Escrito por Bruno Lima Rocha no Correio da Cidadania | |
No momento em que escrevo estas palavras, a economista Dilma Rousseff
(PT) está matematicamente eleita como primeira mulher presidente do
Brasil. A derrota da dobradinha "clássica" PSDB-DEM, José Serra e Índio
da Costa, demonstra um novo arranjo político e de parcelas do poder no
Brasil. Mas, a eleição da ex-ministra em chefe da Casa Civil não
significa necessariamente um avanço por esquerda, longe disso. A
coligação de dez legendas, tendo ao deputado federal pelo PMDB quercista
de São Paulo Michel Temer como vice, representa por si só a ampla
margem de negociação e desistência de perspectivas históricas do
reformismo radical dos anos 80. E agora?
Para além do óbvio, analisando a vitoriosa composição de aliança política e de classes
O pensamento socializante brasileiro tem algumas constatações
relevantes, para as quais aporto meu grão de areia nesta reflexão. Temos
duas novidades neste pleito, duas dentre várias. Elegeu-se uma
ex-guerrilheira e mulher (estando separada em sua vida conjugal) para
chefiar o Poder Executivo da 5ª economia do mundo e o país líder
latino-americano do G-20. Não é coisa de pouca monta. Ou não seria. Esta
mesma operadora política, com grande capacidade de execução de agenda,
viu-se obrigada (ou se obrigou dado o volume de compromissos) a
abandonar temas de convicção consensual no que resta das esquerdas com
perfil militante no Brasil. Em termos de reivindicação imediata, o 3º
Programa Nacional de Direitos Humanos, peça esta que Lula não assinara,
traçaria um senso comum daqueles que entendem – ainda que por dentro do
aparelho de Estado - como prioridade a divisão de recursos e de poder.
Pois bem, esta mesma peça consensual e imediata, foi refutada, negada,
afastada, retirada de pauta, por parte da candidata. Na ponta do
problema, o tema do aborto, entrando pela porta dos fundos através dos
factóides políticos e dos poderes de veto do obscurantismo nacional.
Não ficou por aí. A aliança da legenda de Luiz Inácio teve a "sabedoria"
eleitoral de costurar com aqueles que serviram, em sua própria
iniciação da vida política, de objeto de ódio na figura do inimigo
visível. Sei que é chato, mas é inevitável lembrar o apoio dos oligarcas
como Sarney, Jucá, Calheiros, Geddel & Cia ou o reforço de opinião
de operadores pró-ditadura como o ex-ministro Delfim Netto ou o
ex-reitor da Universidade Mackenzie do CCC, Cláudio Lembo; de agentes
econômicos como os líderes do mercado financeiro, materializado nos
bancos (FEBRABAN), na indústria automobilística (ANFAVEA), das
transnacionais e mega-conglomerados nacionais de telecomunicações
(SINDITELEBRASIL) capitaneados no Brasil pela Telefônica de Espanha e na
fusão absurda que dera na BROi e após na compra de uma parte da nova
super-empresa por parte da Portugal Telecom (PT). Não parou por aí.
Na mídia, frente de batalha prioritária no embate político-eleitoral,
abriu-se uma cunha entre os líderes do oligopólio nacional das
comunicações. Se por um lado as famílias, Marinho (Globo), Mesquita
(Estado de SP), Frias (Folha de SP) e Civitta (Abril-Naspers), de outro,
grupos do porte da Rede Record, do portal Terra (Telefônica de
Espanha), da estirpe da Carta Capital, no alinhamento recente do Grupo
Três (Alzogaray, cujo veículo líder é a revista Istoé) e na posição
rachada do empresariado dos radiodifusores entre a ABERT (liderada pela
Globo), e a ABRA (liderada pela Rede Bandeirantes, da família Saad).
Ressalto este aspecto, pois a luta política migrara para o espaço
midiático (que de público pouco ou nada tem) e a coligação governista
sabiamente (espertamente, pragmaticamente) optou pela solução Getúlio
Vargas encontrando o seu – no caso, os seus – Samuel Weiner. Poderíamos
seguir narrando as composições com agentes econômicos líderes dos
respectivos oligopólios do capitalismo operando e existente no Brasil,
mas basta com ressaltar o perfil agro-exportador do Brasil e a relação
mais que promíscua entre o Ministério da Agricultura e o latifúndio.
Para além do sectarismo, porque estamos piores organizados?
O que me assusta é o lado de cá do balcão. Lula deixa o poder
conseguindo uma proeza paradoxal. Seria leviano dizer que os brasileiros
e brasileiras vivem em condições piores do que a oito anos atrás. Não
seria correto. Ao mesmo tempo, seria tão ou mais leviano afirmar que as
forças sociais, muitas delas ainda tributárias do mesmo processo de
reivindicações e protagonismo de luta popular dos anos 80, a mesma
matriz do PT e seu líder histórico, estão mais organizadas. Nossas
entidades e movimentos populares estão piores organizados, mobilizam
menos, milita-se menos, há um distanciamento muito maior entre
dirigentes e bases, não têm uma entidade que seja transversal para os
movimentos (como uma central ou confederação sindical mais à esquerda e
livre das práticas do viciado aparelhismo e disputa sectária de
correntes) e o próprio MST perde sua capacidade de liderança da luta
popular uma vez que se esvai em posições tênues, abrandadas, e
terminando por ir a reboque da União e do melhorismo. Para quem julga
ser isto exagero deste analista, sugiro que leiam os embates na interna
do jornal Brasil de Fato ou simplesmente converse com a militância
detentora de algum nível de responsabilidade.
Eleitoralmente, e esta não é a opção militante deste que escreve, os
índices foram pífios. PSOL, PSTU, PCO e PCB não são a mesma coisa, tem
diferenças de origens políticas (ressaltando-se este último) e tampouco
representam alguma forma de consenso da esquerda que ainda crê na via
eleitoral. Seus resultados sequer passam de 1% das intenções de voto e o
escrutínio não veio acompanhado de um avançar de lutas sociais a ser
galvanizada através da participação nas regras da democracia de tipo
liberal e representativo. É difícil crescer eleitoralmente em
conjunturas de pouca ou nenhuma mobilização e onde a tensão social está
ausente da política.
Já da parte das organizações políticas que não optam pela via eleitoral
por dentro do sistema – sendo esta a opção deste analista - o que se vê é
uma grande chance de crescimento qualitativo, desde que seja explícito
um projeto político para o curtíssimo e curto prazos (2 e 4 anos,
respectivamente). Será necessária uma maturidade de outro tipo, quando
as minorias ativas têm de compreender que a sensação popular é que suas
vidas melhoraram, e ao mesmo tempo, os projetos de poder de
transformação profunda estão mais distantes do que estavam no final dos
anos ‘80 e, como um todo, o movimento popular brasileiro está muito mais
confuso do que estava na segunda metade dos anos ’90, em pleno auge do
neoliberalismo e da Era FHC.
Trata-se de um paradoxo de difícil compreensão para quem tem pressa – e é
difícil fazer política apressadamente. De um lado a massificação
reivindicativa se complica, uma vez que a sociedade como um todo
(incluindo os setores de classe tradicionalmente organizados) está mais
desorganizada, fragmentada e dispersa. De outro, o romper com as
práticas viciadas e o manifestar de uma cultura política distinta pode e
vem atraindo significativamente militantes com trajetória ilibada e que
não concordam com as vias do legalismo-reformista (como a ilusão de
fazer política radical através do Judiciário e do Ministério Público) e
menos ainda com o compartilhamento de postos de poder tanto com inimigos
históricos (como a leva de Arenistas presentes nos oito anos de Lula) e
menos ainda com o espaço enorme dado e garantido a setores pelegos
oriundos do sistema corporativo (como a Força Sindical, a CGTB e a
recalcitrante UGT). O racha sindical que leva a construir a CTB é
declaradamente uma peleia por recursos derivados da legalização das
centrais sindicais e reflete também uma aproximação – em função de
clivagem eleitoral – de PC do B e PSB. Romper com estas práticas é algo
muito factível. A luta sindical abre um oceano de perspectivas de
crescimento com qualidade da militância recrutada e é possível fazer
desta uma via que dê oxigênio para as agrupações mais à esquerda e
programaticamente distantes das urnas.
Apontando conclusões
É duro admitir que a guerrilheira que caiu de pé e não cantou sob
tortura, resistindo com dignidade aos suplícios da Operação Bandeirantes
e da estrutura do DOI-CODI do II Exército em São Paulo, não representa
sequer um projeto reformista. É mais duro ainda admitir que esta mesma
pessoa, uma mulher, representa de por si uma quebra de paradigma. E, por
fim, o mais duro de tudo é perceber a forma como se governou nos
últimos oito anos e quanto esta prática política está distante da tensão
social necessária para aumentar os níveis de organização popular para
poder, de fato, acumular forças rumo a um câmbio profundo. Lula tem mais
de 80% de aprovação e isto não implica (e nem poderia implicar) uma
guinada à esquerda do povo brasileiro. Repito, é hora de refletir e
buscar a consistência através de um crescimento qualitativo, rompendo
com a cultura política viciada e dirigista.
Entender este momento e fazer política para ele é uma atitude
construtiva. É diferente de afirmar que o melhorismo da coligação de
centro-esquerda é idêntico à histeria de tipo udenista da coligação de
centro-direita. Afirmar isso seria leviano e absurdo. Os projetos que
chegaram ao segundo turno não são idênticos. Mas, mesmo que através de
Dilma as políticas sociais permaneçam, é preciso ter a firmeza e a
maturidade para assumir que há governos de turno que melhoram a vida das
maiorias e não constroem projetos de poder para estas mesmas maiorias
serem donas de seus destinos. Este é o caso brasileiro e continuará
sendo nos próximos quatro anos.
Se o objetivo determina o método segundo as condicionalidades, os
sessenta dias restantes do ano servem para gerar a reflexão necessária a
respeito das condições de existência e expansão da proposta que visa
organizar desde abaixo, acumulando forças – através da luta popular em
sua forma direta - no sentido da radicalização da democracia através de
sua forma direta e participativa, socializando recursos e poder entre as
maiorias. Há muito trabalho pela frente.
Bruno Lima Rocha é doutor e mestre em Ciência Política pela UFRGS e
jornalista graduado na UFRJ; é docente de comunicação social e
pesquisador 1 da Unisinos, vinculado ao Grupo Cepos/PPG Com; concentra
seus trabalhos analíticos no portal Estratégia & Análise, do qual é o
editor.
Originalmente publicado na Rede Unisinos - http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37912
|
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
A vitória de Dilma Rousseff: uma crítica abaixo e por esquerda
Saiba mais sobre a Russia....
Esse blog, da Milu, tem uma enorme gama de informações culturais sobre a Russia e sua história. Estamos recomendando pois temos a certeza de que aqueles que o visitarem terão acesso a informações diversificadas e nem sempre encontradas na grande mídia.Tomei a liberdade e vou colocar aqui o perfil da Milu, que encontra-se disponível em seu blog. O link para o sitio está AQUI
QUEM SOU EU
- Milu
- Claro que Aksínia não é meu verdadeiro nome, mas foi o escolhido por ser este o nome de uma das minhas personagens favoritas na literatura,construída por Mikháil Chólokhov em "O Don Silencioso", bem como o nome de um grande amor de Liev Tolstoi... Será este o tema de meu primeiro post no blog. Adotei este nick, em parte, para homenagear estes dois grandes autores e não para preservar minha identidade, uma vez que coloquei meu album de fotos neste blog, o que me tornará facilmente identificável a muitos que já conhecem minhas atividades de "blogueira".
Comunicação deve ser área estratégica para governo Dilma
Em seminário em Brasília, organizado
para discutir experiências internacionais de regulação da mídia, o
ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência,
deixou clara a urgência de um novo marco regulatório para o setor no
país, que deve ser construído num debate público e transparente com toda
a sociedade, deixando “fantasmas no porão”. Para Unesco, a legislação
da radiodifusão brasileira é atrasada e pouco sustentada no interesse
público.
Bia Barbosa, de Brasília, no Carta Maior
Num processo que envolveu mais de 30 mil
pessoas em todo o país, a I Conferência Nacional de Comunicação teve
como uma de suas principais resoluções, aprovada por representantes do
governo, da sociedade civil e do empresariado, a necessidade da
construção de um novo marco regulatório para o país. Ultrapassada – da
década de 60 – e pouco democrática, a legislação que hoje rege o setor
tem se mostrado um entrave não apenas para o desenvolvimento da própria
mídia no país como também um obstáculo considerável para a consolidação
da democracia brasileira. A um mês de completar o aniversário de um ano
da I Confecom, o governo Lula dá um passo significativo para transformar
essa realidade e sinaliza: o governo Dilma deve tratar as mudanças
nessa área como prioritárias.
Foi este o tom do discurso, corajoso, do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, nesta terça (09) durante a abertura do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, em Brasília. Para uma platéia repleta de empresários, organizações da sociedade civil, acadêmicos e convidados estrangeiros, Franklin colocou o dedo numa ferida que, pelo menos publicamente, já tinha sido reconhecida pelo Executivo Federal desde a Confecom, mas que até este momento deixava dúvidas sobre quando e o quanto seria de fato enfrentada. Depois de viajar por diversos países para conhecer como outras democracias estão lidando com o processo de convergência tecnológica, foi hora de trazer especialistas internacionais para Brasília e dar o pontapé público neste debate, “olhando pra frente”, como ele deixou claro.
“Cada vez mais as fronteiras entre radiodifusão e telecomunicação vão se diluindo. Em pouco tempo, para o cidadão será indiferente se o sinal que recebe no celular ou no computador vem da radiodifusão ou das teles. A convergência de mídia é um processo que está em curso e ninguém vai detê-lo. Por isso é bom olhar pra frente, este é o futuro. E regular esta questão será um desafio, porque sem isso não há segurança jurídica nem como a sociedade produzir um ambiente onde o interesse público prevaleça sobre os demais”, afirmou.
O governo reconheceu que, aqui, o desafio se mostra maior do que em outros países, porque, além da legislação atrasada, “acumularam-se problemas imensos, que foram sendo encostado ao longo do tempo”. Para o ministro, a legislação brasileira é um cipoal de gambiarras, que não enfrenta as questões de fundo, e que inclusive não responde aos princípios estabelecidos pela própria Constituição Federal.
“Criou-se, na área de comunicação, uma terra de ninguém. Todos sabemos, por exemplo, que deputados e senadores não podem ter concessões de rádio e TV. Mas todos sabemos que eles tem, através de subterfúgios, e ninguém faz nada. A discussão foi sendo evitada. E a oportunidade é discutir tudo isso agora, legislando de uma forma mais permanente, integradora, cidadã e democrática”, disse Franklin Martins.
Fantasmas no sótão
A pretensão do governo é fazer as mudanças no marco regulatório através de um processo público, aberto e transparente, para que a sociedade brasileira como um todo – e não apenas um grupo ou outro – decida seu caminho. Até o final da gestão Lula, um ante-projeto de lei, que vem sendo elaborado por um grupo de trabalho interministerial, será apresentado à equipe da presidente eleita Dilma Rousseff, que então decidirá quando e como apresentá-lo ao Congresso Nacional. É neste debate público que o grupo de trabalho deve basear suas proposições.
Um dos maiores desafios nessa jornada, no entanto, parece ir além da própria convergência tecnológica e suas inúmeras inovações. Trata-se de, exatamente, criar as condições para que o debate público de fato aconteça, de forma plural e participativa. Foi este o desejo da I Conferência de Comunicação, que agora parece contar com a vontade política do governo Lula para ser colocado em marcha.
“O problema é grande. Os fantasmas passeiam por aí arrastando correntes, impedindo que a gente ouça o que tem que ouvir. Se formos capazes de nos livrar dos fantasmas e não os deixarmos controlar nossa discussão, avançaremos. Isso interessa à sociedade como um todo, não é uma discussão apenas econômica. A comunicação diz respeito à cidadania, à participação política e à produção cultural, e por isso a sociedade deve participar diretamente”, afirmou Franklin Martins. E deu o recado: “convido a todos então a deixar seus fantasmas no sótão, que é onde eles se sentem melhor. Vamos nos desarmar dos preconceitos. Essa agenda está na mesa e será realizada, num clima de entendimento ou de enfrentamento”.
Dentre os fantasmas que precisam ser deixados no porão está a tese – tão difundida pelos grandes meios de comunicação – de que regulação é sinônimo de censura à imprensa. Na abertura do seminário internacional, foi necessário afirmar mais uma vez, para quem já deveria estar convencido disso, que o Brasil goza de absoluta liberdade de imprensa.
“Essa história de que a liberdade de imprensa está ameaça é uma bobagem, um truque, isso não está em jogo. A liberdade de imprensa significa a liberdade de imprimir, divulgar, de publicar. A essa não deve, não pode e não haverá qualquer tipo de restrição. Isso não significa que não pode haver regulação do setor. Vocês verão relatos neste evento de diversas democracias, e verão que em todas elas há regulação, o que não significa nada que haja censura”, repetiu.
Sem explicitar, o governo Lula acabou admitindo que deixou a desejar no campo das comunicações. E para os participantes da sociedade civil que vieram a Brasília conhecer as experiências de outros países, talvez esta tenha sido a mensagem mais alentadora: esta área deve ser tratada com prioridade no governo Dilma.
“Estou convencido de que a área de comunicação terá, no próximo governo, o mesmo tratamento que teve a energia no governo Lula. Algo estratégico para o crescimento. Ou se produz um novo marco regulatório ou vamos perder o bonde. Em 2008, a radiodifusão faturou R$ 11,5 bilhões; e as empresas de telecomunicações, R$ 130 bilhões. Em 2009, os números foram R$ 13 bilhões e R$ 180 bilhões respectivamente. É evidente que, se não houver regulação, a radiodifusão será atropelada por uma jamanta. E se não houver o debate, quem vai regular é o mercado. E quando o mercado regula, quem ganha é o mais forte”, avisou Franklin.
“É necessário regular, criar políticas públicas e gerar um ambiente para que a sociedade se sinta não só usuária dos serviços de comunicação, mas cidadã. Se formos capazes de entender isso, teremos mais vozes falando, mais opiniões se expressando no debate público. É “mais” e não “menos” o que está em jogo neste processo”, concluiu.
Mais interesse público
Também em sintonia com o que apontou a I Confecom e com a linha política manifestada pela Secretaria de Comunicação, uma das primeiras participações internacionais no seminário expôs objetivamente os pontos nevrálgicos da legislação brasileira que precisam avançar para que o setor, de fato, permita a expressão dessa multiplicidade de vozes. O canadense Toby Mendel, diretor executivo do Centro de Direito e Democracia, organização internacional de direitos humanos com foco no conhecimento legal sobre direitos fundamentais para a democracia, incluindo o direito à informação, a liberdade de expressão e o direito de participação, apresentou o resultado de um estudo encomendado pela Unesco sobre o marco regulatório em 10 grandes democracias, incluindo o Brasil. E, a partir de padrões internacionais, fez recomendações para o processo que se inicia em território nacional.
Uma delas é a de ampliar a transparência e garantir o interesse público nos processos de renovação das concessões de rádio e TV. “Em muitos países, este momento é uma oportunidade para avaliar mudanças que precisam ser feitas pelo concessionário, para apontar eventuais regras que não tenham sido respeitadas. No Brasil, esta avaliação não acontece”, disse Toby Mendel.
A prática reforça outros problemas da legislação não enfrentados pelo Estado brasileiro: a regulação da propriedade privada dos meios – com medidas como a proibição da propriedade cruzada – e a garantia da liberdade de expressão.
“A liberdade de expressão vai além do direito do emissor dizer o que pensa. É também o direito do receptor, do telespectador, do leitor, receber uma variedade de informações e de pontos de vista. Se a propriedade dos meios não é regulada, isso pode até ser ok do ponto de vista do emissor, mas o direito do receptor de receber idéias plurais começa a ser reduzido. Ou seja, o Estado não pode simplesmente deixar o mercado agir”, afirmou o consultor da Unesco.
Na mesma linha, Mendel apontou a importância de regras para a difusão de conteúdo na radiodifusão, como a proteção de crianças, o combate a discursos que violem os direitos humanos e a promoção do jornalismo imparcial. É preciso ainda regulamentar o artigo da Constituição que garante percentuais para a difusão de conteúdos regionais e independentes nas emissoras de rádio e TV e garantir o direito de resposta.
“Tudo isso está na Constituição, mas não é cumprido. Também é preciso haver um sistema que receba queixas neste sentido, um órgão regulador independente que pode aplicar sanções diante do descumprimento dessas regras”, explicou Mendel, que defendeu ainda a importância do fortalecimento do sistema público de comunicação e da comunicação comunitária brasileira.
A lista é grande, e foi sendo recheada com outras sugestões vindas dos representantes dos demais países presentes ao seminário – o que apenas reforça e confirma o tamanho do desafio que o Brasil tem pela frente se quiser mesmo mexer neste vespeiro.
Foi este o tom do discurso, corajoso, do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, nesta terça (09) durante a abertura do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, em Brasília. Para uma platéia repleta de empresários, organizações da sociedade civil, acadêmicos e convidados estrangeiros, Franklin colocou o dedo numa ferida que, pelo menos publicamente, já tinha sido reconhecida pelo Executivo Federal desde a Confecom, mas que até este momento deixava dúvidas sobre quando e o quanto seria de fato enfrentada. Depois de viajar por diversos países para conhecer como outras democracias estão lidando com o processo de convergência tecnológica, foi hora de trazer especialistas internacionais para Brasília e dar o pontapé público neste debate, “olhando pra frente”, como ele deixou claro.
“Cada vez mais as fronteiras entre radiodifusão e telecomunicação vão se diluindo. Em pouco tempo, para o cidadão será indiferente se o sinal que recebe no celular ou no computador vem da radiodifusão ou das teles. A convergência de mídia é um processo que está em curso e ninguém vai detê-lo. Por isso é bom olhar pra frente, este é o futuro. E regular esta questão será um desafio, porque sem isso não há segurança jurídica nem como a sociedade produzir um ambiente onde o interesse público prevaleça sobre os demais”, afirmou.
O governo reconheceu que, aqui, o desafio se mostra maior do que em outros países, porque, além da legislação atrasada, “acumularam-se problemas imensos, que foram sendo encostado ao longo do tempo”. Para o ministro, a legislação brasileira é um cipoal de gambiarras, que não enfrenta as questões de fundo, e que inclusive não responde aos princípios estabelecidos pela própria Constituição Federal.
“Criou-se, na área de comunicação, uma terra de ninguém. Todos sabemos, por exemplo, que deputados e senadores não podem ter concessões de rádio e TV. Mas todos sabemos que eles tem, através de subterfúgios, e ninguém faz nada. A discussão foi sendo evitada. E a oportunidade é discutir tudo isso agora, legislando de uma forma mais permanente, integradora, cidadã e democrática”, disse Franklin Martins.
Fantasmas no sótão
A pretensão do governo é fazer as mudanças no marco regulatório através de um processo público, aberto e transparente, para que a sociedade brasileira como um todo – e não apenas um grupo ou outro – decida seu caminho. Até o final da gestão Lula, um ante-projeto de lei, que vem sendo elaborado por um grupo de trabalho interministerial, será apresentado à equipe da presidente eleita Dilma Rousseff, que então decidirá quando e como apresentá-lo ao Congresso Nacional. É neste debate público que o grupo de trabalho deve basear suas proposições.
Um dos maiores desafios nessa jornada, no entanto, parece ir além da própria convergência tecnológica e suas inúmeras inovações. Trata-se de, exatamente, criar as condições para que o debate público de fato aconteça, de forma plural e participativa. Foi este o desejo da I Conferência de Comunicação, que agora parece contar com a vontade política do governo Lula para ser colocado em marcha.
“O problema é grande. Os fantasmas passeiam por aí arrastando correntes, impedindo que a gente ouça o que tem que ouvir. Se formos capazes de nos livrar dos fantasmas e não os deixarmos controlar nossa discussão, avançaremos. Isso interessa à sociedade como um todo, não é uma discussão apenas econômica. A comunicação diz respeito à cidadania, à participação política e à produção cultural, e por isso a sociedade deve participar diretamente”, afirmou Franklin Martins. E deu o recado: “convido a todos então a deixar seus fantasmas no sótão, que é onde eles se sentem melhor. Vamos nos desarmar dos preconceitos. Essa agenda está na mesa e será realizada, num clima de entendimento ou de enfrentamento”.
Dentre os fantasmas que precisam ser deixados no porão está a tese – tão difundida pelos grandes meios de comunicação – de que regulação é sinônimo de censura à imprensa. Na abertura do seminário internacional, foi necessário afirmar mais uma vez, para quem já deveria estar convencido disso, que o Brasil goza de absoluta liberdade de imprensa.
“Essa história de que a liberdade de imprensa está ameaça é uma bobagem, um truque, isso não está em jogo. A liberdade de imprensa significa a liberdade de imprimir, divulgar, de publicar. A essa não deve, não pode e não haverá qualquer tipo de restrição. Isso não significa que não pode haver regulação do setor. Vocês verão relatos neste evento de diversas democracias, e verão que em todas elas há regulação, o que não significa nada que haja censura”, repetiu.
Sem explicitar, o governo Lula acabou admitindo que deixou a desejar no campo das comunicações. E para os participantes da sociedade civil que vieram a Brasília conhecer as experiências de outros países, talvez esta tenha sido a mensagem mais alentadora: esta área deve ser tratada com prioridade no governo Dilma.
“Estou convencido de que a área de comunicação terá, no próximo governo, o mesmo tratamento que teve a energia no governo Lula. Algo estratégico para o crescimento. Ou se produz um novo marco regulatório ou vamos perder o bonde. Em 2008, a radiodifusão faturou R$ 11,5 bilhões; e as empresas de telecomunicações, R$ 130 bilhões. Em 2009, os números foram R$ 13 bilhões e R$ 180 bilhões respectivamente. É evidente que, se não houver regulação, a radiodifusão será atropelada por uma jamanta. E se não houver o debate, quem vai regular é o mercado. E quando o mercado regula, quem ganha é o mais forte”, avisou Franklin.
“É necessário regular, criar políticas públicas e gerar um ambiente para que a sociedade se sinta não só usuária dos serviços de comunicação, mas cidadã. Se formos capazes de entender isso, teremos mais vozes falando, mais opiniões se expressando no debate público. É “mais” e não “menos” o que está em jogo neste processo”, concluiu.
Mais interesse público
Também em sintonia com o que apontou a I Confecom e com a linha política manifestada pela Secretaria de Comunicação, uma das primeiras participações internacionais no seminário expôs objetivamente os pontos nevrálgicos da legislação brasileira que precisam avançar para que o setor, de fato, permita a expressão dessa multiplicidade de vozes. O canadense Toby Mendel, diretor executivo do Centro de Direito e Democracia, organização internacional de direitos humanos com foco no conhecimento legal sobre direitos fundamentais para a democracia, incluindo o direito à informação, a liberdade de expressão e o direito de participação, apresentou o resultado de um estudo encomendado pela Unesco sobre o marco regulatório em 10 grandes democracias, incluindo o Brasil. E, a partir de padrões internacionais, fez recomendações para o processo que se inicia em território nacional.
Uma delas é a de ampliar a transparência e garantir o interesse público nos processos de renovação das concessões de rádio e TV. “Em muitos países, este momento é uma oportunidade para avaliar mudanças que precisam ser feitas pelo concessionário, para apontar eventuais regras que não tenham sido respeitadas. No Brasil, esta avaliação não acontece”, disse Toby Mendel.
A prática reforça outros problemas da legislação não enfrentados pelo Estado brasileiro: a regulação da propriedade privada dos meios – com medidas como a proibição da propriedade cruzada – e a garantia da liberdade de expressão.
“A liberdade de expressão vai além do direito do emissor dizer o que pensa. É também o direito do receptor, do telespectador, do leitor, receber uma variedade de informações e de pontos de vista. Se a propriedade dos meios não é regulada, isso pode até ser ok do ponto de vista do emissor, mas o direito do receptor de receber idéias plurais começa a ser reduzido. Ou seja, o Estado não pode simplesmente deixar o mercado agir”, afirmou o consultor da Unesco.
Na mesma linha, Mendel apontou a importância de regras para a difusão de conteúdo na radiodifusão, como a proteção de crianças, o combate a discursos que violem os direitos humanos e a promoção do jornalismo imparcial. É preciso ainda regulamentar o artigo da Constituição que garante percentuais para a difusão de conteúdos regionais e independentes nas emissoras de rádio e TV e garantir o direito de resposta.
“Tudo isso está na Constituição, mas não é cumprido. Também é preciso haver um sistema que receba queixas neste sentido, um órgão regulador independente que pode aplicar sanções diante do descumprimento dessas regras”, explicou Mendel, que defendeu ainda a importância do fortalecimento do sistema público de comunicação e da comunicação comunitária brasileira.
A lista é grande, e foi sendo recheada com outras sugestões vindas dos representantes dos demais países presentes ao seminário – o que apenas reforça e confirma o tamanho do desafio que o Brasil tem pela frente se quiser mesmo mexer neste vespeiro.
Fotos: Antonio Cruz/Abr
terça-feira, 9 de novembro de 2010
As falhas no Enem e os interesses que se movem nos bastidores
“Prova do Enem é tecnicamente sustentável sob todos os pontos de vista”
do blog do Planalto
O governo não pretende anular o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
2010, realizado no último sábado (6/11), e nem refazer as provas para
todos os inscritos, afirmou o ministro da Educação, Fernando Haddad, em
entrevista coletiva à imprensa concedida nesta segunda-feira (8/11), em
Brasília (DF). Segundo Haddad, os alunos prejudicados por falhas na
impressão em alguns lotes poderão, após a devida apuração por parte do
Ministério da Educação (MEC), refazer a prova, sem que haja a
necessidade do cancelamento da mesma, uma vez que o princípio da
isonomia não foi comprometido.
O Ministro disse ainda que o MEC irá tentar reverter a decisão da 7ª
Vara Federal do Ceará de suspender, em caráter liminar, o Enem. O
Ministério irá explicar que o uso da Teoria de Resposta ao Item permite a
comparabilidade de provas distintas, possibilitando a realização de um
novo exame com “questões de mesmo peso”. De acordo com o Ministro, caso a
Justiça Federal do Ceará mantenha a decisão, o MEC irá recorrer em
instâncias superiores, pois há, por parte do governo, a segurança de que
a prova é tecnicamente sustentável.
A prova será reaplicada para quem foi prejudicado. A grande vantagem
que nós temos é que, como o Enem, desde o ano passado, responde pela
Teoria de Resposta ao Item, essas provas são rigorosamente comparáveis e
não é necessário anular o exame como um todo… Em um exame com quase 5
milhões de inscritos, se você não adota esse sistema, compromete-se a
isonomia da prova.
Questionado sobre eventuais impactos dos erros de impressão na
credibilidade do Enem, Haddad afirmou que a julgar pelo relato de
reitores e o aumento em 10% no número de inscritos com relação a 2009,
não há razões para acreditar na perda de credibilidade do Enem, que é
“irreversível, um caminho sem volta”. O Ministro informou ainda que não
há uma data precisa para a reaplicação do teste para os estudantes que
foram comprovadamente prejudicados.
Para definir a data temos que observar o calendário universitário e,
segundo, verificar quantos estudantes efetivamente terão que refazer. No
ano passado, marcamos para cerca de um mês depois. Essa é a previsão.
Sobre os custos para a realização de uma nova prova, Haddad explicou
que todas as despesas ficarão a cargo da gráfica que realizou a
impressão e que há, ainda, previsão contratual para a cobrança de multa.
PS do Viomundo: As falhas no Enem são lamentáveis. É
prato cheio para a oposição, já que estamos falando de milhões de
futuros eleitores. Dito isso, é preciso ter em conta os interesses que
se movem nos bastidores. São os interesses dos que defendem a
perpetuação dos cursinhos e que, em São Paulo, fizeram da Secretaria da
Educação um canal de financiamento da grande mídia, como está exposto aqui.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
O Colonialismo Português na Guiné: Os crimes de uma Guerra perdida
Carlos Lopes Pereira
«Desde
o tempo das chamadas descobertas ou achamentos até ao tempo do comércio
de escravos e crimes da escravatura; desde as guerras de conquista
colonial até à época de ouro do colonialismo; das primeiras “reformas”
ultramarinas até às guerras coloniais de genocídio dos nossos dias, os
colonialistas portugueses deram sempre provas de uma mentalidade
supersticiosa e dum racismo primitivo em relação ao homem africano, que
consideravam e consideram como naturalmente inferior, incapaz de
organizar a sua vida e defender os seus interesses, fácil de enganar,
sem cultura e sem civilização».
Amílcar Cabral, 1971
Ao longo da guerra de libertação nacional, o Partido Africano da
Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e o seu líder, Amílcar
Cabral, denunciaram repetidas vezes – em declarações públicas, em
mensagens, em relatórios, em comunicados de imprensa, em documentos
apresentados à Organização das Nações Unidas e à Organização da Unidade
Africana – aquilo que consideravam ser crimes cometidos pelos
colonialistas portugueses na Guiné. E não se limitaram a denunciar,
apresentaram provas: recolheram declarações de vítimas de torturas e
ferimentos, mostraram fragmentos de bombas «napalm», promoveram
testemunhos de jornalistas, cineastas, escritores, delegações de
organizações e países e outros observadores insuspeitos.
Com base na leitura de documentos publicados pelo PAIGC, sobretudo
intervenções de Amílcar Cabral, para o caso da Guiné, são inúmeros os
exemplos desses crimes atribuídos ao colonialismo português.
«O “apartheid” à portuguesa»
– Em Junho de 1960,
numa brochura publicada em Londres, intitulada «The facts about
Portugal’s african colonies», com prefácio do jornalista e historiador
Basil Davidson, Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral, explicava à
opinião pública europeia a situação dos 11 milhões de africanos
submetidos à dominação colonial portuguesa. Afirmava que apesar das
riquezas naturais existentes em Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e
São Tomé e Príncipe, «os africanos têm um nível de vida inferior ao
mínimo vital» e «a sua situação é de servos no seu próprio país».
Lembrava que depois do tráfico de escravos, a conquista pelas armas e as
guerras coloniais «de pacificação», veio a destruição completa das
estruturas económicas e sociais da sociedade africana. Seguiu-se a fase
de ocupação europeia e o povoamento crescente, a partir de finais do
século XIX e, no caso da Guiné, até 1936, quando terminaram as guerras
de «pacificação»: as terras e os haveres dos africanos foram pilhados,
os portugueses impuseram a «taxa de soberania» e tornaram obrigatória a
cultura de certos géneros (na Guiné, através da Companhia União Fabril
(CUF), foi imposta a cultura da mancarra); instituíram o trabalho
forçado e organizaram a deportação de trabalhadores, os «contratados».
Denunciando a ideologia racista do estatuto indígena
–
imposto no início da década de 30 do século XX por Salazar e só
formalmente abolido em 1961, por Adriano Moreira, então ministro do
Ultramar do regime fascista – Cabral ridicularizava «a ideia de criar
uma “sociedade multirracial” nas colónias, baseada legalmente no
estatuto indígena», «na realidade o “apartheid” à portuguesa». E
comentava: «99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é
considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é
considerada assimilada. Para que uma pessoa “não civilizada” obtenha o
estatuto de “assimilada”, tem de fazer prova de estabilidade económica e
gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da
população de Portugal. Tem de viver à “europeia”, pagar impostos,
cumprir o serviço militar e saber ler e escrever correctamente o
português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais
de 50% da população não teria direito ao estatuto de “civilizado” ou de
“assimilado”»1…
Onda de repressão e terror
– Nesse ano de 1960, já
em Conakry, na República da Guiné – onde instalou o secretariado-geral
do PAIGC e obteve apoios do Partido Democrático da Guiné (PDG) e do
presidente Sékou Touré –, Amílcar Cabral enviou, em panfletos, mensagens
aos funcionários públicos e empregados comerciais guineenses e
cabo-verdianos, aos militares guineenses e cabo-verdianos (oficiais
sargentos e soldados obrigados a servir no exército colonial português),
aos jovens da Guiné e Cabo Verde e até aos colonos portugueses nos dois
territórios, convidando-os a juntarem-se à luta de libertação nacional,
denunciando os colonialistas que «perseguem, prendem, torturam,
massacram, reforçam cada vez mais as suas forças armadas e preparam-se
cinicamente para continuar a afogar em sangue todas as tentativas de
libertação por parte dos nossos povos»2.
A 1 de Dezembro de 1960, o PAIGC dirigiu um memorando ao governo
português propondo o «reconhecimento solene e imediato dos direitos dos
povos guineense e cabo-verdiano à autodeterminação» (uma solução
política, como alternativa à guerra, foi sempre defendida pelo partido
até à vitória). Nesse documento, Amílcar Cabral lembrava que «depois do
massacre do cais de Pidjiguiti (Bissau, 3 de Agosto de 1959), no qual
militares e civis portugueses mataram a tiro dezenas de trabalhadores
guineenses em greve, uma onda de repressão e terror, planeada e
comandada pela PIDE, veio tornar mais dura a vida e a luta do povo da
Guiné». E denunciava que, «a par disso, a administração colonial
conseguiu, com o aumento da exportação do arroz [a base da alimentação
dos guineenses], criar mais uma arma de opressão – a fome –, que castiga
actualmente uma grande parte do povo guineense»3.
A 3 de Agosto de 1961, o PAIGC proclama a passagem da «revolução
nacional» na Guiné «da fase da luta política à da insurreição nacional, à
acção directa contra as forças colonialistas», embora reiterando ainda,
três meses depois, numa nota aberta ao governo de Lisboa, a proposta de
aceitação por Portugal do princípio de autodeterminação dos povos da
Guiné e Cabo Verde – nota a que Salazar nem se dignou responder.
«Napalm» sobre as tabancas – Num relatório de finais de 1963, de
balanço da luta armada, entretanto desencadeada na Guiné em Janeiro
desse ano, o PAIGC retoma a denúncia dos crimes dos colonialistas:
«Alarmadas perante a intensificação da nossa acção, as forças
portuguesas desencadearam em todo o país, mas sobretudo no Sul, a mais
violenta repressão militar e policial contra as nossas populações,
principalmente contra todos os suspeitos de pertencerem ao nosso
Partido. Aprisionaram, torturaram e assassinaram patriotas, massacraram
populações sem defesa e incendiaram as tabancas [aldeias]». E mais:
«Desesperados perante as vitórias alcançadas pelo nosso povo tanto no
interior do país como no plano exterior, os colonialistas portugueses
enviaram para a Guiné grandes reforços de material de guerra e de
soldados, cujos efectivos são actualmente da ordem dos 18 a 20.000
homens (cerca de 1.000 em 1959, 5.000 em 1961, 10.000 em 1962).
Recorreram então intensivamente aos únicos meios ao seu alcance para
tentar deter a nossa luta: os bombardeamentos massivos das nossas
tabancas e das nossas populações, sobretudo com as bombas “napalm”, e as
tentativas de ataques às nossas posições, a partir de unidades navais
colocadas nos braços de mar e nos rios das regiões litorais. Mais de uma
centena de tabancas foram destruídas (total ou parcialmente) pelos
bombardeamentos aéreos que fizeram vítimas inocentes, de que a maioria é
constituída por velhos, mulheres e crianças»4.
Mas nem só destas acções se fazia a guerra: «Por outro lado, os
colonialistas portugueses, enquanto gastam somas fabulosas para subornar
alguns chefes tradicionais e para conservar a colaboração de um número
cada vez mais reduzido de mercenários e traidores, procedeu à difusão
aérea de panfletos nos quais as ameaças de destruição total das nossas
populações e dos nossos bens materiais pelo bombardeamento e pelo fogo
se sucedem às frases de adulação (…)»5.
Em 1964
– ano do I Congresso do PAIGC em Cassacá,
nas regiões libertadas do Sul, ano da Batalha do Como (até então «a mais
dura derrota da história colonial portuguesa e as [suas] mais pesadas
baixas em vidas humanas»), ano da criação das Forças Armadas
Revolucionárias do Povo –, um relatório sobre o desenvolvimento da luta
armada dá conta da «liquidação das manobras do inimigo tendentes a
dividir e desmobilizar o nosso povo pela criação de movimentos
fantoches»6, uma prática que os colonialistas vão repetir
posteriormente.
Afinal, quem eram os terroristas?
– Em 7 de
Dezembro de 1966, um relatório da luta do PAIGC apresenta mais
novidades. Os colonialistas nomearam um novo governador, o general
Schultz, ido de Angola, «o sexto chefe do estado-maior português [na
Guiné] depois do desencadear da luta armada»7, e as tropas portuguesas
totalizavam já 25.000 homens (tropas de terra, mar e ar, polícia e
corpos armados especiais), um aumento de 25 vezes em relação ao número
de soldados estacionados no início da década, num território com 36.000
quilómetros quadrados e 800.000 habitantes.
Amílcar Cabral denuncia manobras políticas dos colonialistas
«visando desmobilizar os patriotas e enganar a opinião africana e
mundial promulgando falsas “reformas” administrativas»8, acusa os
colonialistas de criarem «pretensos movimentos autonomistas» e constata a
intensificação da «repressão policial que presentemente atinge não só
os patriotas mas também pessoas que eram consideradas favoráveis ao
regime colonial»8.
Em 1967 – o exército colonial atingia já os «35.000 militares das
diversas armas» –, os colonialistas «intensificaram os bombardeamentos e
o tiroteio criminosos contra as populações e tabancas das regiões
libertadas utilizando bombas de fragmentação, de napalm e fósforo
branco» e, por outro lado, «fizeram tentativas desesperadas a fim de
aterrorizar as populações e reocupar certas posições estratégicas
importantes das regiões libertadas mediante operações combinadas de
grande envergadura e “golpes de mão” por tropas hélio-transportadas»9,
segundo um relatório do PAIGC de Março de 1968. O mesmo documento
sublinha que nos bombardeamentos aéreos, diários e repetidos, visando
sobretudo as populações e tabancas das regiões libertadas, «o inimigo
utilizou maciçamente bombas de fragmentação, de napalm e, pela primeira
vez, bombas de fósforo branco»10, fornecidas por alguns dos seus aliados
da OTAN.
A par destes «bombardeamentos selvagens» e de outras operações (como
“golpes de mão” contra as regiões libertadas, com tropas
hélio-transportadas, algumas vezes apoiadas por desembarques de
fuzileiros navais, «com o fim de aterrorizar as populações, queimar as
nossas culturas agrícolas e destruir as nossas bases»11), o relatório
refere as acções de propaganda das forças coloniais: «uma intensa
propaganda falsa, sobretudo na rádio [de Bissau], tendente a
desacreditar a direcção e os objectivos do nosso Partido, a criar a
confusão entre as populações, a dividir as forças nacionalistas, a
desmobilizar os combatentes, a minar a unidade da nossa organização e a
provar a imaturidade da África para a independência»12.
A política do sorriso e do sangue
– A partir da
mudança de governador da Guiné, em Maio de 1968 – o general Arnaldo
Schultz é substituído pelo general António de Spínola, «militar formado
na repressão em Portugal e em Angola»13 –, a estratégia colonialista
sofre alterações de forma. Um relatório do PAIGC, de Janeiro de 1970,
caracteriza esta «política de duas faces, de sorriso e sangue», a
política spinolista da «Guiné melhor à sombra da bandeira portuguesa»:
por um lado, «por actos de falsas gentilezas e atenções para com as
populações das zonas e centros urbanos ainda ocupados, de concessões nos
planos social e religioso com a construção activa de escolas, de postos
sanitários e de mesquitas, assim como na organização de viagens a
Portugal, atribuição de bolsas de estudo, etc.». Por outro lado, «o
inimigo envia todas as semanas novos contingentes de tropas para o nosso
país, intensifica os bombardeamentos criminosos e os assaltos
terroristas contra as populações das regiões libertadas, queima as
colheitas, mata o gado e, sempre que pode, massacra civis, nomeadamente
velhos, mulheres e crianças»14. O relatório dá um exemplo concreto
destes «assaltos terroristas»: «Quando o inimigo, com a sua falsa
política tenta desmobilizar o nosso povo por meio de falsas promessas da
sua “campanha psicossocial”, bem como por meio do espantalho
neocolonialista de uma “Guiné melhor”, os seus agentes armados tentam,
através dos poucos meios aos quais podem ainda recorrer (principalmente
através dos bombardeamentos aéreos), prejudicar o mais possível as
nossas populações e os nossos combatentes. Chegaram a queimar uma parte
das nossas colheitas em Como, Corubal, Quínara e Tombali, com o fim de
reduzir as populações à fome e, deste modo, impedir a nossa luta.
Aquando de algumas incursões e acções combinadas, chegaram ao ponto de
não apenas raptar ou matar vários elementos da população, mas também de
roubar arroz, gado e fruta para alimentação das suas tropas, cercadas
nos acampamentos»15.
O oitavo ano da luta armada de libertação nacional, 1970, foi «muito
rico em acontecimentos de uma grande importância» para o PAIGC,
assinala o relatório do partido de Janeiro de 1971. «O sinistro general
Spínola (antigo comandante da Guarda Nacional Republicana, o principal
instrumento da repressão armada fascista em Portugal; antigo comandante
de cavalaria motorizada em Angola), que substituiu o general Arnaldo
Schultz, transferido após quatro anos de vãs tentativas criminosas para
parar a marcha da nossa luta, chegara à nossa terra com a pretensão de
pôr fim à nossa luta durante o ano de 1969», regista o documento. E
sublinha: «Tendo sido forçado a constatar o tremendo fracasso dos seus
planos de guerra a todo o custo e seguindo possivelmente directrizes do
novo chefe do Governo português, Marcello Caetano, o novo governador
militar inaugurou a política do sorriso e do sangue, de concessões e
crimes abomináveis, de manobras de toda a espécie visando alimentar a
guerra pela guerra e desmobilizar a população e os combatentes, para
destruir as bases principais do nosso movimento». Mas esta política não
deu os resultados esperados por Spínola – apesar dos «actos criminosos
dos colonialistas, que reforçaram os bombardeamentos com “napalm” e os
assaltos terroristas contra as populações», referindo o PAIGC que, por
outro lado, «a liquidação de três comandantes do estado-maior e a morte
por crise cardíaca do comandante militar (…) privaram o governador dos
seus principais colaboradores, os quais eram os cabecilhas da guerra
psico-social»16.
«Nós não estamos à venda»
– A liquidação pelo PAIGC
de três majores do exército colonial é amplamente explicada no
relatório datado de Janeiro de 1971 e redigido por Amílcar Cabral, num
ponto sobre «as manobras políticas dos colonialistas portugueses: a
guerra psico-social». Escreve o líder guineense-caboverdeano: «Depois de
terem sido forçados a reconhecer, pela voz dos seus chefes principais,
que não podem fazer parar a nossa luta nem ganhar a sua suja guerra
colonial contra o nosso povo e a África, os criminosos colonialistas
portugueses adoptaram novas tácticas para tentar destruir o nosso
Partido. Começaram a empregar os métodos mais desprezíveis, os mais vis,
no âmbito de uma política que deixa ver claramente, cada dia mais, que
os colonialistas portugueses são verdadeiros “gangsters” ou bandidos sem
o menor escrúpulo, capazes de cometer os crimes mais bárbaros e de
utilizar as mentiras mais desavergonhadas. Tendo fracassado na tentativa
de criar a confusão na nossa luta, vendendo, pelo preço da traição, a
liberdade condicionada a um certo número de compatriotas presos, os
colonialistas portugueses recorreram a outros meios. Inventaram mentiras
a respeito de divisões no seio do Partido; escreveram cartas a alguns
dirigentes, prometendo-lhes dinheiro em quantidade, boa vida e honras;
tentaram explorar o oportunismo, a ambição e os baixos sentimentos,
convencidos de que os militantes e dirigentes do nosso Partido são como
os que os servem. Mas enganaram-se. As suas tentativas não tiveram por
resposta mais do que o desprezo e a repulsa por parte dos nossos
camaradas. (…) Então, na frente de Canchungo (centro-Oeste do país), os
colonialistas portugueses puseram em acção alguns dos seus principais
quadros militares especialistas da guerra psicológica, para tentarem
comprar alguns responsáveis dessa frente. Depois de terem estabelecido
alguns contactos, escrito cartas ridículas, dado presentes e feito
promessas de toda a espécie, os colonialistas sofreram uma derrota
vergonhosa: os nossos combatentes liquidaram os comandantes e outros
oficiais e soldados que pensavam poder comprar-nos. Este facto prova uma
vez mais que sabemos bem o que queremos e somos patriotas. Nós não
estamos à venda»17.
O relatório denuncia também outra táctica a que os colonialistas
recorreram para tentarem parar a luta de libertação: «dividir o nosso
povo e levar os africanos a lutarem contra os africanos», uma táctica
«velha e muito usada não só pelos colonialistas mas também pelas guerras
coloniais imperialistas»18. São apontados dois exemplos: os «congressos
de etnias» para «atiçar de novo os sentimentos tribais que já
extinguimos» e a campanha racista contra os cabo-verdianos, desenvolvida
através Rádio de Bissau.
Nesse balanço de 1970 sobre a luta na Guiné, é destacada ainda a
audiência que o Papa Paulo VI concedeu em Roma a Amílcar Cabral,
Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, dirigentes do PAIGC, do MPLA e da
Frelimo, e é referida a morte de quatro deputados portugueses «que
tinham vindo “visitar” o que resta ainda da colónia que era o nosso
país» e cujo helicóptero foi abatido pelos combatentes da liberdade.
Assassinar Amílcar Cabral e Sékou Touré
– O relatório do PAIGC
de Janeiro de 1971 dá grande relevo à «agressão imperialo-portuguesa»
contra a República da Guiné, que Amílcar Cabral classifica como «uma
vitória para o nosso povo e o nosso Partido e uma das mais vergonhosas
se não a mais vergonhosa derrota do colonialismo português ao longo da
sua história». Isto, reconhecendo que «apesar de estarmos habituados aos
actos de desespero e banditismo, aos crimes mais abomináveis da parte
dos colonialistas portugueses, não deixou de ser para nós uma certa
surpresa a agressão caracterizada que eles planearam, organizaram e
executaram contra a capital da República da Guiné» [Conakry]. E mais: «É
certo que os colonialistas portugueses já tinham feito muitas
provocações e agressões contra os povos irmãos das repúblicas da Guiné e
do Senegal. Cometeram inúmeros crimes contra as populações pacíficas
das fronteiras desses países, bombardearam e incendiaram aldeias,
roubaram e pilharam, a coberto da mentira de que temos bases nos
territórios vizinhos (…). Mas não resta dúvida de ultrapassaram tudo
isso ao perpetrarem a agressão de 22 de Novembro [de 1970] contra
Conakry, para a qual tiveram de utilizar os seus próprios barcos e
aviões, os seus oficiais e soldados, embora pintados de preto e diluídos
em algumas dezenas de mercenários africanos do exército colonial e de
renegados e criminosos originários da República da Guiné. Mostraram,
sim, mais claramente do que nunca, até onde vai o desprezo pelas leis e
pela moral internacionais do nosso tempo. Revelaram de maneira
categórica, à África e ao mundo, a natureza tresloucada e criminosa do
colonialismo português»19.
Amílcar Cabral revelou todos os pormenores da agressão militar (cuja
responsabilidade o governo fascista português negou veementemente…):
– A operação «Mar Verde» foi previamente autorizada por Marcello
Caetano e «seguramente, teve o consentimento dos aliados do Portugal
colonialista»;
– O general Spínola e o seu estado-maior, em especial o comodoro
Luciano Bastos, comandante da Marinha, elaboraram em pormenor os planos
da operação;
– «Estes planos foram submetidos pelo próprio governador militar à
aprovação do chefe do governo colonial português, a quem foi dada
garantia do sucesso da empresa;
– Marcello Caetano recebeu, duas semanas antes da operação, o
comodoro Luciano Bastos e o capitão Alpoim Galvão, «que foi designado
para comandar a agressão contra Conakry»;
– Foram empregados na acção cerca de 350 homens, entre fuzileiros
especiais, tropas de elite, «comandos africanos» e algumas dezenas de
originários da República da Guiné;
– As forças de agressão partiram da ilha de Soga, nos Bijagós, «onde
tinham sido treinados, durante vários meses, os renegados da República
da Guiné» e onde antes da partida receberam a visita de Spínola. Foram
transportadas em seis unidades navais da Marinha portuguesa. Estavam
prontos para intervir, se a operação tivesse tido êxito,
caças-bombardeiros do tipo Fiat G-91, aviões de transporte de
pára-quedistas e helicópteros Alouett III.
Os objectivos principais do desembarque em Conakry eram os
seguintes: assassinar o presidente Sékou Touré e outros dirigentes do
PDG e derrubar o regime guineense, colocando no poder «os renegados da
República da Guiné, alguns dos quais estavam aguardando nos barcos, ao
largo da capital, e outros nas prisões políticas»; assassinar o líder do
PAIGC e, eventualmente, outros dirigentes do partido; destruir todas as
instalações do PAIGC; e, subsidiariamente, libertar os prisioneiros de
guerra portugueses.
A agressão falhou
– as forças do PAIGC estacionadas
em Conakry, sobretudo, e as tropas guineenses leais a Sékou Touré
resistiram e rechaçaram os invasores.
Amílcar Cabral escreveu a propósito: «Já estamos habituados às
manobras e mentiras dos colonialistas portugueses, particularmente do
seu representante actual na nossa terra [Spínola]. Mas devemos confessar
que, no caso da agressão contra a República da Guiné, ultrapassaram
tudo quanto antes tinham inventado, para mentir descaradamente.
Desgraçado povo, o de Portugal, que tem dirigentes capazes de mentir
tanto, que são tão cobardes para tentarem, pelos meios mais baixos,
negar a sua responsabilidade provada numa acção que planearam
minuciosamente, organizaram e executaram. Mesmo em relação aos
prisioneiros, único resultado “positivo” da operação, inventaram toda
uma história para tentarem fugir à responsabilidade»20.
A cobra nunca deixa de ser cobra…
– Os documentos
do PAIGC nos anos seguintes repetem as denúncias dos crimes do
colonialismo português. Num relatório de Setembro de 1971, Amílcar
Cabral escreveu: «Na Guiné, o inimigo prossegue a sua política de
mentiras, de concessões demagógicas, de promessas de promoção dos
africanos, até mesmo duma “revolução social” (sic) que se fosse posta em
prática não apenas realizaria o programa socioeconómico do nosso
Partido mas ainda daria ao nosso povo um nível de vida bastante mais
elevado do que o do povo de Portugal. Para completar a farsa, o actual
chefe dos colonialistas portugueses – o sinistro general Spínola –
promete agora “levar o povo à autodeterminação sob a bandeira
portuguesa”. Adepto fervoroso das teorias do general Kaúlza de Arriaga,
que considera o negro com um ser não inteligente, o governador militar
da Guiné quer viver a fábula do homem do homem astuto que tinha
prometido ao rei ser capaz de ensinar um burro a ler. Tal como o homem
da fábula, está sem dúvida convencido de que com o passar do tempo ou o
burro morrerá, ou morrerá o rei, ou ele mesmo»21.
O relatório retoma a denúncia de «numerosas agressões contra as
populações de Casamance (Senegal) e da zona fronteiriça da República da
Guiné», pelas tropas coloniais portuguesas, e a acusação de que «os
colonialistas tentam, por todos os meios ao seu alcance, perpetrar os
crimes mais bárbaros contra as nossas populações, matar o nosso gado,
queimar as nossas colheitas, em resumo, desenvolver e intensificar a sua
actividade criminosa e terrorista que é o grande desmentido das suas
pretensões de promoção económico-social e política do nosso povo». São
referidos, uma vez mais, «intensos e contínuos bombardeamentos aéreos,
nomeadamente com “napalm”» e «assaltos com tropas hélio-transportadas
com o fim de destruir aldeias, queimar as colheitas e matar o gado»22.
Na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1972, Amílcar Cabral
referiu-se de novo à política da «Guiné melhor» de Spínola e à natureza
racista do colonialismo: «Os esforços tão desesperados quanto vãos que
faz o actual chefe dos colonialistas portugueses na Guiné, no sentido de
destruir o nosso Partido para liquidar a nossa luta, são a prova mais
clara de que os colonialistas portugueses não conhecem nem nunca
conhecerão a África, não compreendem nem podem compreender o sentido da
História e continuam convencidos da sua capacidade de, como dizem,
“enganar o preto”. Essa ignorância, incapacidade e convicção racista
caracterizaram sempre a acção dos colonialistas portugueses em África,
explicam todos os crimes que praticaram e praticam contra os povos
africanos, são a causa subjectiva das actuais guerras coloniais e vão
seguramente provocar a perda de Portugal, com graves consequências para o
povo português»23.
Ainda nesse ano de 1972, a 19 de Setembro, poucos meses antes de ser
assassinado, o líder do PAIGC dirigiu uma mensagem por ocasião do 16.º
aniversário do partido, na qual voltou a denunciar o «racismo primitivo e
doentio» dos colonialistas portugueses e do seu chefe, que falam da
«Guiné melhor» e prometem a «autodeterminação sob a bandeira
portuguesa», concessões ilusórias que «só enganam os tolos ou os
traidores»24. A cobra, por mais que mude de pele, não deixa de ser
cobra, adverte…
O maior crime dos colonialistas
– Num relatório dirigido à OUA e
cuja primeira redacção Amílcar Cabral concluiu poucas horas antes do
seu assassinato por agentes do colonialismo português, a 20 de Janeiro
de 1973, o líder do PAIGC abordou a situação da luta na Guiné e em Cabo
Verde. Escreveu: «A acção militar dos colonialistas, que fazem esforços
desesperados para levar os africanos a baterem-se contra os africanos,
caracteriza-se principalmente por bombardeamentos aéreos intensos e por
assaltos terroristas contra as regiões libertadas. O massacre das
populações (quando podem fazê-lo), a utilização do “napalm”, a
destruição das aldeias, do gado e das colheitas são as acções principais
do inimigo, que desenvolve planos para a utilização de produtos
tóxicos, herbicidas, desfolhantes, contra os nossos campos de cultura e
as nossas florestas25».
Dias antes, na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1973,
considerado o seu «testamento político», Amílcar Cabral anunciava já a
preparação da eleição da Assembleia Nacional Popular visando a
proclamação da existência do Estado da Guiné-Bissau, a criação de um
executivo para esse Estado e a promulgação da sua primeira Constituição:
«Da situação de colónia que dispõe de um movimento de libertação e cujo
povo já libertou em 10 anos de luta armada a maior parte do seu
território nacional, vamos passar à situação de um país que dispõe do
seu Estado e que tem uma parte do seu território nacional ocupado por
forças armadas estrageiras26».
De forma quase premonitória, o líder do PAIGC advertia que, apesar
de todos os avanços da luta, «não podemos esquecer nem um só momento que
estamos em guerra e que o inimigo principal do nosso povo e da África –
os colonialistas fascistas portugueses – alimentam ainda, com o
sacrifício e a miséria do seu povo e por meio de manobras as mais
pérfidas e de actos os mais bárbaros, a criminosa intenção e a vã
esperança de destruir o nosso Partido, liquidar a nossa luta e
recolonizar o nosso povo». Ainda que, assegurava, «nenhum crime, nenhuma
força, nenhuma manobra ou demagogia dos criminosos agressores
colonialistas portugueses será capaz de parar a marcha da História, a
marcha irreversível do nosso povo africano da Guiné e Cabo Verde para a
independência, a paz e o progresso verdadeiro a que tem direito»27.
Na verdade, esse «inimigo bárbaro que não tem o menor escrúpulo nas
suas acções criminosas» – o colonialismo português – assassinou Amílcar
Cabral nos primeiros dias de 1973, utilizando traidores africanos, a
soldo da PIDE, infiltrados no PAIGC.
Luís Cabral, irmão de Amílcar, um dos fundadores e principais
dirigentes do PAIGC – não se encontrava em Conakry na noite do crime e
da prisão de Aristides Pereira e outros dirigentes do partido –, num
testemunho oral publicado em 1995, confirmou aspectos principais sobre o
assassinato e a continuação da luta até à proclamação da independência
da Guiné-Bissau e ao derrubamento do fascismo em Portugal.
Recordou que os colonialistas portugueses fizeram várias tentativas
para destruir o PAIGC, até chegar ao ataque a Conakry, em Novembro de
1970, «operação de um comando especial orientado directamente pelo
general Spínola para atacar a capital de um país estrangeiro, derrubar o
governo e destruir o PAIGC», considerando que, depois do fracasso da
agressão, «a tentativa seguinte seria tentar destruir o PAIGC por
dentro»28.
De acordo com Luís Cabral, foi o que aconteceu: «Os homens que
assassinaram o Amílcar tiveram coragem de o fazer porque tinham o apoio
da PIDE. A luta chegou a um ponto em que o grande objectivo em Bissau,
das forças especiais, era destruir a unidade Guiné-Cabo Verde. E, então,
indivíduos que estiveram ligados ao partido, e até à sua direcção, e
estiveram presos uma data de tempo, como Inocêncio Kani, Aristides
Barbosa, foram postos em liberdade e depois mobilizados e mandados para
Conakry, já ligados à PIDE. O objectivo deles era mobilizar gente contra
a direcção do PAIGC, dizendo que o Governo português estava disposto a
conversar com os guineenses, que era uma decisão que estava tomada, mas
para isso os guinenses tinham que se separar dos cabo-verdianos, porque
com Cabo Verde não se podia fazer nada, a NATO não ia aceitar que o
PAIGC estivesse em Cabo Verde (…)»29.
Os homens que assassinaram Amílcar Cabral «foram quase todos
fuzilados». Esses homens «foram mandados pela PIDE, eles disseram
isso»30, confirmou Luís Cabral, referindo também cumplicidades de certos
dirigentes da República da Guiné com os criminosos.
Depois do assassinato de Amílcar Cabral – os colonialistas chegaram
então a proclamar o fim da guerra na Guiné –, o PAIGC intensificou a
luta armada em todas as frentes, equipou-se com novas armas (mandou
formar pilotos de «Mig» na União Soviética e recebeu mísseis Strela, de
fabrico soviético, entregues pela URSS ainda em Janeiro de 1973, que
puseram fim à impunidade aérea dos colonialistas), realizou o seu II
Congresso nas regiões libertadas do Leste, elegeu por unanimidade
Aristides Pereira como secretário-geral, e, a 24 de Setembro de 1973,
reuniu no Boé a primeira Assembleia Nacional Popular da história do país
e proclamou o Estado da Guiné-Bissau, reconhecido de imediato por cerca
de 80 países. Em 25 de Abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas
derrubou o regime fascista em Portugal, entre Maio e Agosto
realizaram-se conversações em Londres e Argel entre delegações do PAIGC e
do novo Governo de Lisboa e a 10 de Setembro a independência de jure da
Guiné-Bissau foi reconhecida por Portugal.
Não é necessário esperar que um dia o WikiLeaks divulgue documentos
secretos da guerra que Portugal travou em Angola, Guiné e Moçambique
entre 1961 e 1974 para se conhecer melhor as barbaridades do
colonialismo português.
Para o caso da Guiné-Bissau, basta recorrer a textos da autoria de
Amílcar Cabral (haverá imensos outros documentos interessantes
espalhados pelos arquivos e fundações portuguesas…), muitos deles
publicados, para se conhecer a impressionante lista de crimes que o
PAIGC atribuiu, durante 11 anos da sua luta armada de libertação
nacional (1963-1974), ao colonialismo português – discriminação racial,
fomento do racismo e do tribalismo, prisões e torturas, massacres,
bombardeamentos massivos de populações civis (com bombas de
fragmentação, «napalm» e fósforo branco), utilização de desfolhantes e
herbicidas, destruição de colheitas, roubo de gado e, claro, agressão
militar a um país soberano e assassinato de dirigentes políticos.
E foram crimes em vão. Portugal foi derrotado militarmente na Guiné.
Os guerrilheiros do «mato» acabaram por vencer os generais formados nas
academias ocidentais, mais as suas numerosas tropas bem equipadas com
aviões, tanques e canhões fornecidos pelos aliados da NATO.
Apesar dos indescritíveis sacrifícios da guerra, guineenses e
cabo-verdianos que lutaram nas fileiras do PAIGC podem hoje orgulhar-se
não só da conquista da independência nacional das suas pátrias mas
também de terem contribuído decisivamente, com a sua luta, para a
liquidação do colonial-fascismo de Salazar/Caetano e a libertação do
povo português.
Combatendo os bárbaros
Tzvetan Todorov é um humanista à moda
antiga, interessado no amplo espectro do conhecimento humano entendido
como um caminho para a integridade e o saber. Linguista, filósofo,
historiador, crítico literário, interessado tanto na semiótica como nas
fraturas do século XX, este homem nascido na Bulgária e emigrado a
Paris aos 24 anos, autor de livros fundamentais em praticamente todos os
terrenos pelos quais incursionou, é um impenitente devoto da clareza do
pensamento como arma contra a intolerância, a incompreensão e o
totalitarismo em todas as suas formas. De passagem por Buenos Aires,
convidado pela Fundação Osde para fazer algumas palestras, Todorov
concedeu entrevista a Martín Granovsky, do Página/12. Na conversa, entre
outras coisas, aponta as raízes fundamentalistas do ultraliberalismo e
do populismo conservador que vem crescendo na Europa e nos EUA.
Martín Granovsky - Página/12 via Carta Maior
Ele
é alto, grisalho, tem olhos curiosos e um aperto de mão forte. Seu
francês é perfeito. Tzvetan Todorov nasceu na Bulgária em 1939, mas vive
em Paris desde 1963. Foi para a França para ficar um ano e por lá
ficou. Estudou com Roland Barthes. Escreveu, entre outros livros, Teoria
dos Gêneros Literários, Os Aventureiros do Absoluto, A Conquista da
América e A Experiência Totalitária. Veio fazer conferências na
Argentina e aceitou conversar com Radar (suplemento do jornal
Página/12). A entrevista ocorreu na manhã de quarta-feira, quando já se
sabia que os extremistas do Tea Party tinham sido o coração da vitória
republicana nos Estados Unidos.
Você escreveu que o ultraliberalismo é uma forma fundamentalista
Sim, eu defendo isso.
Eu perguntava sobre a força do movimento Tea Party nos Estados Unidos.
Bom, na Europa conhecemos o que é o populismo.
Na América Latina também, mas suspeito que o termo é usado para nomear coisas distintas. Aqui a palavra é utilizada para sintetizar – ou criticar, dependendo do caso – experiências de centroesquerda com partidos fracos e líderes fortes.
Eu sei. Por isso me refiro ao caso europeu, que é diferente. Na Europa, é cada vez mais decisivo o voto populista de extrema direita. Um voto que cresce porque tem êxito em focalizar o inimigo de cada povo no estrangeiro diferente.
Agora o grande tema na França é a expulsão dos ciganos para a Romênia. Você se refere a isso?
É um tema grave, mas não é o ponto central na estigmatização. Em geral, a focalização sobre o estrangeiro que mencionava se refere ao diferente que, com frequência aliás, professa a fé islâmica. E isso influi em todos os governos.
Mas a extrema direita populista a que você se refere não chegou ao governo.
Sim, mas a direita de sempre, a direita a que estamos habituados e conhecemos bem, não pode governar se não se apóia na extrema direita. O poder necessita desse apoio.
Na Suécia, os conservadores ganharam mas, pela primeira vez, a extrema direita teve 10% dos votos e ganhou representação parlamentar.
Na Dinamarca e na Holanda a situação é ainda pior. Nesses dois países a questão do apoio da extrema direita à direita tradicional não é somente social, o que por si já é um problema grave, mas também de conformação de maiorias parlamentares. Os conservadores da Dinamarca e da Holanda precisam do voto da extrema direita no Parlamento. Por isso, os governos de direita aceitam muitas posições da extrema direita.
E na Itália?
Ocorre algo parecido com a Liga do Norte, que também tem uma posição ativa contra o estrangeiro diferente e pior ainda se ele tiver alguma relação com o Islã. A Liga do Norte está no governo associada com Silvio Berlusconi.
Por que você assinala uma diferença em relação à situação na França?
Porque tem outros matizes. Nicolas Sarcozy adota frequentemente temas e obsessões da extrema direita. Mas não exclusivamente dela. É um político pragmático preocupado sobretudo em conservar-se no poder. Assim, como coloca hoje a questão dos ciganos, no início de seu mandato adotou inclusive alguns temas da esquerda.
O movimento Tea Party nos Estados Unidos também se inscreve nessas correntes que você identifica na Europa?
Nos Estados Unidos, sobretudo em meio à crise, há um movimento contra os imigrantes. Mas esse não é o tema fundamental do Tea Party. Como a economia vai muito mal, a crítica se dirige ao governo de Barack Obama e tem raízes próprias. Nos Estados Unidos há uma espécie de filosofia de vida ultraindividualista. Essa filosofia diz que o ser humano é responsável pelo destino de sua vida. Mas essa filosofia de vida agrega a idéia segundo a qual o êxito econômico é uma medida suficiente para medir uma vida. Uma posição, evidentemente, fantasiosa.
Por que fantasiosa? Todos seus livros falam das responsabilidades do ser humano e do indivíduo.
Sim, mas não em estado de solidão. Eu estou profundamente convencido de que os seres humanos têm necessidade dos outros. Defender a liberdade ou o direito do indivíduo é um valor positivo. É preciso proteger os indivíduos da violência dos outros indivíduos e do Estado. Mas o indivíduo depende dos demais. A dimensão social do ser humano não pode – não deve – ser eliminada. A economia não pode ser um objetivo último, mas sim um meio.
Você critica a centralidade da noção de êxito econômico na concepção que definiu como “ultraindividualista”. Se o êxito fosse um valor a levar em conta, coisa que já seria discutível, qual seria sua concepção de êxito?
Eu tampouco me guio pelo êxito como objetivo da vida. Mas se, como ser humano, ao final de minha vida me perguntarem o que é o êxito, responderia que é ter vivido uma vida na qual vivi, amei, respeitei e fui amado pelos outros que amei e respeitei. Desculpe se uso tanto a palavra “vida” ou o verbo “viver”, mas prefiro não buscar sinônimos ou outras formas de dizê-lo. O êxito de uma vida inteira, de uma vida completa, é o êxito nas relações humanas. Uma vida sem amor terá sido desastrosa.
Li que você critica também as vidas baseadas somente no intelecto. No idioma argentino falaríamos de uma vida sem por o corpo.
Sim. E o mesmo se aplica a uma vida vivida tendo o êxito econômico como fim último. Ainda que seja redundante dizê-lo, seria uma vida que exclui a vida humana.
O Tea Party o impressiona?
Para além de fenômenos como os da Dinamarca e Holanda, e, de certo modo, da Itália, a tradição europeia é diferente. Na Europa, durante muitos anos todos os governos, de esquerda ou de direita, seguiram um modelo baseado no Estado de bem-estar social, o Welfare State. Esse modelo se fundamenta na solidariedade de toda a população, que se expressa, em última instância, em medidas adotadas a partir do Estado. Falo, por exemplo, da progressividade dos impostos. Quem ganha mais, paga mais. A redistribuição de renda é o princípio constitutivo do Estado. A tradição que aparece com o Tea Party alimenta-se, na origem, da conquista de um espaço vital. É um híbrido que combina a ideologia do xerife e o espaço do pregador.
O que o pregador agrega a essa ideologia?
A certeza de que, se eu sigo buscando meu espaço vital e o êxito, tendo um resultado econômico com fim último, tenho razão porque Deus me disse isso.
Estou predestinado como indivíduo.
Sim. Por isso há um caráter religioso de tipo fundamentalista muito importante. É importante destacar que nessa busca...
A busca parece uma batalha.
E é mesmo. E nessa batalha reaparecem inclusive temas de um passado recente. Obama é acusado até de instaurar o Gulag. Seria, para eles, um comunista.
Mas Obama não é sequer um radical, um homem de esquerda em termos norteamericanos.
Não, claro. É um político do mainstream, também no vocabulário norteamericano. Um político normal que está dentro do sistema político. Mas passa a ser um comunista, na crítica do Tea Party, porque parece querer regular a vida dos indivíduos. Leve em conta que, quando o Tea Party e os legisladores que recebem sua influência criticam a cobertura médica obrigatória votada por iniciativa de Obama este ano, acusam o presidente norteamericano de estar metendo-se em suas vidas. O raciocínio é assim: “Seu eu trabalhei e com meu esforço consegui um bom seguro e uma boa cobertura médica, que me permitirá uma boa aposentadoria privada, por que devo trabalhar para os que não trabalharam e, assim, não alcançaram o meu êxito?”. Falta a solidariedade elementar e isso me parece deplorável.
“Deplorável” é uma palavra forte.
Certamente. Essa forma de pensar procede, antropologicamente, de uma ignorância da necessidade do outro. E o paradoxal é que também tem escassas possibilidades de gerar as condições para o êxito econômico individual da classe média. Vou explicar melhor minha lógica de raciocínio para que não fique parecendo um simples slogan. A sociedade fica desequilibrada. Se fica desequilibrada, perde a força para combater a extensão do problema da droga ou do desemprego. Para solucionar temas dessa magnitude é necessário contar com toda a população. Não é possível fazê-lo apenas com uma parte dela. Como se vê, o Tea Party tem raízes em uma ideologia vigente em setores da sociedade norteamericana desde há muito tempo, mas seus efeitos concretos aparecem hoje. A leitura é que Obama e seu projeto se chocaram com o poder econômico.
E esse poder derrotou-o nestas eleições de metade de mandato.
As conclusões são impactantes. O homem mais poderoso do planeta, que é o presidente dos Estados Unidos, é impotente contra os interesses do grande capital. A mensagem é que as instituições não permitem sequer que um presidente legitimamente eleito adote uma política distinta, ainda que seja levemente distinta, daquela que eles defendem. A recente decisão da Corte Suprema que permite às empresas fazer contribuições à campanha eleitoral representa um freio aos políticos democráticos. Neste ambiente ultraliberal a democracia corre perigo.
Tanto assim?
Efetivamente. O poder se expressa por meio das eleições. Em 2008 se expressou votando em Obama. Mas na prática o povo não pode governar porque isso não é permitido pelos indivíduos mais poderosos. Se isso for verdade e se essa tendência se aprofundar, estaremos assistindo a uma mutação radical. Tão radical como a Revolução Francesa que, em 1879, passou de uma monarquia hereditária para uma assembleia eleita pelos cidadãos. Nós que respeitamos a integridade do indivíduo – e não falo agora, como você advertirá, do ultraindividualismo – devemos nos preocupar quando o domínio de alguns poucos políticos poderosos substitui a vontade dos indivíduos.
Como a substituem?
Usam, entre outras coisas, duas ferramentas. O lobby e o controle dos meios de comunicação. Um exemplo quase caricato ocorre é a Itália, onde Bersluconi pessoalmente é dono da maior cadeia de televisão privada e, como presidente do conselho de ministros, controla os demais sinais. Ao mesmo tempo promove um ultraliberalismo combinando o uso dos meios de comunicação mais poderosos com pressões sobre a Justiça. Por isso é essencial manter o pluralismo na imprensa. É preciso evitar que seja controlada por um pequeno grupo de indivíduos. De oligarcas, como se diz na Rússia. Na França, Sarkozy ocupou-se pessoalmente de que o aporte de capitais de que necessitava o jornal Le Monde não viesse de empresários que não eram simpáticos a ele. Nos Estados Unidos, muitas emissoras de rádio e canais de televisão como a Fox repetem dia e noite uma mensagem populista.
Populista?
Sim. Já sei o que vai me dizer. Sei que a palavra “populista” tem uma acepção diferente na Argentina. Refiro-me, por exemplo, às mensagens do líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen. Em que consiste seu populismo? No fato de que encontra fórmulas tão falsas como eficazes de chegar ao povo. Diz: “Na França, há três milhões de desempregados e três milhões de imigrantes. E eu vou lhes dizer como se resolve o problema: colocando pra fora os imigrantes”. Assim age o populismo ultraconservador. Se Obama aumenta impostos para os setores mais poderosos, dirão que que o aumento de impostos afeta a classe média e repetirão isso até a exaustão.
Mas não é só uma questão de propaganda, não? Ou, em todo caso, essa propaganda simplificadora se baseia no medo provocado pelo desemprego e a crise, ou pela falta de políticas mais incisivas, ao estilo de Franklin Delano Roosevelt em 1933.
E, além disso, a população não está bem informada e não costuma entrar em raciocínios teóricos complexos. A experiência cotidiana da França é que aumentam os preços e que, ao mesmo tempo, o chefe de governo fala bem. E um senhor Le Pen diz: “Os ciganos ficaram com o teu dinheiro”. Lembremos que, em 1933, Adolf Hitler foi eleito por sufrágio universal. O populismo, tal como descrevi, apela a um raciocínio simplificado, rápido, compreensível para todos. E digo isso não como anjo. Não vivemos em um mundo habitado por anjos. Tampouco por demônios, é claro. Eu me incluo nisso. Ou seja, gente que está informada e lê os jornais ou até os escreve. E incluo você também, se me permite.
Certamente. Qualquer explicação baseada na lógica anjo-demônio é de fanáticos. Professor, como jornalista e como leitor sempre me chamou atenção uma frase sua: que fazer-se entender, para um intelectual, é um tema ético. Acredito que a disse ironizando Jacques Lacan. Mas, para além de Lacan, por que disse “ético” e não “estético”?
Porque a ética se funda na relação com os demais seres humanos. Implica um respeito. E então não se deve usar meios indignos. A sedução está bem e se justifica quando se busca despertar a simpatia de um indivíduo. É preciso mostrar-se eloquente, simpático, apelar a todos os fogos de artifício de que se disponha. Isso vale para um homem, para uma mulher, para qualquer um. Mas no espaço público considero que praticar a demagogia populista é um tipo de discurso obscuro com aparência de profundidade significa transgredir um contrato.
Que contrato?
O que se estabelece entre interlocutores, entre pessoas. Por isso é um contrato ético.
Tradução: Katarina Peixoto
Você escreveu que o ultraliberalismo é uma forma fundamentalista
Sim, eu defendo isso.
Eu perguntava sobre a força do movimento Tea Party nos Estados Unidos.
Bom, na Europa conhecemos o que é o populismo.
Na América Latina também, mas suspeito que o termo é usado para nomear coisas distintas. Aqui a palavra é utilizada para sintetizar – ou criticar, dependendo do caso – experiências de centroesquerda com partidos fracos e líderes fortes.
Eu sei. Por isso me refiro ao caso europeu, que é diferente. Na Europa, é cada vez mais decisivo o voto populista de extrema direita. Um voto que cresce porque tem êxito em focalizar o inimigo de cada povo no estrangeiro diferente.
Agora o grande tema na França é a expulsão dos ciganos para a Romênia. Você se refere a isso?
É um tema grave, mas não é o ponto central na estigmatização. Em geral, a focalização sobre o estrangeiro que mencionava se refere ao diferente que, com frequência aliás, professa a fé islâmica. E isso influi em todos os governos.
Mas a extrema direita populista a que você se refere não chegou ao governo.
Sim, mas a direita de sempre, a direita a que estamos habituados e conhecemos bem, não pode governar se não se apóia na extrema direita. O poder necessita desse apoio.
Na Suécia, os conservadores ganharam mas, pela primeira vez, a extrema direita teve 10% dos votos e ganhou representação parlamentar.
Na Dinamarca e na Holanda a situação é ainda pior. Nesses dois países a questão do apoio da extrema direita à direita tradicional não é somente social, o que por si já é um problema grave, mas também de conformação de maiorias parlamentares. Os conservadores da Dinamarca e da Holanda precisam do voto da extrema direita no Parlamento. Por isso, os governos de direita aceitam muitas posições da extrema direita.
E na Itália?
Ocorre algo parecido com a Liga do Norte, que também tem uma posição ativa contra o estrangeiro diferente e pior ainda se ele tiver alguma relação com o Islã. A Liga do Norte está no governo associada com Silvio Berlusconi.
Por que você assinala uma diferença em relação à situação na França?
Porque tem outros matizes. Nicolas Sarcozy adota frequentemente temas e obsessões da extrema direita. Mas não exclusivamente dela. É um político pragmático preocupado sobretudo em conservar-se no poder. Assim, como coloca hoje a questão dos ciganos, no início de seu mandato adotou inclusive alguns temas da esquerda.
O movimento Tea Party nos Estados Unidos também se inscreve nessas correntes que você identifica na Europa?
Nos Estados Unidos, sobretudo em meio à crise, há um movimento contra os imigrantes. Mas esse não é o tema fundamental do Tea Party. Como a economia vai muito mal, a crítica se dirige ao governo de Barack Obama e tem raízes próprias. Nos Estados Unidos há uma espécie de filosofia de vida ultraindividualista. Essa filosofia diz que o ser humano é responsável pelo destino de sua vida. Mas essa filosofia de vida agrega a idéia segundo a qual o êxito econômico é uma medida suficiente para medir uma vida. Uma posição, evidentemente, fantasiosa.
Por que fantasiosa? Todos seus livros falam das responsabilidades do ser humano e do indivíduo.
Sim, mas não em estado de solidão. Eu estou profundamente convencido de que os seres humanos têm necessidade dos outros. Defender a liberdade ou o direito do indivíduo é um valor positivo. É preciso proteger os indivíduos da violência dos outros indivíduos e do Estado. Mas o indivíduo depende dos demais. A dimensão social do ser humano não pode – não deve – ser eliminada. A economia não pode ser um objetivo último, mas sim um meio.
Você critica a centralidade da noção de êxito econômico na concepção que definiu como “ultraindividualista”. Se o êxito fosse um valor a levar em conta, coisa que já seria discutível, qual seria sua concepção de êxito?
Eu tampouco me guio pelo êxito como objetivo da vida. Mas se, como ser humano, ao final de minha vida me perguntarem o que é o êxito, responderia que é ter vivido uma vida na qual vivi, amei, respeitei e fui amado pelos outros que amei e respeitei. Desculpe se uso tanto a palavra “vida” ou o verbo “viver”, mas prefiro não buscar sinônimos ou outras formas de dizê-lo. O êxito de uma vida inteira, de uma vida completa, é o êxito nas relações humanas. Uma vida sem amor terá sido desastrosa.
Li que você critica também as vidas baseadas somente no intelecto. No idioma argentino falaríamos de uma vida sem por o corpo.
Sim. E o mesmo se aplica a uma vida vivida tendo o êxito econômico como fim último. Ainda que seja redundante dizê-lo, seria uma vida que exclui a vida humana.
O Tea Party o impressiona?
Para além de fenômenos como os da Dinamarca e Holanda, e, de certo modo, da Itália, a tradição europeia é diferente. Na Europa, durante muitos anos todos os governos, de esquerda ou de direita, seguiram um modelo baseado no Estado de bem-estar social, o Welfare State. Esse modelo se fundamenta na solidariedade de toda a população, que se expressa, em última instância, em medidas adotadas a partir do Estado. Falo, por exemplo, da progressividade dos impostos. Quem ganha mais, paga mais. A redistribuição de renda é o princípio constitutivo do Estado. A tradição que aparece com o Tea Party alimenta-se, na origem, da conquista de um espaço vital. É um híbrido que combina a ideologia do xerife e o espaço do pregador.
O que o pregador agrega a essa ideologia?
A certeza de que, se eu sigo buscando meu espaço vital e o êxito, tendo um resultado econômico com fim último, tenho razão porque Deus me disse isso.
Estou predestinado como indivíduo.
Sim. Por isso há um caráter religioso de tipo fundamentalista muito importante. É importante destacar que nessa busca...
A busca parece uma batalha.
E é mesmo. E nessa batalha reaparecem inclusive temas de um passado recente. Obama é acusado até de instaurar o Gulag. Seria, para eles, um comunista.
Mas Obama não é sequer um radical, um homem de esquerda em termos norteamericanos.
Não, claro. É um político do mainstream, também no vocabulário norteamericano. Um político normal que está dentro do sistema político. Mas passa a ser um comunista, na crítica do Tea Party, porque parece querer regular a vida dos indivíduos. Leve em conta que, quando o Tea Party e os legisladores que recebem sua influência criticam a cobertura médica obrigatória votada por iniciativa de Obama este ano, acusam o presidente norteamericano de estar metendo-se em suas vidas. O raciocínio é assim: “Seu eu trabalhei e com meu esforço consegui um bom seguro e uma boa cobertura médica, que me permitirá uma boa aposentadoria privada, por que devo trabalhar para os que não trabalharam e, assim, não alcançaram o meu êxito?”. Falta a solidariedade elementar e isso me parece deplorável.
“Deplorável” é uma palavra forte.
Certamente. Essa forma de pensar procede, antropologicamente, de uma ignorância da necessidade do outro. E o paradoxal é que também tem escassas possibilidades de gerar as condições para o êxito econômico individual da classe média. Vou explicar melhor minha lógica de raciocínio para que não fique parecendo um simples slogan. A sociedade fica desequilibrada. Se fica desequilibrada, perde a força para combater a extensão do problema da droga ou do desemprego. Para solucionar temas dessa magnitude é necessário contar com toda a população. Não é possível fazê-lo apenas com uma parte dela. Como se vê, o Tea Party tem raízes em uma ideologia vigente em setores da sociedade norteamericana desde há muito tempo, mas seus efeitos concretos aparecem hoje. A leitura é que Obama e seu projeto se chocaram com o poder econômico.
E esse poder derrotou-o nestas eleições de metade de mandato.
As conclusões são impactantes. O homem mais poderoso do planeta, que é o presidente dos Estados Unidos, é impotente contra os interesses do grande capital. A mensagem é que as instituições não permitem sequer que um presidente legitimamente eleito adote uma política distinta, ainda que seja levemente distinta, daquela que eles defendem. A recente decisão da Corte Suprema que permite às empresas fazer contribuições à campanha eleitoral representa um freio aos políticos democráticos. Neste ambiente ultraliberal a democracia corre perigo.
Tanto assim?
Efetivamente. O poder se expressa por meio das eleições. Em 2008 se expressou votando em Obama. Mas na prática o povo não pode governar porque isso não é permitido pelos indivíduos mais poderosos. Se isso for verdade e se essa tendência se aprofundar, estaremos assistindo a uma mutação radical. Tão radical como a Revolução Francesa que, em 1879, passou de uma monarquia hereditária para uma assembleia eleita pelos cidadãos. Nós que respeitamos a integridade do indivíduo – e não falo agora, como você advertirá, do ultraindividualismo – devemos nos preocupar quando o domínio de alguns poucos políticos poderosos substitui a vontade dos indivíduos.
Como a substituem?
Usam, entre outras coisas, duas ferramentas. O lobby e o controle dos meios de comunicação. Um exemplo quase caricato ocorre é a Itália, onde Bersluconi pessoalmente é dono da maior cadeia de televisão privada e, como presidente do conselho de ministros, controla os demais sinais. Ao mesmo tempo promove um ultraliberalismo combinando o uso dos meios de comunicação mais poderosos com pressões sobre a Justiça. Por isso é essencial manter o pluralismo na imprensa. É preciso evitar que seja controlada por um pequeno grupo de indivíduos. De oligarcas, como se diz na Rússia. Na França, Sarkozy ocupou-se pessoalmente de que o aporte de capitais de que necessitava o jornal Le Monde não viesse de empresários que não eram simpáticos a ele. Nos Estados Unidos, muitas emissoras de rádio e canais de televisão como a Fox repetem dia e noite uma mensagem populista.
Populista?
Sim. Já sei o que vai me dizer. Sei que a palavra “populista” tem uma acepção diferente na Argentina. Refiro-me, por exemplo, às mensagens do líder da extrema-direita francesa Jean Marie Le Pen. Em que consiste seu populismo? No fato de que encontra fórmulas tão falsas como eficazes de chegar ao povo. Diz: “Na França, há três milhões de desempregados e três milhões de imigrantes. E eu vou lhes dizer como se resolve o problema: colocando pra fora os imigrantes”. Assim age o populismo ultraconservador. Se Obama aumenta impostos para os setores mais poderosos, dirão que que o aumento de impostos afeta a classe média e repetirão isso até a exaustão.
Mas não é só uma questão de propaganda, não? Ou, em todo caso, essa propaganda simplificadora se baseia no medo provocado pelo desemprego e a crise, ou pela falta de políticas mais incisivas, ao estilo de Franklin Delano Roosevelt em 1933.
E, além disso, a população não está bem informada e não costuma entrar em raciocínios teóricos complexos. A experiência cotidiana da França é que aumentam os preços e que, ao mesmo tempo, o chefe de governo fala bem. E um senhor Le Pen diz: “Os ciganos ficaram com o teu dinheiro”. Lembremos que, em 1933, Adolf Hitler foi eleito por sufrágio universal. O populismo, tal como descrevi, apela a um raciocínio simplificado, rápido, compreensível para todos. E digo isso não como anjo. Não vivemos em um mundo habitado por anjos. Tampouco por demônios, é claro. Eu me incluo nisso. Ou seja, gente que está informada e lê os jornais ou até os escreve. E incluo você também, se me permite.
Certamente. Qualquer explicação baseada na lógica anjo-demônio é de fanáticos. Professor, como jornalista e como leitor sempre me chamou atenção uma frase sua: que fazer-se entender, para um intelectual, é um tema ético. Acredito que a disse ironizando Jacques Lacan. Mas, para além de Lacan, por que disse “ético” e não “estético”?
Porque a ética se funda na relação com os demais seres humanos. Implica um respeito. E então não se deve usar meios indignos. A sedução está bem e se justifica quando se busca despertar a simpatia de um indivíduo. É preciso mostrar-se eloquente, simpático, apelar a todos os fogos de artifício de que se disponha. Isso vale para um homem, para uma mulher, para qualquer um. Mas no espaço público considero que praticar a demagogia populista é um tipo de discurso obscuro com aparência de profundidade significa transgredir um contrato.
Que contrato?
O que se estabelece entre interlocutores, entre pessoas. Por isso é um contrato ético.
Tradução: Katarina Peixoto
domingo, 7 de novembro de 2010
Fiódor Dostoiévski
Fiódor Mijailovich
Dostoiévski nasceu na cidade de Moscou em 30 de novembro de 1821. Seu
pai, Mijail Andreievich, era médico militar, e no ano do nascimento de
Dostoiévski deixou o exército e foi destinado a um hospital da cidade. A
família viveu nos aposentos que o hospital destinava aos familiares dos
médicos e, por isso, Dostoiévski e seus irmãos cresceram afastados e
não podiam brincar com as demais crianças. Sua mãe, María Fiodorovna,
teve seis filhos, mas sempre demonstrou maior afeição ao frágil
Dostoiévski. Se seu pai foi um homem rígido, autoritário, avaro,
alcoolico, ela, sua mãe, era quieta, doce e se resignava diante dos
ataques verbais do marido. Como é natural, Dostoiévski tomou partido em
defesa da mãe e sem saber como, dia a dia crescia um sentimento de
aversão pela figura do pai.
Em
1837, Dostoiévski teve o primeiro vislumbre do que iria persegui-lo
durante toda a vida: morre sua mãe e seu pai se entrega à bebida de
maneira quase frenética, o que agravou a cobiça que sofreria em sua
juventude. Foi então que ele e seu irmão Mijail, poucos anos mais velho,
foram enviados à São Petersburgo para ingressar na Escola de
Engenheiros Militares.
Mijail
Andreievich sempre foi um irmão pedante e cruel. Descarregava sua raiva
em seus camponeses, além de chicoteá-los e humilhá-los, o que
desconcertava os servos, que não tinham como escapar das agressões de
seu patrão. Ninguém sabia o que o incomodava mais. Se os servos não
faziam reverências, chicoteava-os. Se tiravam o chapéu, também
chicoteava-os, porque dizia que tiravam o chapéu para ficarem doentes e
não trabalharem depois. Segundo se conta, esta situação chegou a tal
ponto, que os camponeses se organizaram e o assassinaram em uma
emboscada: o amarraram, colocaram álcool em sua boca e o amordaçaram
para que ficasse sufocado. Logo um deles pegou em suas genitais e
apertou até sua morte. Outra história narra que
Mijail morreu
de causas naturais, mas que um fazendeiro vizinho inventou sua própria
história a cerca da rebelião, de modo a rebaixar o preço do imóvel que
era de Mijail. Independente de qual seja a história verdadeira,
Dostoiévski ficou sabendo da morte de seu irmão quando estava na Escola
de Engenheiros. No mês anterior à morte de seu irmão, havia escrito uma
carta à seu pai pedindo, em tom irritado, mais dinheiro. Os dias foram
passando sem nenhuma resposta de seu pai, o que irritou ainda mais
Dostoiévski, que passou a amaldiçoá-lo pela sua avareza e incompreensão.
Quando soube da morte de seu irmão, que o crime praticado pelos mujiks
recaia sobre ele, e segundo contou em várias entrevistas, desde o
princípio assumiu que deveria limpar esse assassinato, muito embora ele
não houvesse cometido crime algum, como se por um dever, inteligível
apenas para ele, tinha absorvido as responsabilidades dos verdadeiros
assassinos. Sigmund Freud analisou estes trechos para escrever seu
famoso artigo Dostoiévski e o parricídio.
Um
possível traço deste misterioso sentimento de culpa pode ser encontrado
na insistência com que Dostoiévski cultiva a alegria de seus
personagens antes de castigá-los com uma desgraça inesperada e injusta.
Elege o dia em que estão em plena forma, em que florescem suas
esperanças, para desfechar o golpe de misericórdia. Em Memórias do Subsolo,
por exemplo, o protagonista faz você se perguntar "por que alguém iria
querer fazer de seus defeitos, a fonte de orgulho e vaidade?". "Quando
mais capaz me sentia de compreender os pormenores do todo o belo e o
sublime", afirma em uma passagem, "perdia toda consciência e começava a
cometer atos reprováveis... atos que todo mundo comete, mas eu sabia que
cometeria no instante em que mais claramente compreendia que não devia
cometê-lo. Quando mais admirava o belo, mais profundamente me afundava
na lama e mais se desenvolvia em mim a faculdade de enlamear-me". Em Os irmãos Karamázov,
para citar outro exemplo, é em pleno delírio amoroso que prendem
Dimitri. Ele é acusado de assassinar seu pai, e por mais que proteste
contra a comissão investigadora, todas as provas parecem estar contra
ele.
Em
1843, Fiódor Mijailovich Dostoiévski acaba seus estudos, adquire o grau
militar de sub-tenente e se incorpora à Direção Geral de Engenheiros,
em São Petersburgo. Durante esses anos traduziria Eugenia Grandet, de
Honoré de Balzac, como mostra de admiração pelo grande escritor francês,
que havia passado uma temporada em São Petersburgo. No ano de 1844
deixa o exército e começa a escrever Gente Pobre, novela
que lhe dará seus primeiros êxitos de crítica. Nesta mesma época começa
a contrair algumas dívidas e a sofrer seus primeiros ataques
epilépticos. As novelas que escreve posteriormente Niétochka Niezvânova, Noites Brancas, O marido ciumento e A mulher de outro, não
têm o êxito da primeira e recebem críticas muito negativas, o que deixa
Dostoiévski em profunda depressão. É nesta época que entrará em contato
com os chamados grupos "radicais" ou "utópicos", que fundamentam suas
ideias na busca pela liberdade do homem.
A
polícia czarista vigiava de perto esses grupos "radicais", e em 23 de
abril de 1849, o jovem Dostoiévski é preso e encarcerado por conspiração
contra o Czar Nicolau I. No dia 16 de novembro do mesmo ano é condenado
à morte por atividades anti-governamentais e vinculação ao grupo
"radical" chamado Círculo Petrachevski. Em 22 de dezembro, junto com
outros presos é levado ao pátio da prisão para ser fuzilado. Não sabia o
que estava acontecendo, um medo agudo apertou seu estômago. Por um
instante que não se pode medir em minutos, Dostoiévski teve que ficar de
frente ao pelotão e escutar os disparos com os olhos vendados. Pensava
que o disparo seguinte seria para ele, mas sua pena havia sido trocada
por cinco anos de trabalhos forçados em Omsk, Sibéria, e o comandante
queria apenas amedrontá-lo. É possível imaginá-lo alí, frente ao pelotão
de fuzilamento, com os olhos vendados, evocando a morte de seu pai.
Dostoiévski
foi solto no ano de 1854 e se reincorpora ao exército. A partir de sua
liberdade, abandonará seus pensamentos radicais e se converterá em um
homem conservador e extremamente religioso. Por essa época começa a
escrever Memórias da casa dos mortos, baseando-se em suas experiências como prisioneiro.
Traduzido a partir de revistadelauniversidad.unam.mx
Principais obras
1846 - Bednye lyudi (Бедные люди); Em Português: Gente Pobre
1846 - Bednye lyudi (Бедные люди); Em Português: O duplo
1849 - Netochka Nezvanova (Неточка Незванова); Em português: Niérochka Niezvânova
1848 - Belye nochi (Белые ночи); Em Português: Noites Brancas
1861 - Unijennye i oskorblennye (Униженные и оскорбленные); Em Português: Humilhados e ofendidos
1862 - Zapiski iz mertvogo doma (Записки из мертвого дома); Em Português: Memórias da casa dos mortos
1864 - Zapiski iz podpolya (Записки из подполья); Em Português: Notas do subsolo
1866 - Prestuplenie i nakazanie (Преступление и наказание); Em Português: Crime e castigo
1867 - Igrok (Игрок); Em Português: O jogador
1869 - Idiot (Идиот); Em Português: O idiota
1870 - Vechnyj muzh (Вечный муж); Em Português: O eterno marido
1872 - Besy (Бесы); Em Português: Os demônios
1863
– Ziminie Zamietki o lietnikh vpyetchatleniiakh (Зимние заметки о
летних впечатлениях); Em Português: notas de inverno sobre impressões de
verão.
1881 - Brat'ya Karamazovy (Братья Карамазовы); Em Português: Os irmãos Karamázov.
NOTAS DO SUBSOLO (Notes from underground), 1995
Legendado, Gary Walkow
Formato: AVI (VHS-Rip)
Áudio: inglês
LEGENDA EXCLUSIVA: português
Duração: 86 min.
Tamanho: 691 mb
Servidor: Megaupload (3 partes)
Créditos: Convergência Cinéfila
LINKS
SINOPSE
Adaptado
do livro do escritor russo Fiódor Dostoiévski, Henry Czerny interpreta o
homem do subsolo. Cheio de ódio a si mesmo,ele mantém um diário em
vídeo, onde discute suas próprias deficiências, assim como as
deficiências da sociedade contemporânea. Sua amargura transborda em um
jantar acompanhado de seus velhos amigos de faculdade. Depois de ser
humilhado por seus amigos no jantar, ele decide ir para um bordel, onde conhece Liza, uma jovem prostituta.
Assinar:
Postagens (Atom)