A capa do JÁ com a denúncia que Rigotto quer esconder
O
Conversa Afiada publica entrevista exclusiva com Elmar Bones, do jornal JÁ, de Porto Alegre: “ELES QUEREM FECHAR O JORNAL, NÃO VÃO CONSEGUIR”.
Elmar é o jornalista que Germano Rigotto persegue há dez anos.
O destaque para a tentativa de censurar o JÁ
É a primeira vez que Elmar Bones tem a chance de contar sua epopéia
de resistência por ousar mostrar a verdade sobre a maior fraude da
história gaúcha.
O irmão de Germano Rigotto, candidato a senador
pelo PMDB, é a peça central da fraude que lesou o povo gaúcho em quase
800 milhões.
Rigotto quer fechar o jornal e levar Elmar à penúria.
Leia a entrevista completa:
CONVERSA AFIADA
- O processo da família do ex-governador Germano Rigotto contra o seu
jornal, o JÁ, completa dez anos, um dos mais longos da Justiça
brasileira. Afinal, qual foi o crime do JÁ?
ELMAR BONES DA COSTA – O jornal teve a ousadia de
contar, em 2001, os detalhes da maior fraude contra os cofres públicos
do Rio Grande do Sul. Em valores atualizados pela Justiça, representa
algo em torno de R$ 800 milhões. O principal personagem da fraude,
segundo a investigação do Ministério Público e o relatório final da CPI
criada na Assembléia gaúcha, era Lindomar Vargas Rigotto, irmão de
Germano, atual candidato do PMDB ao Senado.
CA – Onde era a fraude?
ELMAR – Na Companhia Estadual de Energia Elétrica, a
CEEE, a estatal de energia elétrica que nasceu nos idos de 1960, depois
da encampação da americana A&TT pelo governador Leonel Brizola. Ela
nem existe mais: foi privatizada no Governo Britto e fatiada em trës
empresas menores. O povo gaúcho continua pagando R$ 600 milhões anuais
ano de dívidas trabalhistas pela banda podre da finada CEEE…
CA – E como foi o golpe na CEEE?
ELMAR – A fraude se deu em dois contratos para
construção de onze subestações de transmissão de energia, obra estimada
em 150 milhões de dólares, assinados no governo Pedro Simon (PMDB), em
1987. Foi a secretária de Minas e Energia do governo seguinte, o de
Alceu Collares (PDT), quem mandou fazer a primeira investigação. Uma
senhora chamada Dilma Rousseff.
CA – A Dilma? E o que ela disse?
ELMAR
- Um assessor me contou que, depois de ver os primeiros documentos da
sindicância interna da CEEE, ela comentou : “Eu nunca tinha visto nada
igual”. Ela só não tocou em frente o processo porque o governo do
Collares precisava dos votos do PMDB de Rigotto na Assembléia. Mas ela
guardou na gaveta e, em dezembro de 1994, antes de deixar a secretaria, a
Dilma teve o cuidado de mandar toda a papelada do inquérito para a
Contadoria e Auditoria Geral do Estado (CAGE) e para o Ministério
Público. Dali nasceu a CPI.
CA – E daí?
ELMAR – A CPI durou um ano e meio, produziu 350
quilos de papel. Foi a primeira comissão parlamentar do país a apontar
os corruptos e também os corruptores. Foram indiciados 23 funcionários e
11 empresas que integravam os dois consórcios vencedores da licitação.
Jornalistas
Kenny Braga e Elmar Bones, que tiveram suas contas pessoais bloqueadas
pela família de Germano Rigotto. Foto: Daniel de Andrade Simões
CA – E como o irmão do Rigotto se intrometeu nesta história?
ELMAR – No governo Simon, Germano Rigotto era o
líder do PMDB na Assembléia. Sua atuação na campanha foi decisiva para a
vitória de Simon. Ele encaixou o irmão Lindomar num cargo que nem
existia na CEEE, o de “assistente da diretoria financeira”. Quem contou
isso na CPI foi próprio secretário de energia do Simon, Alcides
Saldanha, que antecedeu Dilma. Foi neste posto, criado sob medida, que
Lindomar Rigotto armou o esquema das licitações fraudadas.
CA – Esta denúncia virou processo na Justiça? Está andando?
ELMAR - O processo vai completar 15 anos em
fevereiro, já tem 110 volumes e ainda não saiu da primeira instância. E o
pior: a maior fraude da história gaúcha corre em segredo de justiça. E
ninguém sabe porque. Quem tem medo que isso venha a público? O que o
povo do Rio Grande não pode saber sobre a fraude da CEEE?
CA – O processo está parado?
ELMAR – Falei esta semana com a Promotoria de Defesa
do Patrimônio Público. A boa notícia é que o processo está concluso ao
juiz. Isso quer dizer que não cabe mais nenhum recurso, nada. O juiz
vai receber a última manifestação das partes, num prazo de 10 dias, e
depois vai dar a sentença. Se sair antes das eleições de outubro, deve
produzir um grande estrago político. Por isso mesmo, não acredito em
tanta agilidade. Para alívio de alguns candidatos, a sentença da Justiça
deve sair só no fim do ano, bem depois da manifestação dos eleitores
nas urnas. Mas, pelo menos saberemos quem é quem nesta história ainda
secreta.
A corrupção na CEEE
CA – Bem, imagino que isso rendeu muita manchete na imprensa, na época…
ELMAR – Rendeu, mas com aquela cobertura em mosaico,
meio truncada, aos saltos, com espaço fragmentado no noticiário…
Depois, o assunto foi sumindo, desaparecendo, e o leitor fica se
perguntando: o que foi mesmo que aconteceu?
CA – E aí aparece o JÁ para refrescar a memória dos gaúchos…
ELMAR – Publicamos uma reportagem destacando aquilo
que a imprensa havia negligenciado e que era talvez o mais importante: o
indiciamento dos corruptores, onze empresas, todas logomarcas
reluzentes e grandes anunciantes. Talvez por isso o assunto na Justiça,
apesar de ser uma “ação civil pública”, acabou encoberto pelo ”segredo
de Justiça”. Estava quase esquecido quando o principal personagem da
fraude, Lindomar Rigotto, voltou às manchetes, agora nas páginas
policiais.
CA – Pela fraude na CEEE?
ELMAR – Não, agora foi pela morte de uma garota de
programa, de 24 anos, que caiu nua do 14º andar de um prédio a 100
metros da Praça da Matriz, onde ficam as sedes do poder no Estado – o
Palácio Piratini, o Tribunal de Justiça, a Assembléia Legislativa e a
Cúria Metropolitana. A história, de setembro de 1998, nunca foi
esclarecida, mas o que importa é que o dono do apartamento de onde a
moça caiu era Lindomar Rigotto, o principal implicado na fraude da CEEE e
que estava lá no momento da queda. Foi indiciado por homicídio culposo e
omissão de socorro no inquérito que apurou a morte da moça. Lindomar só
não foi a júri porque, em fevereiro, foi assassinado num assalto numa
praia gaúcha.
Na
foto, tirada no Presídio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre,
aparecem (da esquerda para a direita), Rafael Guimarães, hoje
free-lancer e escritor, Elmar Bones, Rosvita Saueressig (hoje
editora-executiva do Valor Econômico, em São Paulo) e Osmar Trindade,
fundador e editor do CooJornal, falecido em julho de 2009. Foto: Daniel
de Andrade Simões
CA – O que ele fazia lá?
ELMAR – Após a sindicância da CAGE, que comprovou
mesmo o desvio, ele e outros sete funcionários graduados envolvidos
foram demitidos. Fora da CEEE, Lindomar e outro irmão, Julios, formaram
uma rede de boates, o Ibiza Club, que chegou a ter quatro casas no
litoral do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Ele estava na Ibiza de
Atlântida, no início da manhã de quarta-feira de cinzas de 1999, quando
os assaltantes chegaram. Lindomar e o gerente estavam fechando o balanço
da noite. Lindomar saiu em perseguição aos bandidos, e acabou morrendo
com um tiro no olho. A polícia informou que os ladrões levaram uns R$
30 mil, mas o dinheiro nunca foi recuperado, embora todos os envolvidos
no assalto tenham sido presos pouco depois.
CA – E a imprensa, com isso, ressuscita o envolvimento de Lindomar com a CEEE?
ELMAR – Aí é que entra a ironia da história. Dois
dias depois do assassinato, que obviamente rendeu grandes manchetes, o
colunista mais importante da Zero Hora, Paulo Sant’Anna, escreveu uma
crônica pungente sobre Lindomar Rigotto, que ele define como ”um homem
que teve sua vida anatematizada pela tragédia”. Menciona a sucessão de
infortúnios que culminaram com o assassinato, solidariza-se com a dor
dos familiares e dá o assunto por encerrado.
CA – Como assim, “encerrado”?
ELMAR – O colunista dá a entender que aquele homem
marcado pela tragédia pagou com a própria vida os possíveis desatinos e
que, daí em diante, mexer com sua morte era apenas mexer com a dor dos
seus familiares. Na verdade, impedir que esse assunto caia no
esquecimento é de certa forma uma defesa de Lindomar. Afinal, ele pode
ter sido o operador, mas não fez nada sozinho. E os corruptores que
foram apontados?
CA – E foi encerrado o papo?
ELMAR – O Paulo Sant’Anna é o cronista mais
influente do Estado e, se ele diz que um assunto está encerrado, ninguém
mais duvida – principalmente nas redações da RBS, que é o maior grupo
de comunicação do Sul do país, com oito jornais diários, 32 emissoras de
rádio e 10 de TV no Rio Grande e Santa Catarina. Aí eu percebi que
tinha um baita assunto na mão e podia trabalhar com calma, porque
ninguém ia mexer com isso.
CA – A reportagem do JÁ saiu quando?
ELMAR – Em 2001, mais de um ano depois da morte de
Lindomar. A reportagem foi feita com grande dificuldade. Não tínhamos
grana pra nada. A praia fica próxima de Porto Alegre, cerca de 120 km de
distância em linha reta. E lembro que fomos ao litoral ver o processo,
eu e um repórter, o tempo inteiro de olho na luzinha da gasolina. Nesse
meio tempo, a circulação do jornal estava suspensa, a matéria ficou pela
metade, numa gaveta. O jornal só voltou a circular no início de 2001 e
aí retomamos a reportagem. Quatro repórteres trabalharam nela.
Publicamos na edição de maio. Em agosto recebi a citação do juiz.
CA – Quem processou vocês?
ELMAR – A autora visível da ação é a senhora Julieta
Vargas Rigotto, mãe de Lindomar e do ex-governador Germano Rigotto,
hoje candidato a Senador pelo PMDB.
CA – O Rigotto é inocente nesta causa? Ele não sabe de nada? Jura?
ELMAR – Saber, o Rigotto sabe, é claro, desde o
início da ação na justiça. Quando estávamos finalizando a matéria, o
repórter Olides Canton ligou para ele em Brasilia, quando ainda era
deputado federal. Ele reagiu asperamente: “Eu não trato desse assunto”. E
advertiu que sua mãe iria nos processar, que já havia acionado outros
veículos.
CA – E o que a mãe do inocente Rigotto alegava?
ELMAR – Eles ajuizaram duas ações. Uma queixa-crime
por calúnia e difamação contra o autor da matéria, no caso eu, que
assinava – com outros quatro repórteres – como responsável pelo texto
final. A outra, uma ação cível, por dano moral, contra a editora do
jornal.
O JÁ dá mais detalhes da corrupção que Rigotto quer esconder
CA – E aí?
ELMAR – No inicio ganhamos as duas. A ação cível
teve decisão até antes, porque o nosso advogado nem discutiu o mérito.
Ele alegou decadência de prazo, porque entrara mais de noventa dias
depois da publicação. Estava em vigor a extinta Lei de Imprensa, que
estipulava esse prazo para ações de dano moral. A outra teve um parecer
do Ministério Público, uma decisão em primeira instância e uma sentença
em tribunal, tudo no mesmo tom: a reportagem ateve-se aos fatos, não
teve a intenção de ofender ninguém e atendia ao interesse público. Ou
seja, cumpria todos os requisitos clássicos de uma boa e correta
reportagem.
CA – E o que aconteceu, então?
ELMAR – A sentença do juiz de primeira instância,
mandando arquivar o processo civel por decadência de prazo, saiu em
agosto de 2002, em plena campanha eleitoral na qual Germano Rigotto era o
candidato do PMDB a governador. Em outubro, ele se elegeu
consagradoramente. Em dezembro, um mês antes da posse de Rigotto, o
Tribunal de Justiça do Estado acolheu inesperadamente um recurso e
derrubou a decadência do prazo, sem levar em consideração a sentença do
mesmo tribunal no outro processo. Julgou o mérito e acabou condenando a
editora a pagar uma indenização de R$ 17 mil reais por danos morais.
Resumindo o absurdo da questão: o mesmo tribunal que nos absolveu antes
acaba por nos condenar depois. Assim, temos uma única reportagem e duas
sentenças absolutamente contraditórias. Culpado e inocente, ao mesmo
tempo, pela mesma matéria.
CA – E vocês não recorreram ao STF?
ELMAR – Recorremos, claro. Acontece que fomos
condenados à revelia. Houve uma audiência para a qual não recebi
intimação, nem eu nem minhas quatro testemunhas… E aí fomos condenados à
revelia. O STF não acolheu o nosso recurso. No nosso site
www.jornal.ja.com.br está a integra da sentença e outros detalhes desta
história. É uma didática leitura que vale a pena, para entender como a
liberdade de expressão neste país pode ser atingida pela própria
Justiça, que deveria protegê-la como ninguém.
CA – Bem, mas, com a Justiça brasileira, a condenação deve ter demorado, não?
ELMAR – Que nada, foi rápida. O tribunal reabriu o
processo em dezembro de 2002 e, em agosto do ano seguinte, o jornal já
estava condenado. Pouco depois fomos notificados para apontar bens à
penhora. Oferecemos nosso estoque de livros, uns 15 mil volumes de 35
títulos diferentes editados pela JÁ. A oferta foi recusada pela Justiça.
E assim vem…
CA – Até que, agora, bloquearam tua conta pessoal no banco…
ELMAR – Pois é, fiz um empréstimo consignado de R$
10 mil para pagar as contas mais urgentes, tinha um restinho de mil e
poucos reais lá. Pois o juiz mandou sequestrar para pagar os advogados
da dona Julieta. E, pelo que me diz o advogado, atropelando
procedimentos processuais. É incrível: perseguido há dez anos, ainda
tenho que pagar os honorários dos advogados que me processam.
CA – Que outros prejuízos você está sofrendo?
ELMAR – Os efeitos políticos de um processo desses
sobre a editora e o jornal são devastadores. O jornal sofre uma
condenação dessas, absurda, mas não sai uma linha em lugar nenhum,
ninguém sabe direito o que aconteceu… O que fica no ar, de forma
leviana, para todo mundo que não entende bem este caso, é que ”um
jornaleco irresponsável foi condenado porque ofendeu a honra e a imagem
da família do governador”. E fica por isso mesmo.
CA – O jornal teve perdas com isso?
ELMAR – O governo estadual é o maior anunciante no
Rio Grande, somando-se as verbas do Executivo e das estatais. Suas
contas são atendidas pelas maiores agências da praça. Se você está
vetado aí, qual é a consequência imediata? Ninguém quer se incomodar
com o maior cliente da publicidade no Estado e, daí, ninguém programa o
“jornaleco irresponsável”. Esse escândalo que estourou agora no Banrisul
mostra o uso político das verbas de publicidade. Dez milhões foram
tungados para pagamento de propinas e caixa de campanha. O Banrisul
patrocina o principal prêmio de jornalismo do Estado, o Prêmio ARI, da
Associação Riograndense de Imprensa. Tenho várias fotos com o presidente
do banco entregando prêmios ao JÁ. Mas, desde 2003, quando Germano
Rigotto assumiu como governador, o Banrisul baniu o JÁ das suas
programações publicitárias. O maior banco do Estado anuncia até em
jornalzinho de pet shop, só não anuncia no JÁ. Será que isso tudo é mera
coincidência?
CA – E o que vai acontecer agora? Qual é a saída para o JÁ?
ELMAR – Nesse momento muitos interesses se juntam
para tirar o jornal de circulação. Eles não vão conseguir. O JÁ vai
resistir. Apesar do silêncio público, estamos recebendo muitas
manifestações de apoio. Os artigos do jornalista Luiz Cláudio Cunha, em
novembro e agora, no Observatório da Imprensa, abriram uma grande frente
de resistência, reproduzidos em centenas de blogs pelo mundo afora.
Acho que vamos comemorar os 25 anos em outubro com grandes e boas
novidades.
Clique aqui para ler “Rigotto quer fechar um jornal ? A odisséia de um jornalista gaúcho”.