantanhêde sobre isenção do noticiário:
"Carlos Eduardo Lins da Silva – ombudsman da Folha
No dia 24, o jornal acertou ao usar o adjetivo "suposto" em referência ao célebre grampo contra o presidente do STF. Mas, quando o tema era manchete diária, não foi cauteloso. Não demonstrava dúvida sobre o "grampo ilegal". Esse episódio, em que o jornal embarcou acriticamente em informação sem a ter obtido ou comprovado autonomamente, deveria servir para estabelecer determinação pétrea: nenhuma informação exclusiva revelada por outros pode ser considerada verdadeira sem confirmação própria.
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Na quinta, o jornal deu manchete para a ampliação de R$ 873 milhões em gastos sociais do governo federal. Ressaltou ter ocorrido um dia após cortes no Orçamento de R$ 37 bilhões, que não estiveram na capa de quarta. Se o que envolvia valores maiores não era relevante para a primeira página, por que 3% deles foram manchete? Havia assuntos mais importantes, como os entraves a importações e o pacote econômico de Obama.
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Na terça, pela segunda vez em poucas semanas, título de submanchete da capa passa a impressão de que números de desemprego se referem ao Brasil, embora sejam internacionais.
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Como vocês vêem, se ficarmos lendo só as notícias de que gostamos, lendo só os articulistas com os quais concordamos, e se ignorarmos gente que é capaz de causar comoção social quando quer, não teremos como saber o que eles sabem.
Agora, por exemplo, com esse falatório sobre crises não derrubarem popularidade de governantes porque eles acabam sendo vistos como “salvadores da pátria”, a manchetona de primeira página, toda essa pantomima nos leva aonde?
Quem vocês acham que é esse governante que o editorial diz que há no Brasil e que a crise, em vez de desmoralizar, elevou ao status de “salvador da pátria”? O que significa isso, que eles têm informações de que Lula, em vez de cair na impopularidade, manteve-se popular ou até tornou-se mais popular?
A mim pareceu isso que acabo de dizer. Eles têm o Datafolha, sabem mais do que nós. E vocês, como entenderam? Não importa. Tenho certeza de que a maioria percebeu por que temos que vigiar a mídia. E com lupa.