O Brasil de Fato
publica a terceira reportagem da série produzida pela Escola
Politécnica de Sáude Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz sobre os recuos
do governo federal em pontos chave do 3º Plano Nacional de Direitos
Humanos. Confira a seguir, matéria sobre a democratização da mídia
Raquel
Júnia
do
Rio de Janeiro (RJ)
Todos os dias nos
jornais, rádios e canais de TV é possível coletar exemplos de
desrespeito aos direitos humanos. A primeira versão do 3º Plano
Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), lançada em dezembro de 2009
pelo governo federal, tentou criar ou fortalecer mecanismos já
existentes para coibir este tipo de postura. Foi o caso da proposta
de criação de um ranking nacional de veículos de comunicação
comprometidos com os princípios dos direitos humanos. Da mesma
forma, os veículos que cometem violações também estariam
elencados. A proposta não era inovadora, já que atualmente a
campanha pela ética na TV elabora uma relação dos veículos que
atentam contra a dignidade humana. Mas o PNDH 3 a reforçava e
sugeria a criação, pelos estados e municípios, de um observatório
social destinado a acompanhar a cobertura da mídia em direitos
humanos. Entretanto, o decreto 7.177 , de 12 de maio de 2010, retirou
do plano a proposta do ranking, além de introduzir outras
modificações.
Convidado para a aula
inaugural do ano letivo da EPSJV/Fiocruz em 2010, o ministro da
Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, comentou a
oposição da mídia comercial ao PNDH 3 e afirmou que, de fato, há
programas que fazem campanha contra os direitos humanos. Nesta
terceira reportagem da série sobre as modificações no 3 PNDH,
conheça o que pretendia a versão original do programa no campo da
comunicação, as reflexões sobre as modificações feitas pelo
decreto presidencial e a concentração midiática no Brasil.
A
diretriz 22
A diretriz 22 do PNDH 3
– "Garantia do direito à comunicação democrática e ao
acesso à informação para a consolidação de uma cultura em
direitos humanos" – reúne dez ações programáticas. Na
proposta original, a primeira ação programática fala sobre a
criação de um marco legal para regulamentar o artigo 221 da
Constituição, de maneira a estabelecer o respeito aos direitos
humanos nos serviços de radiodifusão concedidos, permitidos ou
autorizados. A ação sugere ainda sanções de acordo com a
gravidade das violações praticadas, variando de multa até a
cassação da concessão. Esta ação também foi modificada pelo
decreto presidencial 7.177. A parte final do texto, que falava sobre
as punições no caso de desrespeito, foi suprimida.
Na opinião do Coletivo
Brasil de Comunicação Social (Intervozes), o PNDH 3 deveria ser
implementado integralmente, assim como pensam também várias
entidades e movimentos reunidos na Campanha pela integralidade do
PNDH 3. Oona Castro, membro do Intervozes, avalia que a mídia teve
papel importante na pressão para que o governo federal recuasse e
fizesse as modificações no programa. "A mídia não só
defendeu seus próprios interesses, recusando e desqualificando tudo
que pudesse ser de regulamentação de sua atividade, como também
ecoou a voz dos setores conservadores, mesmo em questões que não
eram diretamente relacionadas a ela, como a questão da terra e do
aborto, por exemplo", analisa.
Para a jornalista, os
cortes feitos no texto original comprometem em parte uma
regulamentação da mídia, como foi proposto também pela
Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de
2009. "Ao vetar o ranking, o que eles fazem é não dar
legitimidade para o que já é feito. E isso não pode ser entendido
como censura porque o ranking é a posteriori, é uma participação
social no processo de avaliação do conteúdo veiculado na mídia.
Chamar isso de censura ou atentado à liberdade de expressão é um
disparate. Toda vez que eles levantam essa lebre de ameaça à
liberdade de expressão, estão defendendo que eles tenham liberdade
para fazer tudo o quiserem e que ninguém possa fazer nenhuma
avaliação participativa e crítica daquilo que é feito",
analisa.
A “Campanha pela
ética na TV – Quem financia a baixaria é contra a cidadania”
publicou este ano seu 17° ranking. De agosto de 2009 a abril de
2010, foram feitas 391 denúncias. O programa campeão foi o Big
Brother, da TV Globo, com 227 denúncias. Em seguida estão os
programas Pegadinhas Picantes, do SBT, Pânico na TV, da Rede TV, Se
liga bocão, da TV Itapoá-Record, e Bronca Pesada, da TV Jornal-SBT.
Na lista de denúncias com relação a estes programas estão o
desrespeito à dignidade humana, exposição de pessoas ao ridículo,
incitação à violência, apelo sexual, sensacionalismo, entre
outros. A realização da Campanha e do ranking da baixaria é uma
iniciativa da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados em parceria com entidades da sociedade civil. O movimento
foi um dos resultados da VII Conferência Nacional de Direitos
Humanos, realizada em 2002.
Queda
de braço
Para o jornalista e
professor do departamento de Estudos Culturais e Mídia da
Universidade Federal Fluminense (UFF), Dênis de Moraes, a diretriz
22 do PNDH 3, como foi redigida originalmente, contribuiria para a
democratização dos meios de comunicação. Dênis afirma,
entretanto, que o retrocesso na questão da mídia dentro do plano
não o surpreendeu.
O professor elogia a
postura do ministro Vannuchi, que considera coerente. Para Dênis, o
ministro perdeu "a queda de braço" dentro do governo. O
jornalista lembra ainda que nenhuma das resoluções da Conferência
Nacional de Comunicação foram implementadas até o momento. "O
retrocesso no Plano integra uma cadeia de inércia e de temores em
relação à grande mídia por parte do governo federal. Durante as
duas gestões, o governo não quis medir forças com os meios de
comunicação, que nestes oito anos tiveram poucos dos seus
interesses afetados", afirma. Para ele, o PNDH 3, nos pontos que
se referem aos veículos de comunicação, resultou numa "carta
de intenções extremamente moderada e inofensiva".
O editor da revista
Caros Amigos e professor de jornalismo da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP), Hamilton Octávio de Souza, observa
que foi impressionante a reação dos setores da mídia empresarial
ao plano. "Foi uma reação totalmente arbitrária, conservadora
e reacionária. Numa sociedade verdadeiramente democrática, isso tem
que estar não só num programa que serve de referência, mas
contemplado na lei e, mais do que isso, tem que ser algo exigido por
toda a sociedade e fiscalizado pelo Estado. Ora, nós temos programas
de rádio e TV que incentivam o linchamento das pessoas, estimulam a
violência, discriminam setores da sociedade, transformam os
movimentos sociais e as populações pobres das favelas em criminosos
e inimigos do povo brasileiro", enumera.
Dênis de Moraes lembra
duas outras propostas do governo federal durante os dois mandatos do
presidente Lula que foram abandonadas devido ao receio em relação a
tensões com a mídia comercial: a criação da Agência Nacional do
Cinema e do Audiovisual (Ancinav) e de um Conselho Federal de
Jornalismo. "A alegação é de que estes dois projetos eram
inconsistentes e que havia problemas. Mas se havia problema, por que
não discutir, modificar e aprimorar?", questiona.
Controle
público
Oona Castro destaca que
hoje são poucos os mecanismos que a população tem para realizar o
controle público do que é veiculado nos meios de comunicação. "Os
processos de conferência, se continuados, precisam ampliar a
participação e os conselhos municipais, estaduais e nacional devem
ser implementados. Os canais de participação realmente não
existem, apenas pequenas e poucas iniciativas isoladas", afirma.
Em 2005, um episódio
mostrou que a sociedade civil organizada pode conseguir resultados
importantes na luta pelo respeito aos direitos humanos nos meios de
comunicação. Por pressão de movimentos sociais, o Ministério
Público Federal tirou do ar por dois meses o programa Tarde Quente,
da Rede TV, apresentado por João Kleber, por entender que atentava
contra os direitos humanos. No mesmo horário foram exibidos
programas de direitos de resposta das minorias ofendidas durante o
Tarde Quente. Como recorda Hamilton de Souza, a programação
substitutiva tinha um conteúdo muito melhor e comprometido com os
direitos humanos."O Ministério Público tem condições em todo
o Brasil de fiscalizar, exigir que as televisões caminhem na direção
do respeito aos direitos humanos e possam contribuir para elevar o
nível de compreensão da própria realidade da sociedade
brasileira", opina Hamilton.
O jornalista conta
outro episódio que revela a postura da mídia comercial quando o
assunto é controle público. Em 2007, o Ministério Público de São
Paulo tentou realizar um encontro entre lideranças de movimentos e
entidades de defesa dos direitos das mulheres e dirigentes de
empresas de comunicação para discutir o papel da mulher na
televisão brasileira. "Esse encontro era para trocar ideias,
para promover esclarecimento do que pensam e que críticas os
movimentos de mulheres têm com relação à programação da
televisão. Os representantes das várias emissoras se negaram a
participar do encontro, dizendo que a TV deles não aceita nenhum
tipo de intromissão e interferência do que colocam no ar. Isso
mostra que eles consideram as concessões não como serviço público
que tem que dar satisfação para a sociedade, mas como se fosse uma
propriedade privada", lamenta.
Brasil
atrasado
"O Brasil está na
vanguarda do atraso em termos de comunicação, apresenta um dos
piores resultados em termos de medidas que possam modificar o cenário
de forte concentração dos meios de comunicação", alerta
Dênis de Moraes. O jornalista lançou em 2009 o livro A Batalha da
Mídia, sobre iniciativas de comunicação dos governos considerados
progressistas na América Latina. Para ele, o Brasil está atrasado
em relação a políticas públicas de comunicação tanto de
regulação do setor, quanto de criação de mecanismos de
democratização, como o apoio e criação de mídias públicas e
comunitárias e produção audiovisual.
Dênis assegura que a
Venezuela, a Bolívia e o Equador estão dando um exemplo mundial de
como o poder público eleito pelo povo pode interferir nos meios de
comunicação. "Apesar de enfrentarem uma das mais sórdidas
campanhas midiáticas e das elites conservadoras, estes países têm
mantido o compromisso essencial com a busca de sistemas de
comunicação menos concentrados e em defesa da diversidade
informativa e cultural", analisa.
Para Hamilton de Souza,
a reação da mídia ao 3º PNDH também é uma lição para as
pessoas que querem democratizar a comunicação no Brasil. "Mostra
que nós temos uma luta muito grande neste país até que consigamos
ter um sistema de comunicação que realmente seja respeitador dos
direitos humanos, democrático, que contemple a liberdade de
expressão para todos os setores da sociedade e não apenas os
empresariais", destaca. (Escola Politécnica de Sáude
Joaquim Venâncio – EPSJV/Fiocruz)