O degelo progressivo dos pólos pode dar lugar a um desastre sem precedentes que irá gerar um aumento muito maior e mais acelerado do nível das águas. E um tratado “pós-Kyoto”, necessário para evitar a catástrofe, deve demorar a surgir.
Os processos dinâmicos ligados ao degelo – ainda não incluídos nos modelos atuais, mas sugeridos por observações recentes – podem aumentar a vulnerabilidade das calotas ao aquecimento, provocando a elevação do nível dos mares [1].” Essa pequena frase, extraída do quarto relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Evolução do Clima (GIEC), de 2 de fevereiro de 2007, não recebeu a atenção que merecia. Apesar de ter mencionado uma possível elevação dos oceanos, que devem crescer de 18 a 59 centímetros até o final do século, a mídia simplesmente não questionou a fundo as razões deste fenômeno. Tampouco o fez a sociedade.
Mas a pior notícia talvez ainda esteja por vir: de acordo com diversos climatologistas, o degelo progressivo pode ceder lugar a um desastre de grandes proporções, gerando um aumento muito maior e mais acelerado do nível das águas. Este cenário inquietante aprofundou o abismo existente entre a necessidade urgente de “salvar” o clima e as negociações em busca de um novo tratado “pós-Kyoto” – que será inicialmente discutido na Conferência das Nações Unidas, em dezembro, e continuará em pauta até o final de 2009, quando ocorre um novo encontro na Dinamarca. A vida de dezenas de milhões de seres humanos está em jogo, principalmente nos países do Sul.
Durante o verão, é possível observar nas regiões polares a formação de vastos reservatórios de água livre, que cavam “falhas” no gelo da superfície das calotas [2]. Na Groenlândia, um “lago” desse tipo, com cerca de 3 quilômetros de extensão, esvaziou-se em 90 minutos, como se fosse uma pia com o ralo destampado. Penetrando dessa forma até a base rochosa das geleiras, a água pode contribuir para a separação de gigantescas massas de gelo que, deslizando para o mar, provocariam uma elevação brusca das águas. É o pesadelo dos glaciólogos.
A desintegração das calotas não é linear. Além do mais, a escala de tempo muda completamente
Esses “processos dinâmicos” são observados há vários anos nas regiões árticas, onde a calota groenlandesa contém água suficiente para fazer com que os oceanos se elevem em até 6 metros. Mas a Antártida também tornou-se motivo de preocupação. Seu complexo glacial é formado por quatro elementos: a calota oriental, a calota ocidental, as geleiras da península e os planaltos de gelo que flutuam no oceano. Se a calota oriental desaparecesse, o nível dos oceanos seria elevado em 50 metros [3]! Felizmente, por enquanto ela continua estável. Mas, em contrapartida, o degelo é rápido na costa oeste da península, onde a elevação da temperatura não tem equivalente em qualquer outro ponto do planeta: foram 3°C a mais em 50 anos. A Nordeste, onde o termômetro indica 2.2°C em média para o verão, calcula-se que o aquecimento pode chegar a 0.5°C por década daqui para frente. Nessas circunstâncias, o provável derretimento dos gelos da península e da calota ocidental equivaleria, cada qual, a 5 metros de elevação no nível dos mares. Dois aspectos específicos tornam o perigo ainda maior. O primeiro é que os vales montanhosos da península antártica são menos estreitos e sinuosos que os da Groenlândia, de modo que as geleiras poderiam deslizar mais rapidamente em direção ao mar [4] – realmente, a velocidade do degelo triplicou nos últimos anos. O segundo é o fato de o maciço rochoso que sustenta a calota ocidental estar bem abaixo do nível do mar e, em muitos lugares, descer inclinado em direção à água [5]. Nesse caso, os especialistas estão preocupados com a circulação oceânica circumpolar, cada vez mais quente, que tende a se aproximar das costas e deve provocar o descongelamento da base submarina da calota.
A glaciação da Antártida se deu há cerca de 35 milhões de anos. Trata-se de um fenômeno que ocorre quando determinado patamar climático é ultrapassado
Para James Hansen, diretor do Goddard Institute for Space Studies da National Aeronautics and Space Administration (NASA), e outros oito especialistas que assinam com ele um artigo na revista Science, o perigo está mais perto do que se imagina [6]. Eles chegaram a essa conclusão analisando os paleoclimas: há 65 milhões de anos, a Terra quase não tinha gelo. A glaciação da Antártica ocorreu cerca de 35 milhões de anos atrás. De acordo com esses pesquisadores, trata-se de um fenômeno que acontece quando um patamar é ultrapassado: assim, os parâmetros relativos à radiação solar, ao albedo [7] e à concentração atmosférica do gás de efeito estufa favorecem o resfriamento. A conseqüência é uma diminuição do nível dos oceanos e as precipitações nos pólos se acumulam sob forma de neve.
Esse alerta deve ser levado muito a sério. De fato, as estimativas de elevação do nível dos oceanos são as projeções menosexatas do GIEC: de 1990 a 2006, o aumento foi de 3,3 mm/ano, enquanto se esperava 2 mm/ano [8]. A diferença – 60% – poderia resultar da difícil previsibilidade do comportamento das geleiras.
Caso o aumento da temperatura se estabilize em 2°C em relação a 1780, fim da época pré-industrial, os modelos projetam um elevação das águas entre 0,4 m e 1,4 metro ao longo de vários séculos. Entretanto, se considerarmos o diferencial de 60%, ele seria suficiente para fazer o nível variar entre 0,6 e 2,2 metros – estimativas provavelmente modestas, pois a desintegração das calotas não é linear. Além do mais, a escala de tempo muda completamente: se Hansen e seus colegas estiverem certos, não há sequer um minuto a perder para evitar uma possível catástrofe irreversível daqui a algumas décadas.
A preocupação dos cientistas aumenta, mas os governantes multiplicam a retórica, fundamentando os objetivos nas projeções mais conservadoras. Já o G8 busca “mecanismos flexíveis” para que o esforço dos países do Norte seja espontâneo e sem grandes impactos
Um aumento de um metro no nível dos oceanos colocaria em perigo centenas de milhares de pessoas, principalmente nos países do Sul. Cerca de 10 milhões de egípcios, 30 milhões de bengalis e um quarto dos habitantes do Vietnã perderam suas casas [9].
Londres e Nova York estarão igualmente ameaçadas. Evocando uma “situação assustadora”, o presidente do GIEC, Rajendra Pachauri, declarou recentemente estar esperançoso “de que o próximo relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Evolução do Clima possa fornecer mais informações sobre o provável degelo dessas duas grandes regiões – a Groenlândia e a Antártida Ocidental” [10]. Infelizmente, esse novo relatório só será publicado em 2013 e será muito tarde para influenciar as conferências internacionais de dezembro de 2008 e 2009, onde se discutirão os dispositivos pós-Kyoto.
Por enquanto, prevalece a subestimação do aumento das águas uma vez que as projeções atuais do GIEC, endossadas pelos principais governos, serviram de base para as decisões tomadas na Conferência sobre o Clima, realizada em Bali em dezembro de 2007, e que atualmente estão em vigor. Ainda segundo o GIEC, limitar o aumento da temperatura entre 2° e 2,4°C em relação à era pré-industrial implicaria em começar a diminuir as emissões de gás de efeito estufa no mais tardar em 2015, para reduzi-las até 2050 em 50 a 85% se comparadas ao nível de 2000. Nesse caso, o respeito ao princípio poluidor-pagador requereria um esforço específico importante por parte dos países desenvolvidos: as emissões deveriam diminuir entre 80 e 95% até 2050, passando por uma redução intermediária de 25 a 40% em 2020. Nesse período, ainda de acordo com o GIEC, os países em desenvolvimento também deverão se afastar substancialmente de seus cenários atuais e diminuir a poluição.
Menos restritivas que as recomendações de Hansen e sua equipe, esses apontamentos são, da mesma forma, desprezados pelas instâncias políticas. Jean-Pascal van Ypersele, professor de climatologia na Universidade Católica de Louvain e membro do gabinete do GIEC, observa que os membros do G8 regularmente pronunciam-se a favor de uma redução de 50% das emissões, mas evitam a todo custo mencionar os 85% que deveriam corresponder à sua parte da fatia global [11]. O G8 também não discute a responsabilidade que têm na mudança climática.
Infelizmente, é uma tendência seguida por todos os países. O pacote “energia-clima”, proposto pela Comissão Européia para o período 2013-2020, por exemplo, revela-se incompatível com a decisão, tomada em 1996, de limitar o aumento da temperatura a no máximo 2°C com relação a 1780. Já Barack Obama, o novo governante de uma das nações que mais polui o mundo, prevê, em seu plano energético, uma redução de 80% das emissões americanas em 2050, mas seu objetivo para 2020 consiste somente em voltar ao nível de 1990 [12], muito aquém do necessário.
Em resumo, enquanto a preocupação dos cientistas aumenta, os governantes multiplicam efeitos de retórica, mas fundamentam seus objetivos nas projeções mais conservadoras. Ao mesmo tempo, o G8 busca “mecanismos flexíveis” para que o esforço dos países do Norte seja feito quase de maneira “espontânea”, sem grandes impactos. A lógica dessa escolha foi explicitada pelo antigo economista-chefe do Banco Mundial, Nicholas Stern. Em seu relatório ao governo britânico, em outubro de 2006, ele recomendava “evitar fazer mudanças demais e de maneira muito rápida”, pois “há uma grande incerteza quanto aos custos de redução de 60% ou 80% na indústria, principalmente na aviação e num certo número de setores” [13]. O perigo presente aí é que a negociação climática pode acabar resultando numa meta determinada por preocupações baseadas no lucro, e não na proteção das populações e na salvaguarda do clima.
Desequilíbrio perigoso
Chegou a hora de fazer revisões dramáticas. Até agora, considerava-se que a concentração atmosférica limite em gás de efeito estufa oscilava entre 450 e 500 partes por milhão (ppm) de equivalente CO2 (CO2 eq), dos quais 360 a 400 ppm de CO2 [14] – um valor quase duas vezes superior ao período que antecedeu a Revolução Industrial. Mas o estudo da formação das calotas levou James Hansen, diretor do Goddard Institute for Space Studies da National Aeronautics and Space Administration (NASA), e seus colegas a afirmar que uma estabilização nesse nível nos levaria inevitavelmente a um mundo sem gelo [15] em longo prazo.
Quando a calota antártica se formou, a concentração atmosférica em gás carbônico situava-se entre 350 e 500 ppm. Atualmente, estamos em 385 ppm de CO2. Em situação de equilíbrio, isso corresponde a um aumento do nível dos oceanos “de pelo menos vários metros” e a história da Terra comprova que esse aumento pode ocorrer em menos de um século.
Entretanto, ainda temos tempo, explica Hansen: o aquecimento dos mares e o degelo são retroações lentas, diferidas. Por enquanto, os oceanos e as calotas absorvem a diferença crescente entre a temperatura média observada e a temperatura teórica de equilíbrio. Assim, a inércia térmica da água e do gelo desempenha o papel do fio que segurava a espada sobre a cabeça de Dâmocles... Ninguém pode dizer quando o fio vai se romper, mas sem dúvida alguma ele cederá, caso continuemos a acrescentar anualmente 2 ppm de gás carbônico no ar.
O cientista da NASA e seus colegas acreditam ser possível voltar rapidamente a um nível abaixo de 350 – e até mesmo 325 ppm de CO2 – fechando todas as centrais de carvão até 2030. Será possível?
[1] “The Physical Science Basis”, contribuição do Grupo de Trabalho1 (GT1) ao quarto relatório de avaliação do GIEC (2007), resumido pelos organizadores.
[2] Escavação onde um curso de água desaparece para se tornar subterrâneo.
[3] Relatório do GT1, GIEC, 2007, capítulo I, página 18.
[4] “Escalating Ice Loss Found in Antarctica”, Washington Post, Washington, 14 janeiro de 2008.
[5] “New Concerns on the Stability of the West Atlantic Ice Sheet”, Environment Times, United Nations Environment Programme (UNEP), 2004.Mais informações.
[6] Ler “Target Atmospheric CO2: Where Should Humanity Aim?”.
[7] O albedo do sistema Terra-Atmosfera é a fração da energia solar refletida para o espaço. Seu valor está entre 0 e 1. Quanto mais refletora for uma superfície, mais elevado é seu albedo.
[8] Artigo da Science, citado no Le Monde de 2 de fevereiro de 2007.
[9] Norman Myers, “Environmental Refugees in a Globally Warmed World”, BioScience, v. 43 (11), Washington DC, dezembro de 1993.
[10] “UN Climate Chief to Visit Antarctica”, ABC News, 8 de janeiro de 2008.
[11] Ver www.climate.be/vanyp
[12] “Barack Obama’s Plan to Make America a Global Energy Leader”
[13] Nicholas Stern, “Stern Review on The Economics of Climate Change” – relatório redigido por solicitação de Gordon Brown, à época, Ministro das Finanças –, 2006.
[14] O dióxido de carbono (CO2) é o principal gás de efeito estufa de origem antrópica. Sua concentração é expressa em partes por milhão (ppm CO2). Com o objetivo de facilitação, exprimem-se as concentrações dos outros gases de efeito estufa em partes por milhão de equivalentes CO2 (ppm CO2 eq). Não se deve confundir as duas noções.
[15] “Target Atmospheric CO2: Where Should Humanity Aim?”.