Nicolelis: Só no Brasil a educação é discutida por comentarista esportivo
por Conceição Lemes no Viomundo
Desde o último final de semana, o Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) e o Ministério da Educação (MEC) estão sob bombardeio midiático.
Estavam inscritos 4,6 milhões estudantes, e 3,4 milhões
submeteram-se às provas. O exame foi aplicado em 1.698 cidades,
11.646 locais e 128.200 salas. Foram impressos 5 milhões de provas
para o sábado e outros 5 milhões para o domingo. Ou seja, o total de
inscritos mais de 10% de reserva técnica.
No teste do sábado, ocorreram dois erros distintos. Um foi assumido pela gráfica
encarregada da impressão. Na montagem, algumas provas do caderno de
cor amarela tiveram questões repetidas, ou numeradas incorretamente ou
que faltaram. Cálculos preliminares do MEC indicavam que essa falha
tivesse afetado cerca de 2 mil alunos. Mas o balanço diário tem
demonstrado, até agora, que são bem menos: aproximadamente 200.
O outro erro, de responsabilidade do Inep, foi no cabeçalho do
cartão-resposta. Por falta de revisão adequada, inverteram-se os
títulos. O de Ciências da Natureza apareceu no lugar de Ciências Humanas
e vice-versa. Os fiscais de sala foram orientados a pedir aos alunos
que preenchessem o cartão, de acordo com a numeração de cada questão,
independentemente do cabeçalho. Inep é o Instituto Nacional de Pesquisas
Educacionais, órgão do MEC encarregado de realizar o Enem.
“Nenhum aluno será prejudicado. Aqueles que tiveram problemas
poderão fazer a prova em outra data”, tem garantido desde o início o
ministro da Educação, Fernando Haddad. “Isso é possível porque o Enem
aplica a teoria da resposta ao item (TRI), que permite que exames
feitos em ocasiões diferentes tenham o mesmo grau de dificuldade.”
Interesses poderosos, porém, amplificaram ENORMEMENTE
os erros para destruir a credibilidade do Enem. Afinal, a nota no exame
é um dos componentes utilizados em várias universidades públicas do
país para aprovação de candidatos, além de servir de avaliação
parabolsa do PRO-UNI.
“Só os donos de cursinhos e aqueles que não querem a democratização
do acesso à universidade podem ter algo contra o Enem”, afirma,
indignado, ao Viomundo o neurocientista Miguel Nicolelis,
professor da Universidade de Duke, nos EUA, e fundador do Instituto
Internacional de Neurociências de Natal, no Rio Grande do Norte. “Eu vi a
entrevista do ministro Fernando Haddad ao Bom Dia Brasil, TV Globo. Que
loucura! Como jornalistas que num dia falam de incêndio, no outro,
de escola de samba, no outro, ainda, de esporte, podem se arvorar em
discutir um assunto tão delicado como sistema educacional? Pior é que
ainda se acham entendedores. Só no Brasil educação é discutida por
comentarista esportivo!”
Nicolelis é um dos maiores neurocientistas do mundo. Vive há 20 anos nos Estados Unidos, onde há décadas existe o SAT (standart admissions test), que é muito parecido com o Enem. Tem três filhos. Os três já passaram pelo Enem americano.
Viomundo — De um total de 3,4 milhões de provas aplicadas no
sábado, houve problema incontornável em menos de 2 mil. Tem sentido
detonar o Enem, como a mídia brasileira tem feito? E dizer que o Enem
fracassou, como um ex-ministro da Educação anda alardeando?
Miguel Nicolelis — Sinceramente, de jeito algum — nem um nem outro. O Enem é equivalente ao SAT,
dos Estados Unidos. A metodologia usada nas provas é a mesma: a teoria
de resposta ao item, ou TRI, que é uma tecnologia de fazer exames. O
SAT foi criado em 1901. Curiosamente, em outubro de 2005, entre as
milhões de provas impressas, algumas tinham problema na barra de códigos
onde o teste vai ser lido. A entidade que faz o exame não conseguiu
controlar, porque esses erros podem acontecer.
Viomundo — A Universidade de Duke utiliza o SAT?
Miguel Nicolelis — Não só a Duke, mas todas as
grandes universidades americanas reconhecem o SAT. É quase um consenso
nos Estados Unidos. Apenas uma minoria é contra. E o Enem, insisto, é
uma adaptação do SAT, que é uma das melhores maneiras de avaliação de
conhecimento do mundo. O teste é a melhor forma de avaliar
uniformemente alunos submetidos a diferentes metodologias de ensino. É a
saída para homogeneizar a avaliação de estudantes provenientes de um
sistema federativo de educação, como o americano e o brasileiro,
onde os graus de informação, os métodos, as formas como se dão, são
diferentes.
Viomundo — Qual a periodicidade do SAT?
Miguel Nicolelis – Aqui, o exame é aplicado sete
vezes por ano. O aluno, se quiser, pode fazer três, quatro, cinco, até
sete, desde que, claro, pague as provas. No final, apenas a melhor é
computada. Vários estudos feitos aqui já demonstraram que o SAT é
altamente correlacionado à capacidade mental geral da pessoa.
Todo ano as provas têm uma parte experimental. São questões que não
contam nota para a prova. Servem apenas para testar o grau de
dificuldade. Outro peculiaridade do sistema americano é a forma de
corrigir a prova. É desencorajado o chute.
Viomundo — Explique melhor.
Miguel Nicolelis — Resposta errada perde ponto,
resposta em branco, não. Por isso, o aluno pensa muito antes de chutar,
pois a probabilidade de ele errar é grande. Então se ele não sabe é
preferível não responder do que correr o risco de responder errado.
Viomundo – Interessante …
Miguel Nicolelis – Na verdade, o SAT é maneira
mais honesta, mais democrática de avaliar pessoas de lugares
diferentes, com sistemas educacionais diferentes, para tentar
padronizar o ingresso. Aqui, nos EUA, a molecada faz o exame e manda
para as faculdades que querem frequentar. E as escolas decidem quem
entra, quem não entra. O SAT é um dos componentes para essa avaliação.
Viomundo — Aí tem cursinho para entrar na faculdade?
Miguel Nicolelis — Tem para as pessoas aprenderem a
fazer o exame, mas não é aquela loucura da minha época. Era cheio de
cursinho para todo lugar no Brasil. Cursinho é uma máquina de fazer
dinheiro. Não serve para nada a não ser para fazer o exame. Por isso
ouso dizer: só os donos de cursinho e aqueles que não querem
democratizar o acesso à universidade podem ter algo contra o Enem.
Viomundo –Mas o fato de a prova ter erros é ruim.
Miguel Nicolelis — Concordo. Mas os erros vão
acontecer. Em 1978, quando fiz a Fuvest (vestibular unificado no Estado
de São Paulo), teve pergunta eliminada, pois não tinha resposta. Isso
acontece desde o tempo em que havia exame para admissão [ao primeiro
ginasial, atualmente 5ª série do ensino fundamental) na época das
cavernas (risos). Você não tem exame 100% correto o tempo inteiro.
Então, algumas pessoas estão confundindo uma metodologia bem
estudada, bastante conhecida e aceita há décadas, com problemas
operacionais que acontecem em qualquer processo de impressão de milhões
de documentos. Na dimensão em que aconteceram no Brasil está dentro das
probabilidade de fatalidades.
Viomundo -- Em 2009, também houve problema, lembra-se?
Miguel Nicolelis -- No ano passado foi um furto, foi
um crime. O MEC não pode ser condenado por causa de um assalto, que é
uma contigência e nada tem a ver com a metodologia do teste.
Só que, infelizmente, gerou problemas operacionais para algumas
universidades, que não consideraram a nota do Enem nos seus
vestibulares. Isso não quer dizer que elas não entendam ou nãoaceitam o
teste. As provas do Enem são muito mais democráticas, mais racionais e
mais bem-feitas do que os vestibulares de qualquer universidade
brasileira.
Eu fiz a Fuvest. Naquela época, era muito ruim. Não media nada. E,
ainda assim, a gente teve de se sujeitar àquilo, para entrar na
faculdade a qualquer custo.
Viomundo -- Fez cursinho?
Miguel Nicolelis -- Não. Eu tive o privilégio de
estudar numa escola privada boa. Mas muitas pessoas que não tinham
educação de alto nível eram obrigadas a recorrer ao cursinho para
competir em condições de igualdade.
Mas o cursinho não melhora o aprendizado de ninguém. Cursinho é uma
técnica de aprender a maximizar a feitura do exame. É quase um efeito
colateral do sistema educacional absurdo que até recentemente tínhamos
no Brasil. É um arremedo. É um aborto do sistema educacional que não
funciona.
Viomundo -- Qual a sua avaliação do Enem?
Miguel Nicolelis -- É um avanço tremendo, porque a
longo prazo a repetição do Enem várias vezes por ano vai acabar com o
estresse do vestibular. Você retira o estresse do vestibular. Na minha
época, e isso acontece muito ainda hoje, o jovem passava os três anos
esperando aquele "monstro". De tal sorte, o vestibular transformava o
colegial numa câmara de tortura. Uma pressão insuportável. Um inferno
tanto para os meninos e meninas quanto para as famílias. Além disso, um
sistema humilhante, porque as pessoas que não podiam frequentar um
colégio privado de alto nível sofriam com o complexo de não poder
competir em pé de igualdade. Por isso os cursinhos floresceram e fizeram
a riqueza de tanta gente, que agora está metendo o pau no Enem.
Evidentemente vários interesses estão sendo contrariados devido ao
êxito do Enem.
Viomundo -- Tem muita gente pixando, mesmo.
Miguel Nicolelis -- Todo esse pessoal que pixa acha
que sabe do que está falando. Só que não sabe de nada. Exame
educacional não é jogo de futebol. Tem metodologia, dados, história. E
olha que eu adoro futebol. Sempre que estou no Brasil, vou ao estádio
para assistir ao jogos do Palmeiras [Ninguém é perfeito (rs)!] O
Brasil fez muito bem em entrar no Enem. É o único jeito de acabar com
esse escárnio, com essa ferida que é o vestibular .
Viomundo — Nos EUA, não há vestibular para a universidade. O senhor acha que o Brasil seguirá essa tendência?
Miguel Nicolelis -- Acho que sim. O importante é o
seguinte. O Brasil está tentando iniciar esse processo. Quando você
inicia um processo dessa magnitude, com milhões fazendo exame, é normal
ter problemas operacionais de percurso, problemas operacionais. Isso
faz parte do processo.
Nós estamos caminhando para o Enem ser a moeda de troca da inclusão
educacional. As crianças vão aprender que não é porque elas fazem
cursinho famoso da Avenida Paulista que elas vão ter mais chance de
entrar na universidade. Elas vão entrar na universidade pelo que elas
acumularam de conhecimento ao longo da vida acadêmica delas. Elas vão
poder demonstrar esse conhecimento sem estresse, sem medo, sem complexo
de inferioridade. De uma maneira democrática.E, num futuro próximo,
tanto as crianças de escolas privadas quanto as de escolas públicas vão
começar a entrar nesse jogo em pé de igualdade. Aí, sim vai virar
jogo de futebol.
Futebol é uma das poucas coisas no Brasil em que o mérito é
implacável. Joga quem sabe jogar. Perna de pau não joga. Não tem espaço.
O talento se impõe instantantaneamente.
Educação tem de ser a mesma coisa. O talento e a capacidade têm de
aflorar naturalmente e todas as pessoas têm de ter a chance de sentar na
prova com as mesmas possibilidades.