O Diário
- [Andrés Ávila Armella, dirigente comunista mexicano]
O tema que serve
de título foi amplamente referido em diferentes meios de counicação:
diários, revistas, programas de rádio e televisão, além de tema de
debate entre servidores do Estado; no entanto, é pouco o que até agora
nós o que estamos organizados na esquerda pudemos opinar.
Talvez
porque não consideremos que seja este o problema principal dos
explorados do país, talvez porque este é um problema do qual nos
consideramos alheios, ou até, por o assunto estar permanentemente no
discurso oficial.
Mas neste momento é inegável que existe
no nosso país uma situação na qual o narcotráfico e o aumento da
violência social a ele ligada alcançaram um nível tal que é difícil
continuar a eludir a discussão; mais, é importante que utilizemos as
nossas próprias ferramentas analíticas para o explicar, e no meu caso
farei uso da melhor ferramenta analítica que tenho, o marxismo.
Por outro lado, há que aclarar que
escrevo este escrito como se fosse um ensaio porque considero que a
informação jornalística sobre os cárceres da droga, as suas rivalidades,
operações e composição não é confiável. Na maioria dos casos trata-se
de relatórios e filtrações de carácter policial, rumores e frases dos
próprios envolvidos que resultam, ao fim de contas, como confusos,
contraditórios e enganadores.
O meu propósito será sublinhar alguns
aspectos estruturais e essenciais para a compreensão do problema,
prescindindo por agora da análise concreta do tão falado negócio.
Narcotráfico, um negócio essencialmente capitalista
Teremos de assumir que se as drogas, a
sua produção, distribuição e consumo, contam com algumas peculiaridades
diferentes de muitas outras mercadorias, é muito importante assumir que
na generalidade a droga é uma mercadoria como qualquer outra, e que as
leis que regem a acumulação de capital como resultado da sua produção
são, na generalidade, as mesmas que regem o resto da economia
capitalista.
A mercadoria droga, seja ela qual for,
tem um valor de uso porque há milhões de pessoas que consideram que lhes
serve para alguma coisa, para satisfazer o que eles consideram uma
necessidade, e tem valor de troca porque para a sua produção se requer
trabalho humano; quando falamos do negócio do narcotráfico referimo-nos à
produção, distribuição e consumo das drogas ilegais, que se realiza sob
formas capitalistas, pelo que fica excluído desta análise qualquer tipo
de produção caseira ou destinada a consumo próprio, o que vamos tratar é
a droga como mercadoria.
Assim, teremos que identificar que os
elementos necessários para a aparição deste fenómeno são por um lado os
proprietários de meios de produção necessários para a produção desta
mercadoria, e por outro, os proletários que trabalham para os ditos
proprietários a troco de um salário.
Como sabemos, praticamente todas as
drogas que hoje são um negócio tão rentável, só são possíveis de obter a
partir de um processo de trabalho, não se encontram em forma pura na
natureza, é necessário reunir uma certa quantidade de matérias-primas,
instrumentos de trabalho e maquinaria (mais, ou menos, rudimentar), para
a sua produção. São trabalhadores assalariados os que através de
diversos procedimentos combinam algumas substâncias e as embalam
acrescentando um novo valor às mesmas. Naturalmente, os ditos
trabalhadores não recebem o pagamento correspondente ao valor do seu
trabalho, mas somente um salário pela venda da sua força de trabalho,
pois de outra forma não haveria mais-valia nem este negócio poderia
proporcionar o montante de lucros que propícia. Além dos operários da
droga, cada empresário capitalista da droga emprega outras pessoas que
realizarão um qualquer trabalho destinado às suas mercadorias:
empregados de limpeza, distribuidores, empregados de transporte e, os
mais notórios, empregados armados cuja finalidade é proteger a
mercadoria, o dinheiro e fazer o que o patrão lhes mande e considere
necessário para executar, amedrontar ou defender-se de alguém para
realização da sua mercadoria. Além disso, são necessários empregados de
confiança, cujo principal trabalho é intelectual, destinados à
administração, contabilidade, engenharia, etc..
Com nas restantes empresas capitalistas
os salários não são iguais para todos os empregados, o seu preço é
determinado por um lado pelo valor da força de trabalho, e por outro
pelas condições sociais de contratação da mesma, por exemplo a oferta e a
procura laborais de determinado tipo de trabalho.
Partamos então do pressuposto lógico que
um capitalista da droga é em princípio proprietário de uma quantidade
de dinheiro D, com que comprará meios de produção Mp e Força de
Trabalho, ft, para obter mais-valia Pv, uma mercadoria com valor
incrementado M' e, finalmente, dinheiro incrementado, D'. Nem mais nem
menos que a fórmula geral da acumulação capitalistas:
D - M Pv - M' - D'
Ora bem, o que é que leva um homem a
investir o seu dinheiro em meios de produção e força de trabalho
destinados a produzir droga? O mesmo que leva um qualquer capitalista a
investir no que quer que seja, a sede de acumulação e de riqueza, e a
possibilidade concreta de as obter neste negócio, pois de outra forma
não o faria. Por outro lado podemos perguntar, o que é que leva uma
pessoa a vender a sua força de trabalho a um capitalista da droga? O
mesmo que o obriga a vendê-la a um qualquer capitalista, a necessidade
de obter os meios de vida indispensáveis. Visto de maneira conjunta
podemos dizer que num espaço de tempo e espaço, coincide o proprietário
dos meios de produção da droga um homem juridicamente livre cujas
capacidades de trabalho podem ser postas à disposição daquele. Esta
coincidência flui por todo o país dado o alto índice de desemprego e do
chamado trabalho informal; acontece que uma grande quantidade de pessoas
não encontra onde vender a sua força de trabalho ou só consegue
vendê-la por pequenos períodos de tempo, ou melhor, as condições em que a
vende são insuficientes para a satisfação das suas necessidades.
O que foi dito anteriormente não
significa que as condições de trabalho nas narco-empresas sejam boas,
antes pelo contrário, implicam muitos riscos, obviamente não existe a
possibilidade de contratação colectiva e, por isso, os trabalhadores não
gozam de qualquer direito laboral nem sindical, talvez em alguns casos o
salário seja melhor, mas este é inevitavelmente instável. Esta situação
diz-nos da lamentável situação em que se encontra o proletariado
mexicano, pelo que pode pensar-se que ser trabalhador de uma
narco-empresa é comparativamente melhor que no resto da economia.
Na óptica do capitalista da droga o
assunto é mais ou menos igual, se se investe num negócio é porque é
rentável para esses capitalistas, seja a droga o seu principal
investimento ou um secundário, o facto é que encontra no tráfico de
droga uma oportunidade para a acumulação de capital, à qual não está
disposto a renunciar por qualquer critério moral relacionado com as
consequências do consumo da sua mercadoria; ao fim de contas, os
capitalistas das empresas legais também não se detêm por critérios
morais, mesmo que o seu negócio sejam as armas, as drogas legais,
contaminantes ou qualquer outro produto com algum efeito nocivo para as
pessoas, o meio ambiente ou a sociedade.
Os trabalhadores das narco-empresas
podem ter adquirido alguns conhecimentos e habilitações necessários para
o seu trabalho nas mesmas, mas no limite eles são formados tal como o
restante proletariado em diferentes graus de conhecimentos gerais e
diferentes tipos de especialização; naturalmente que uma narco-empresa
emprega pessoas com experiência de empresas farmacêuticas e
laboratórios, engenheiros, agrónomos, químicos, contabilistas,
advogados, transportadores, etc.. E, particularmente no caso dos
sicários e guardas, emprega pessoas formadas no manuseamento de armas
tanto na polícia como no exército; assim como outros vendem a sua
capacidade de trabalhar ao patrão, estes últimos vendem a sua capacidade
de matar e instrução, muitas vezes financiada por todos os mexicanos,
dado que somos nós quem financia o seu treino e experiência nas
instituições policiais e militares. De que outra forma poderia trabalhar
alguém que apenas está capacitado para disparar uma arma se esta é a
sua capacidade de trabalhomais rentável?
Outro elemento que é indispensável
ressaltar é que não há motivos razoáveis para pensar que os empresários
da droga não são além disso empresários legais, nem muito menos para
pensar que não há empresários originalmente legais que não estão a
investir capital no negócio da droga. Embora com muita frequência os
meios de comunicação recorrem a descrições fabuladas de
narcotraficantes, caracterizando-os sempre como muito diferentes dos
empresários legais, o facto é que apesar de existirem neste negócio
personagens pitorescas e peculiares tal não significa minimamente que
seja essa a generalidade. Os media também falam da infiltração do narco
nas empresas legais, mas nunca escrevem nada sobre a infiltração das
empresas legais no narco. Em geral, os grandes capitalistas costumam ter
um grande investimento principal num qualquer ramo industrial ou
comercial, mas ao mesmo tempo mantêm investimentos noutros ramos, ou
melhor, fazem associações de capitalistas entre capitais oriundos de
diferentes sectores.
Isto acontece sobretudo porque ao
gerarem-se lucros na sua forma de dinheiro, nem sempre podem ser
reinvestidos como capital no mesmo negócio, sobretudo quando as
condições de mercado o limitam, pelo se torna necessário para o
capitalista procurar outros negócios onde investir o seu capital.
Portanto, não será de estranhar que um empresário legal que obtém lucros
num qualquer negócio e cujo mercado se encontra já no limite, trate de
evitar o decréscimo da sua quota de lucro colocando capital num ramo
mais dinâmico da economia e no qual obtém lucros importantes. Quem ainda
pense que os capitalistas têm uma moral escrupulosa dirá que, apesar de
tudo, não seriam capazes de investir no negócio da droga, mas para os
que amparados no marxismo pensam que não é a moral mas a sede de lucros o
que motiva o capitalista a investir, parece-nos bem lógico que assim
suceda.
É igualmente sabido que para elevar os
lucros de uma empresa, neste caso de uma narco-empresa, é conveniente
controlar a maior quantidade de cadeias produtivas relacionadas com ela e
aí se expandir. É claro que para o negócio na droga não se utilizam
apenas mercadorias ilegais, mas em geral utilizam-se muitas mercadorias
legais, quer como meios de produção, matérias-primas, e factores de
produção de diferente índole, pelo que necessariamente as narco-empresas
estão ligadas e associadas com a economia legal e muitos níveis.
Convirá aos parceiros das narco-empresas que estas desapareçam? De modo algum, mas convém-lhes controlá-las.
O narco e a política
Lenine explicava que as relações
políticas são, essencialmente, uma expressão condensada das relações
económicas. Esta premissa ajudar-nos-á a compreender porque é que a vida
política do país, e particularmente a política burguesa, aparece cada
vez mais frequentemente nas mãos dos senhores da droga.
O poder político só por si não se mantém
num Estado capitalista, ele é manobrado e determinado principalmente
pela classe dominante, a burguesia.
Como pode observar-se, o poder da
burguesia não se explica por definição legal, não que a constituição
política do país o diga, mas é inevitável que sendo a burguesia quem
detém o controlo da economia, é ela mesma quem esta em condições de
controlar a política. A forma como a burguesia faz política é
frequentemente de forma velada, e só nalguns casos o faz de forma clara,
isto é, vale-se da burocracia política para se fazer representar nos
órgãos do governo e nas diferentes instâncias do Estado. Poderíamos
elaborar uma lista interminável de mecanismos de como isto se faz, que
vão desde a formação ideológica até à chantagem e ao suborno. O caso
mais típico é nos processos eleitorais, onde os partidos e candidatos
necessitam de dinheiro para as suas campanhas e, logicamente, obtém
maior financiamento quem consiga ser patrocinado pelo mais rico,
enquanto, por sua vez, os empresários não oferecem o seu dinheiro, mas
investem-no, pelo que por trás de cadafinanciamento privado existem
necessariamente acordos de protecção e de facilidades que vão da
política à economia e vice-versa. Por que é que então temos de estranhar
que os empresários da droga se comportem como o resto da sua classe?
Assim, a ingerência dos capitalistas da
droga na política é o resultado da sua posição económica, do controlo
que têm sobre uma série de cadeias produtivas; desta forma, através das
suas relações e posição política conseguem estabilizar a sua posição.
Assim podemos ver que a ingerência dos
narco-empresários na política burguesa é mais forte onde são eles quem
tem maior controlo sobre os processos produtivos e comerciais de uma
região determinada, e menor onde o seu negócio não seja significativo
para economia local, embora em todo o caso a política continue a ser
controlada pelos capitalistas de sempre.
Por isso, a submissão dos políticos aos
narco não é na essência um fenómeno diferente do da subordinação dos
políticos à burguesia, é antes o mesmo fenómeno; é uma condicionante da
política burguesa e de como se faz política dentro de um Estado burguês.
A prática impõe-se a qualquer princípio político ou ético, e um
político ganhador é o que sabe servir os seus amos, os capitalistas; não
se trata de uma eleição nem de uma inclinação moral mas de uma coisa
prática, se queres ganhar uma eleição e governar com apoio deves muito
simplesmente manter-te aliado dos que são donos das condições materiais
para o fazer, e numa região são os banqueiros, noutra os empresários de
calçado, noutra os empresários da mineração e noutra os
narco-empresários, e não existe aqui nenhuma diferença. Visto de outra
forma: como poderia um presidente de câmara de um país capitalista como o
México, inimizar-se com o dono da principal fábrica, loja e hotéis do
município só porque é dono de um outro negócio que explica a existência
destes?
Naturalmente estaria metido num beco sem
saída. Na generalidade o narco-empresário nem sequer necessita de
chegar à violência explícita para ter o presidente do município nas suas
mãos, pois a sua posição económica explica o porquê da sua capacidade
de exercer a violência.
Com isto não estou a desculpar nenhum
eleito pelos seus actos de corrupção, mas a estabelecer que a corrupção é
inerente à política burguesa porque disfarça permanentemente os
interesses privados, fazendo-os passar por públicos, ou dito de outra
maneira, não há diferença substancial entre quem governa em nome de um
país para favorecer os interesses dos banqueiros norte-americanos ou das
grandes transnacionais e quem governa em nome do povo para favorecer os
narco-empresários. Na realidade, todos estes políticos são talhados da
mesma peça, e quem está disposto a vender-se aos interesses do capital
estrangeiro ou dos banqueiros, logicamente estará disposto a vender-se
aos interesses do narco-capital e vice-versa. Poderá perguntar-se, e se
houver alguém que não estiver disposto? Simples e simplesmente não está
inserido na política burguesa, seja por cepticismo, por consciência de
classe, ou porque foi violentamente afastado dela.
O papel da violênciaPoder económico e
violência são dois factores que ao longo da história têm caminhado a
par, não é privativo do narcotráfico nem tampouco é privativo da
sociedade burguesa, ainda que certamente adquira características
particulares a que faremos referência.
A burguesia valeu-se da violência em
grande e pequena escala para estender e preservar o seu domínio, e fá-lo
geralmente através do Estado burguês, através do seu aparelho
repressivo assegura-se de que ninguém se interpõe no seu caminho de
acumulação e quem o tentar é violentado por diversas formas. Desde o seu
início, o capitalismo avançou violentamente sobre civilizações
inteiras, açambarcando territórios, rotas comerciais, recursos naturais,
despojando comunidades agrárias, encontrando as condições necessárias
para que os donos dos meios de produção tivessem à sua disposição homens
com capacidade de venda da sua força de trabalho. A barbárie, a morte e
a destruição que o capitalismo deixou na sua passagem não é nada
inferior à praticada pelos cartéis da droga, diria mesmo que esta é o
reflexo daquela.
A peculiaridade da violência exercida
pelas narco-empresas é que esta realiza-se fora do da formalidade
estabelecida pela normatividade burguesa, pois, ao não ser reconhecida a
sua existência jurídica, as narco-empresas não podem regular as
relações entre elas nem com os outros através dos tribunais e outras
instâncias de «execução da justiça», pelo que praticam a violência por
conta própria, através dos mecanismos que têm ao seu alcance. Assim, a
execução, ainda que não seja o único mecanismo por eles utilizado, é por
excelência o modo como os narco-empresários dirimem os conflitos entre
eles e dentro da sua própria empresa.
Este é um elemento que tem estado
presente desde o início do negócio, tal como acontece no contrabando em
geral mesmo antes de se movimentar os actuais montantes de dinheiro e de
capital à sua volta, presente desde que o narcotráfico se apresentava
apenas em pequenos bandos de contrabandistas que, por exemplo, passavam
marijuana para os Estados Unidos nos guarda-lamas dos carros, como diz a
lenda.
Mas esta violência a que nos referimos é
também uma violência de classe, é a violência burguesa, pois o seu uso
está reservado às pessoas explicitamente autorizadas pelos
narco-empresários; não corresponde a uma decisão individual dos seus
empregados decidir quando deve ser empregue, mas são os próprios donos
quem a instrumenta e dirige, tendo na maioria das vezes por vítimas os
próprios empregados, e o seu móbil é facilitar o processo de acumulação
de capital. É certo que podemos encontrar casos em que influem factores
pessoais e de outra natureza, mas a generalidade da violência praticada
pelos cartéis da droga tem como finalidade apoiar objectivos
capitalistas, isto é, desfazerem-se dos que criam obstáculos ao processo
de acumulação.
De igual modo, temos de dizer que o
aumento da capacidade de exercício da violência dos narco-empresários se
deve principalmente ao aumento do seu poder económico e à extensão da
sua influência económica. É difícil saber se são agora mais violentos do
que o eram antes, o que é certo é que o aumento da sua capacidade
económica aumentou a sua capacidade de exercício da violência, ou dito
de outra maneira, a sua capacidade e exercício da violência aumenta ao
mesmo tempo e ao mesmo ritmo do seu capital.
Para os que nunca foram burgueses custa
compreender por que razão os narco-empresários, se já têm tanto dinheiro
e poder, se agarram ferreamente e desta maneira a arrebatar aos outros
narco-empresários o seu negócio. Não poderiam conformar-se com o que têm
e andarem em paz uns com os outros?
Mas a paz e a guerra fazem parte de um
todo, e quanto menos espaços livres de narcotráfico por conquistar
houver, mais crescerá a rivalidade e a violência entre os blocos ou
grupos rivais, porque a consciência capitalista caracteriza-se
precisamente por procurar sempre mais. Além disso, a tendência geral do
capital é para a sua concentração e centralização e o negócio da droga
não é excepção à regra. De igual modo, a tendência monopolista do
capital conduz ao confronto violento entre os blocos de capitalistas. Se
isto aconteceu à escala mundial, não tem nada de estranho que também
suceda neste caso.
Mas é possível a paz entre os bandos de
narcotraficantes? É-o tanto quanto é possível a paz entre os blocos
capitalistas a nível mundial, só transitoriamente, e quando um bloco
eminentemente dominante consegue agrupar à sua volta os demais e estes
reconhecem a supremacia daquele; tal como as potencias capitalistas
reconheceram a primazia dos Estados Unidos, de tal forma que a violência
se encontra em estado latente e as expressões mais sanguinárias são
contra grupos ou Estados mais pequenos, com menos poder e cuja
capacidade militar é completamente díspar. Assim, pode chegar uma
situação em que uma qualquer aliança de narco-empresários hegemonizem os
restantes e só utilizem a violência de forma mais isolada contra
pequenos grupos que se recusem a aceitá-los, ou até que se forme um novo
bloco capaz de disputar a hegemonia.
Até aqui está claro que a violência foi
um instrumento historicamente utilizado pela burguesia para reprimir
todos os que se interpuseram entre eles e o seu objectivo máximo; a
acumulação de capital é exercida por cada capitalista com os meios e os
métodos que tem ao seu alcance; os narco-empresários desenvolveram os
seus próprios métodos de exercício da violência. Mas, o que é que se
passa com as expressões aparentemente irracionais de violência a que
temos assistido nos últimos anos?
Também aqui podemos tropeçar com a
armadilha colocada pelos aparelhos ideológicos do Estado, que nos têm
dito que as referidas expressões irracionais de violência provêm do que
chamam «o crime organizado». Será verdade? Do meu ponto de vista a
dúvida é legítima, pois se é certo que há expressões violentas que
parecem estar relacionadas com ajustes de contas, disputas de mercados,
etc., existem outros acontecimentos que não se enquadram nesta
suposição.
Um exemplo muito importante foi o que
aconteceu durante a celebração do grito de independência, em 15 de
Setembro de 2008, na cidade de Morelia Michoacán, quando rebentaram duas
granadas no meio da população que assistia à comemoração. O governo
atribuiu imediatamente as culpas do facto às organizações de
narcotraficantes, e ordenou o aumento da presença do militar no Estado,
fazendo barreiras indiscriminadamente, e fazendo o patrulhamento de
estradas, aldeias e cidades por uma imensidão de militares.
Não se tendo resolvido nada, levantam-se
algumas questões. Que ganhará uma narco-empresa em fazer explodir duas
granadas numa praça pública onde não há qualquer objectivo lógico para
acrescentar o seu capital? Quem é que beneficiou com este acontecimento?
O incidente foi precedido de dois anos
de constante incentivo do governo de Calderón ao exército, que foi
tirado dos quartéis para o desempenho de funções próprias da polícia.
Desde que chegou ao poder, Filipe Calderón procurou no exército o seu
principal apoio, e encarregou-se de o trazer para as ruas, aumentou o
seu orçamento e elevou-o à única instituição honesta e com capacidade
para garantir a segurança dos mexicanos. Se compreendermos que o
exército é o pilar dos aparelhos repressivos do Estado, e que a sua
principal função tem sido a de zelar pelos interesses da burguesia, não
estranharemos que um presidente tão impopular, que ganhou a presidência
em eleições fraudulentas e acelerou no seu governo a tomada de medidas
antipopulares, tenha procurado o apoio seguro do exército.
Assim, as expressões irracionais de
violência não vieram apenas do «crime organizado», mas também vieram do
próprio exército e dos corpos de polícia que se dedicaram à violação
sistemática das garantias individuais e que chegaram, inclusive, a
balear famílias inteiras por supostamente não terem respeitado uma ordem
de «alto» numa qualquer barreira.
Mas voltemos ao que aconteceu em
Morelia. Foi lógico? Na perspectiva de quem? Seja dito que em alguns
momentos a violência é exercida pela burguesia com o objectivo de daí
tirar benefícios individuais, mas às vezes ela exerce a violência como
classe organizada para o seu favorecimento geral. De uma forma ou
doutra, directamente a violência não gera valor nem mais-valia, mas pode
servir para favorecer o surgimento de condições de acumulação de
capital.
Assim, quando a burguesia como classe
organizada utiliza a violência, esta aparece sob a forma de violência
pública, e quando o faz por sua conta aparece como violência privada. Na
primeira sai beneficiada a classe capitalista em geral, e a segunda só
quem a exerceu. Em geral, a violência pública é um assunto de Estado
como também o é a administração e regulação da violência privada. O que
aconteceu em Morelia foi um acto de violência pública porque beneficiou o
Estado, e portanto a classe dominante em geral, pelo que é difícil
pensar que se tratou de um exercício privado da violência.
No entanto, não nos encontramos em
condições de fazer uma peritagem ou uma investigação que possa descobrir
o que realmente aconteceu naquele dia, mas podemos saber quem saiu
beneficiado com ele: o Estado, o governo de Calderón, o exército e o
bloco hegemónico da classe dominante.
Referi o caso das granadas em Morelia
pelo seu significativo resultado, mas ao mesmo tempo podemos falar do
desenvolvimento e protagonismo dos grupos de sicários, supostamente ao
serviço das narco-empresas. Aqui, o curioso é que muitas das suas
operações também não parecem corresponder com o exercício da violência
privada, isto é parecem não ter como objectivo conquistar um mercado,
acertar contas, desfazer-se de um rival, etc. – refiro-me à execução de
pessoas que nada têm a ver com o negócio, intimidações, extorsões,
assassínios de artistas, etc. Para quê tanta violência? Será verdade que
estes grupos de sicários são guardas privados de alguma narco-empresa?
O que os media dizem não é suficiente para acreditar nisso.
A história recente da América Latina
mostra-nos uma possibilidade. Nalgumas ocasiões as narco-empresas criam
guardas privadas para exercer a violência, que para eles é dispendiosa
mas de alguma forma é lucrativa; mas por vezes, também acontece as
narco-empresas terem necessidade de financiar grupos de sicários e,
neste caso, os sicários não são um instrumento do narcotráfico mas um
objectivo. Isto é, o Estado precisa de um certo tipo de violência para
favorecimento da classe dominante, mas como não pode financiá-los nem
lhes pode dar abertamente cobertura, permite que esse grupo, treinado e
patrocinado por eles, se auto-financie através de todas as facilidades
que lhe dá para o negócio da droga. Isto aconteceu, por exemplo com os
«contra» na Nicarágua e acontece com os grupos paramilitares na
Colômbia, como as tristemente célebres Autodefesas Unidas da Colômbia. O
objectivo destes grupos não é propriamente traficar droga, mas o
narconegócio permite-lhes
exercer a violência política, que é
principalmente dirigida ao combate das organizações e posições opostas
aos desígnios do capital; no caso dos contras, o combate era contra o
governo sandinista e no caso do paramilitarismo colombiano para conter a
insurreição com a repressão indiscriminada e irracional não só contra
as bases de apoio tanto das FARC-EP como do ELN, mas também das
organizações sociais, líderes sindicais e opositores em geral.
No México estes grupos de sicários não
se fizeram notar como grupos anti-insurreccionais, embora se saiba que
alguns estão treinados para isso, mas também não estamos livres, de
sicários que se reivindiquem como parte de uma organização de sicários
ou de «narcotraficantes», e tenham ameaçado ou de alguma maneira
violentado lutadores sociais. Um caso conhecido foi, por exemplo, o
assassínio do comandante «Ramiro» do ERPI que, antes de ser executado,
advertiu que estavam a ser fustigados por este tipo de grupos na região
de «Tierra Caliente» do Estado de Guerrero.
Se por ora não podemos assegurar que
estes grupos de sicários têm como principal função a contra-insurreição,
podemos no entanto dizer que é muito provável que estejam em última
instância destinados a isso, e também podemos assegurar que o seu
comportamento teve como principal beneficiário o governo Calderón e
instituições repressivas como o exército.
Conclusões
• O narcotráfico tem em comum com o
resto da economia capitalista as suas características essenciais: a
procura insaciável de lucro possibilitada pela mais-valia; carentes de
ética, não têm qualquer problema com os efeitos nocivos relacionados com
o consumo da sua mercadoria e estão dispostos ao que quer que seja
para preservar e reproduzir a sua capacidade de acumulação de capital.
• O narcotráfico tem como
particularidade a ilegalidade da sua actividade, portanto, as
instituições do Estado, pelo menos formalmente, declaram-se sem
competência para regular a relação entre os narco-empresários e os seus
empregados, bem como a relação entre as narco-empresas, pelo que a dita
regulação se faz sobretudo de forma privada. Por isso a violência
privada exercida pelas narco-empresas tem um papel
particularmentesignificativo.
• Diferenciar a economia do narcotráfico
da economia legal torna-se cada vez mais difícil pela quantidade de
capital que se movimenta no narcotráfico e a sua relação com a economia
legal.
•Os narco-empresários estão cada vez
mais integrados na burguesia como classe, isto é, cada vez é mais
frequente que o seu comportamento e as suas acções sejam dirigidos ao
favorecimento da classe capitalista em geral e não só a uma parte dela
em particular.
• Pelas razões que foram ditas cresceu a
capacidade das narco-empresas de fazer política, com incidência na
política burguesa, estando a sua capacidade de acumular capital
relacionada com a de fazer política.
• A violência privada exercida pelas
narco-empresas favoreceu um clima de aumento da violência social,
pública e privada na sociedade mexicana, o que veio complicar muito os
problemas da sociedade mexicana em geral, afectando principalmente os
mais pobres e beneficiando unicamente os senhores do capital.
• Este clima de violência abre e
favorece a oportunidade de o Estado burguês mexicano se dotar dos
instrumentos violentos de repressão da organização popular.
• Não há qualquer razão para pensar que o
referido fenómeno abrande, antes pelo contrário, cada vez mais assume
traços mais preocupantes. Para que se desse a sua diminuição seria
necessário que desaparecessem as condições que levaram ao seu
aparecimento e reprodução, pelo que teriam que desaparecer as condições
que permitem a produção, distribuição e consumo da droga. E longe de
estar interessado nisso, o Estado mexicano apenas trata de se aproveitar
deste tema para fortalecer as suas posições no bloco hegemónico da
burguesia mexicana.