quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Governo liberta trabalhadoras em boate no MT

Leonardo Sakamoto em seu blog

Você é explorada sexualmente em uma boate e como pagamento ganha fichinhas que podem ser trocadas por produtos com preço superfaturado (como macarrão instantâneo, cigarros, bebidas…) na loja do próprio estabelecimento em que você trabalha. Se não quitar a dívida contraída dessa bola de neve fraudulenta, fica trabalhando. Para a alegria dos clientes e dos donos do estabelecimento.


Essa foi a situação a que estavam expostas 20 mulheres em Várzea Grande, município vizinho à capital do Estado do Mato Grosso, Cuiabá. De acordo com reportagem de Bárbara Vidal, da Repórter Brasil, elas estavam mantidas em alojamentos precários e superlotados no interior da casa noturna Star Night. As jovens eram obrigadas a permanecer o tempo inteiro (quando digo o tempo inteiro, refiro-me às 24 horas do dia) à disposição dos donos do lugar, localizado a cerca de um quilômetro do Aeroporto Internacional Marechal Rondon. Não tinham folga nem aos domingos ou feriados. Algumas delas assinaram um contrato – ilegal, é claro – que as proibia de deixar a boate se não houvesse pagamento das “dívidas”.
Segundo Valdiney Arruda, chefe da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Mato Grosso e acompanhou a ação, as mulheres “viviam em regime total de subordinação”. Além de precários e superlotados, os espaços não tinham ventilação adequada e proteção contra incêndio e não respeitavam normas de higiene.
Outros quatro trabalhadores (um gerente e três garçons) também foram retirados de lá. Não ficavam acomodados na boate e retornavam para suas casas após o expediente, mas enfrentavam condições precárias, com jornadas exaustivas e sem descanso. Todas as vítimas tinham entre 18 e 23 anos de idade.
A operação também contou com a participação da Polícia Civil, Guarda Municipal e Conselho Tutelar e foi realizada em novembro. Participaram ainda integrantes da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública e da Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo do Mato Grosso, após investigações que começaram quatro meses antes. As vítimas receberam os seus direitos trabalhistas, foram orientadas para que retornassem a seus municípios de origem e vão receber seguro-desemprego.
O Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas lançado no ano passado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e o Crime Organizado em parceria com a Iniciativa Global da ONU contra o Tráfico de Pessoas apontou que a forma mais comum de tráfico humano (79%) é para a exploração sexual, em que as vítimas são predominantemente mulheres e meninas. Em 30% dos países que fornecem informações sobre o gênero dos traficantes, as mulheres são a maioria dos traficantes.
Mulheres que vão buscar uma condição de vida melhor em outras cidades ou mesmo países e que não possuem informações sobre seus direitos são as mais atingidas pelo problema. Além disso, muitas acabam não procurando auxílio por vergonha de sua condição e medo de sanções criminais.

Jornalismo para quem precisa


Há alguns dias, lancei na minha página do Facebook uma idéia que venho acalentando há tempos, desde que encerrei um curso de extensão para uma faculdade privada de jornalismo, aqui em Brasília. O curso, de Técnica Geral de Jornalismo, reuniu pouco mais de 10 alunos, basicamente, porque era muito caro. Embora tenha sido uma turma de bons estudantes, gente verdadeiramente animada e interessada no ofício, me senti desconectado da real intenção do curso, que era de fazer um contraponto de método, opinião e visão ideológica a esse jornalismo que aí vemos, montado em teses absurdas, em matérias incompletas e mentirosas, omissas em tudo e contra todos, a serviço de um pensamento conservador, reacionário e golpista disseminado, para infelicidade geral, como coisa normal. Não é. E é sobre isso que eu queria falar enquanto ensinava, dia a após dias, os fundamentos práticos da pauta, da entrevista, da redação jornalística, da nobre função do jornalista na sociedade, no Brasil, na História.
Perguntei, então, no Facebook, o que estudantes de jornalismos e jornalistas formados achariam de eu transferir essas aulas para um espaço barato e democrático, capaz de levar esses conhecimentos a muito mais gente, sobretudo ao estudante pobre – e, quem sabe, credenciar também os pobres a brigar por uma vaga nas redações, que se tornaram ambientes muito elitistas. Encaretadas por manuais de doutrina e comportamento, adestradas pela conduta neoliberal dos anos 1990, quando passaram a responder diretamente pelas demandas do Departamento Comercial, as redações brasileiras se desprenderam da ação política, dos movimentos sociais, do protagonismo histórico a favor dos direitos humanos e da luta contra a desigualdade. Passaram, sim, a reproduzir um universo medíocre de classe média, supostamente a favor de uma modernidade pós-muro de Berlim, onde bradar contra privatizações e a adoração ao deus mercado passou a ser encarado como esquerdismo imperdoável e anacrônico.
Não por outra razão, os movimentos corporativos a favor da manutenção da obrigatoriedade do diploma de jornalista, que resistiram a todo tipo de investida patronal ao longo de duas décadas, foram definitivamente golpeados com o apoio e, em parte, a omissão, da maioria dos jovens profissionais de imprensa, notadamente os bem colocados em redações da chamada grande mídia. Vale lembrar que o jornalismo é, provavelmente, a única profissão do mundo onde existem profissionais que pedem o fim do próprio diploma. Há muitas nuances, claro, nessa discussão, inclusive porque há gente muito boa que, historicamente, se coloca contra o diploma, sobretudo velhos jornalistas criados em velhas e românticas redações, cenas de um mundo que, infelizmente, não existe mais.
Na essência, o fim da obrigatoriedade do diploma não é uma demanda de jornalistas, mas de patrões, baseada num argumento falacioso de liberdade de expressão – na verdade, de opinião –, quando a verdadeira discussão está, justamente, na formação acadêmica dos repórteres. E há uma distância abissal entre opinião e reportagem, porque a primeira qualquer um tem, enquanto a segunda não é só fruto de talento, mas de aprendizado, técnica e repetição.
Nas grandes empresas, o fim da obrigatoriedade do diploma coroou uma estratégia que tem matado o jornalismo: a proliferação de cursinhos internos de treinees, tanto para estudantes como para recém-formados, cuja base de orientação profissional é a competitividade a qualquer custo, um conceito puramente empresarial copiado, sem aparas, do decadente yupismo americano. Digo que tem matado porque esses cursinhos de monstrinhos competitivos relegam o papel universal do jornalista ao segundo plano, quando não a plano algum. A idéia de que o jornalista deva ser um profissional solidário, inserido na sociedade para lhe decifrar os dramas e transmiti-los a outros seres humanos passou a ser um devaneio, um delírio socialista a ser combatido como a um inimigo. Para justificar essa sanha, reforça-se o mito da isenção e da imparcialidade de uma mídia paradoxalmente comprometida com tudo, menos com a sua essência informativa, originalmente baseada no universalismo e no compromisso com o cidadão.
Na outra ponta, o fim da obrigatoriedade do diploma abriu a porteira para jagunços e capangas ocuparem as redações da imprensa regional, longe da fiscalização da lei e dos sindicatos, alegremente autorizados a fazer, literalmente, qualquer coisa com qualquer pessoa. Mesmo para o novo modelo de jornalismo que se anuncia na internet, baseado em disseminação mútua de informações primárias, como no caso dos vazamentos do Wikileaks, haverá sempre a necessidade do tratamento jornalístico dos conteúdos. E, para esse serviço, não há outro trabalhador credenciado senão um bom repórter treinado e formado para essa missão. Formação esta que, insisto, deve ser feita na academia e reforçada na experiência diária da reportagem.
Recentemente, li sobre a criação, em 2010, do Instituto de Altos Estudos em Jornalismo, sob os auspícios da Editora Abril. Entre os mestres do tal centro estavam o dono da editora, Roberto Civita, mantenedor da Veja, e Carlos Alberto Di Franco, do Master de Jornalismo, uma espécie de Escola das Américas da mídia nacional voltada para a formação de “líderes” dentro das redações. Di Franco, além de tudo, é um dos expoentes, no Brasil, da ultradireitista seita católica Opus Dei, a face mais medieval e conservadora da Igreja Católica no mundo.
Sinceramente, não vejo que “altos estudos”, muito menos de jornalismo, podem sair de um lugar assim.
Não tenho dúvidas de que a representação do tal instituto não é acadêmica, embora seja dirigido por Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás no governo do PT, renomado estudioso da imprensa no Brasil. Trata-se de uma representação fundamentalmente ideológica, a reforçar as mesmíssimas estruturas de poder das redações, estruturas ultraverticalizadas, essencialmente antidemocráticas e personalistas, onde a possibilidade de ascensão funcional, sobretudo a cargos de chefia, está diretamente ligada à capacidade de ser subserviente aos patrões e bestas-feras com os subordinados.
Felizmente, o surgimento da internet deu vazão a outro ambiente midiático, regido por outras regras e demandas, um devastador contraponto ao funcionamento hermético das grandes redações e ao poder hegemônico da velha mídia brasileira, inclusive de seus filhotes replicadores e retransmissores Brasil adentro. O fenômeno dos blogs e sua capacidade de mobilização informativa é só a parte mais visível de um processo de reordenamento da comunicação social no mundo. As redes sociais fragmentaram a disseminação de notícias, fatos, dados estatísticos, informes e informações em um nível adoravelmente incontrolável, criando um ambiente noticioso ainda a ser desbravado por novas gerações de repórteres que, para tal, precisam ser treinados e apresentados a novas técnicas e, sobretudo, a novas idéias.
A “era do aquário”, para ficar numa definição feliz do jornalista Franklin Martins – aliás, contrário à obrigatoriedade do diploma –, está prestes a terminar. O jornalismo decidido por cúpulas restritas, com pouco ou nenhum apego à verdade dos fatos, está reduzida a um universo patético de mau jornalismo desmascarado instantaneamente pela blogosfera, vide a versão rocambolesca da TV Globo sobre a bolinha de papel na cabeça de José Serra ou a farsa do grampo sem áudio que uniu, numa mesma trama bisonha, a revista Veja, o ministro Gilmar Mendes, do STF, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás.
Não será a escola de “altos estudos” da Veja e do professor Di Franco, portanto, a suprir essa necessidade. Essa demanda terá que ser suprida por repórteres ciosos de outro tipo de jornalismo, mais aberto e solidário, comprometido com a verdade factual e a honestidade intelectual, interessado em boas histórias. Um jornalismo mais leve e mais humano, mais preocupado com a qualidade da informação do que com a vaidade do furo. Um jornalismo vinculado à realidade, não a interesses econômicos. E isso, certamente, só poderá ser viabilizado dentro de outro modelo, cooperativo e democrático, a ser exercido a partir das novas mídias virtuais.
Por isso, é preciso estabelecer também um contraponto à ideologia da mídia hegemônica no campo da formação, em complemento aos cursos superiores de jornalismo. Abrir espaço para os milhares de estudantes de comunicação, em todo o Brasil, que não têm chance de participar dos cursinhos de treinees dos jornalões e das grandes emissoras de radiodifusão. Dar a eles, de forma prática e barata, uma oportunidade de aprender jornalismo com bons repórteres, com repórteres de verdade.
Foi nisso que pensei quando idealizei, em 2007, a Escola Livre de Jornalismo, junto com outros dois amigos, ambos ótimos jornalistas, Olímpio Cruz Neto e Gustavo Krieger. Com eles, ajudei a montar bem sucedidos ciclos de palestras e oficinas de jornalismo em Brasília. Em 2009, um ano antes do 1º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, em São Paulo, a Escola Livre, em parceria com o IESB, já havia conseguido reunir, na capital federal, os principais expoentes desse movimento no país: Luis Nassif (Blog do Nassif), Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada), Rodrigo Vianna (Escrevinhador), Marco Weissheimer (RS Urgente) e Luiz Carlos Azenha (Viomundo). Uma semana de debates ricos, bem humorados, em um auditório permanentemente lotado de estudantes de jornalismo e jornalistas profissionais. Foi nosso único evento gratuito e, claro, o de maior sucesso. Os ciclos e oficinas, embora tenham tido boa audiência, esbarravam sempre no problema do custo para os estudantes: como nos cursinhos de treinee da velha mídia, acabávamos por privilegiar um segmento de jovens já socialmente privilegiados. É dessa frustração e dessa armadilha que proponho fugir agora.
Por isso, expus no Facebook a idéia de ministrar minhas aulas de Técnica Geral de Jornalismo, divididas em módulos, de modo que cada estudante pague um valor baixo por cada aula. Ou seja, os estudantes vão às aulas que quiserem, pagam na entrada e participam de duas horas de aula de jornalismo sobre tópicos práticos e temas relevantes. Minha idéia é convocar outros repórteres de Brasília a participar desse movimento da Escola Livre de Jornalismo, com o compromisso de, em troca da aula de duas horas, receber 70% do valor arrecadado no dia, porque 30% serão sempre destinados à administração e organização do curso.
Além do valor da aula, ainda a ser estipulado, cada aluno deverá também levar um alimento não perecível qualquer, a ser distribuído para comunidades pobres do Distrito Federal ou instituições de assistência social a serem definidas com futuros parceiros. Esses mantimentos, inclusive, poderão ser usados como moeda de troca para podermos utilizar gratuitamente algum espaço físico em Brasília para ministrar as aulas. É algo ainda a ser definido.
A idéia está lançada. No Facebook, recebi quase 100 adesões imediatas de estudantes, jornalistas, incluindo alunos e ex-alunos realmente satisfeitos com a perspectiva de participar de um movimento interativo desse nível, a preços populares. Espero poder iniciar as primeiras aulas em fevereiro de 2011 e, desde já, conto com a participação de todos os amigos e colegas jornalistas do Brasil que quiserem compartilhar essa experiência. Quanto mais gente boa dando aula, mais gente boa a ser formada. Como nas experiências anteriores, a Escola Livre de Jornalismo espera contar com a parceria das faculdades de jornalismo do DF para transformar em crédito a freqüência dos estudantes nas aulas, de modo a colaborar com uma necessidade acadêmica deles, as horas extra-sala de atividades complementares.
Por favor, quem quiser participar dê o ar das graças. Nossa missão inicial é achar um lugar amplo e legal, com cadeiras e uma boa mesa de professor, para dar as aulas. A depender do nível de adesão dos colegas jornalistas, vamos organizar uma agenda para as aulas, que serão sempre aos sábados, em princípio, das 9 às 11 horas da manhã.
Por enquanto, é esse o meu manifesto, é essa a minha idéia. O resto virá, tenho certeza, na garupa de bons ventos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

28 de dezembro de 1937: Morre o compositor francês Maurice Ravel

Morre em Paris aos 62 anos em 28 de dezembro de 1937 o célebre compositor Maurice Ravel que havia se tornado um grande expoente do impressionismo na música. Ao lado de Claude Debussy, com quem tinha afinidade de estilo, afastou a música clássica francesa do romantismo wagneriano. Compôs música fluida e altamente original dentro dos marcos das formas clássicas. Ravel brilhou nas composições para piano, orquestrando com frequência suas próprias composições e de outros autores.

Joseph-Maurice Ravel nasceu nos Pirineus franceses, perto da fronteira com a Espanha em 7 de março de 1975. Obrigações profissionais do pai levaram a família a Paris, onde o jovem Ravel ingressa no Conservatório Musical aos 14 anos. Matriculou-se como pianista, mas mudou para composição sob orientação de Gabriel Fauré.

Wikipedia

Foto de Ravel, tirada em 1912


Ravel era menos radical como compositor que Debussy, mas rebelde ao seu jeito. Onde Debussy podia compor peças para agradar os mestres do Conservatório e ganhar o Prêmio de Roma, Ravel se recusou a se submeter às regras de composição da escola. Deixar de ganhar prêmios o subestimou aos olhos de seus professores ainda quando, desde cedo, escrevesse peças de sucesso como a Sonata para Violino (1897) e Sheherazade (1898). Devido ao êxito dessas composições, ter deixado de ganhar o Prêmio de Roma de 1905 provocou um escândalo público e a mudança na direção do Conservatório.

Logo após esse episódio, Ravel entrou num período de grande criação, produzindo obras como L'Heure Espagñole e Rapsodie Espagñole (1907), Valses Nobles et Sentimentales (1911), importantes peças para piano e o balé Daphnis et Chloé para o Balé Russo de Sergei Diaghilev em 1912. Por essa época encontrou-se com Igor Stravinsky, formando um grupo de compositores radicais conhecido como Les Apaches. Em 1906, começou mas não concluiu uma homenagem orquestral a Johann Strauss a que chamou Viena, que viria com La Valse 14 anos mais tarde. 

Veja abaixo uma versão africana do Bolero de Ravel, sua obra mais famosa:



Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial deixou de compor. Tentou alistar-se mas foi rejeitado por razões físicas e terminou como motorista militar. Em 1916 afetado por uma disenteria volta a Paris. Pouco depois morre sua mãe que era seu contato humano mais próximo, pois Ravel nunca se casou. Deprimido, passou por longa inatividade musical. Desta época pode-se destacar apenas Poemes de Mallarmé (1915), Trois Chansons (1916), e Le Tombeau de Couperin (1917).

Após a guerra conclui Wien (Viena), considerando-a um ‘poema coreográfico’, mudando o título para La Valse. Após La Valse veio L'Enfant et les Sortilèges (1925), uma turnê pelos Estados Unidos em 1928, e no mesmo ano, Bolero, certamente sua obra mais famosa. O Concerto para Piano em Sol maior e o Concerto para Piano para a Mão Esquerda vieram à luz em 1930 e 1931. Os últimos anos de Ravel foram afetados pela Doença de Pick, mal que se reflete em distúrbios de linguagem, personalidade e comportamento e é um tipo de demência fronto-temporal. Cirurgia de cérebro em 1937 não foi bem sucedida e Ravel morre alguns meses depois.


Ravel era reservado e meticuloso. Poucos viram-no compondo embora muitos o tenham visto orquestrando e seus estudos raramente mostravam sinais de um trabalho em andamento. Como contemporâneos, Ravel e Debussy influenciavam e respeitavam um ao outro, porém seu relacionamento sofria nas mãos de críticos desejosos de denegrir Ravel em favor de Debussy.

De 1900 até sua morte, Debussy era considerado o maior compositor francês, tendo depois Ravel assumido o manto. Ravel e Debussy são amiúde comparados, no entanto eram compositores distintos. Ravel empregou técnicas impressionistas em trabalhos como Daphnis et Chloé, Ma Mère l'Oye, e La Valse, mas ele era na realidade um clássico. Fantástico orquestrador, Ravel utilizava toda a gama de instrumentos, mas colocava cada nota, corda ou instrumento como um joalheiro lapida suas joias. Sua orquestração de Quadros de uma Exposição de Mussorgsky é um de seus mais famosos trabalhos orquestrais. 
 
Fonte: OperaMundi

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Democratização da Mídia passa pela aprovação da ADO 11 no Supremo


Desde o dia 13 de dezembro encontra-se protocolada no Supremo Tribunal Federal, aguardando entrar na ordem do dia para julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a ADO 11, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade – CONTCOP.

Por José Reinaldo Carvalho*

Por incrível que pareça, 22 anos depois de promulgada a Constituição vigente, outrora denominada “Constituição cidadã”, dispositivos constitucionais relativos aos meios de comunicação de massa, imprensa, rádio e televisão - ainda não foram regulamentados por lei.

Em decorrência, impera a lei da selva no setor, inteiramente submetido aos caprichos e ditames de famílias e corporações que, dispondo de infra-estrutura criada pelo Estado, de infinita liberdade e de polpudas verbas provenientes de anúncios, boa parte dos quais de origem governamental, violam o direito fundamental da sociedade à informação. Em lugar desse inalienável direito, usam e abusam do seu próprio, erguendo uma trincheira de luta contra a democracia, para o que se valem da aparatosa usina de mentiras que soergueram e permanece intacta, desde os tempos da ditadura militar.

A ADO 11 tem por foco três questões nodais para a luta pela democratização dos meios de comunicação no país: a garantia do direito de resposta a qualquer pessoa ofendida através dos meios de comunicação; a proibição do monopólio e do oligopólio no setor e o cumprimento, pelas emissoras de Rádio e TV, da obrigação constitucional de dar preferência a programação de conteúdo informativo, educativo e artístico, além de priorizar finalidades culturais nacionais e regionais.

A ADO 11 reveste-se de enorme importância para o país, pois atinge em seu âmago, o monopólio dos meios de comunicação, um dos maiores obstáculos à plena vigência da democracia no país. Colateralmente, atinge um dos principais vícios nacionais, a omissão, no caso do Poder Legislativo, quando se trata de regulamentar os dispositivos constitucionais correspondentes a necessidades estruturais do país e que golpeiam interesses de poderosas corporações. Com a palavra e a ação agora, o Poder Judiciário.

As propostas constantes da ADO 11 constituem o núcleo do que poderia vir a ser uma Lei dos Meios de Comunicação que efetivamente democratize o setor. Daí sua importância estratégica.

Isto explica o silêncio da mídia sobre a sua tramitação na Corte Suprema. Por isso, está nas mãos do movimento sindical ligado ao setor, aos portais e sites de informação e análise política, aos blogueiros progressistas, aos parlamentares comprometidos com a liberdade de expressão e a democratização efetiva do país, ao conjunto das organizações do movimento social, divulgar notícias sobre a tramitação da ADO 11 no STF, acompanhá-la passo a passo, organizar uma campanha democrática por um julgamento favorável e para que prevaleçam os princípios nela defendidos.

O Portal Vermelho, que tem como princípio fundador a luta pela democratização dos meios de comunicação e a plena liberdade de expressão, com as quais é incompatível o oligopólio exercido por um punhado de famílias e corporações empresariais, abre seu espaço para a difusão da campanha em favor da ADO 11.

*Editor do Vermelho

Aborígenes australianos criam partido para defender seus direitos


Mais de quarenta anos depois que os aborígenes obtiveram o status de cidadãos, a Austrália deverá em breve ter seu primeiro partido político autóctone. O partido das First Nations (“primeiras nações”) acaba de ser formado, por iniciativa de Maurie Ryan, um ativista aborígene. Segundo Ryan, 2 mil pessoas pediram para se tornar membros do partido. A comissão eleitoral deverá registrá-lo oficialmente em janeiro.

Esse novo partido político manifesta o descontentamento de muitos aborígenes frente aos dois principais partidos, os liberais e os trabalhistas, acusados de não se preocuparem o suficiente com o destino dos primeiros habitantes do continente.

Até hoje, os autóctones permaneciam à margem do mundo político. Existem alguns parlamentares autóctones nos Estados australianos, mas foi preciso esperar as eleições federais, neste ano, para ver o primeiro deputado aborígene, Ken Wyatt, entrar na Câmara dos Representantes.

“Estamos decepcionados com os dois partidos, que não fazem o suficiente por nós, e que não escolhem candidatos aborígenes para as eleições. Existem partidos autóctones no mundo inteiro, é hora de termos um aqui também para nos representar”, alega Ryan, originário da nação Gurindji, no Território do Norte.

Ele terá muito trabalho pela frente, pois os aborígenes australianos representam a comunidade mais desfavorecida do país. Desemprego e problemas ligados ao alcoolismo corroem a população e, nas áreas isoladas do Território do Norte, as condições de vida às vezes são dignas do Terceiro Mundo. Resultado: segundo a Agência de Estatísticas, a expectativa de vida dos aborígenes é 10 anos menor que a média nacional. E embora os indígenas representem somente 2% da população, eles compõem quase um quarto da população carcerária. “Nós queremos falar sobre os problemas do emprego, da moradia, da saúde. Mas também de direitos fundiários e da soberania”, comenta Ryan.

Na linha de mira do partido, estará sobretudo a “Northern Territory Intervention”, uma grande operação implantada pelo governo liberal em 2007, e continuada desde então pelo governo trabalhista. Esse texto, aprovado após a publicação de um relatório que revelava casos de abusos sexuais em crianças das comunidades aborígenes, deveria solucionar problemas de violência e de abuso de álcool.

Em dezenas de comunidades autóctones do Território do Norte, a população foi proibida de ter álcool ou material pornográfico. Além disso, as bolsas de auxílio às famílias foram colocadas sob tutela. É o caso em Kalkaringi, onde vive Maurie Ryan. “É a lei mais racista de todos os tempos. Ela deve ser abandonada. Essa colocação sob tutela dos auxílios a todas as famílias, sem exceção, tenham elas problemas ou não, é profundamente injusta”, comenta. Além disso, a intervenção foi considerada discriminatória pela ONU.

Embora não se espere que ele vá conseguir muitos votos nos centros urbanos, o partido aborígene poderá levar até 20% dos votos na Austrália Central, segundo analistas. “Houve um grande movimento de desinteresse em relação aos trabalhistas nas últimas eleições, sendo que os aborígenes tradicionalmente votam neles. Isso deixa um lugar potencial para esse novo partido”, acredita Rolf Gerritsen, professor da Universidade Charles Darwin e especialista no Território.

Com o sistema eleitoral de transferência de votos em favor dos grandes partidos, poderá haver uma pressão por parte desse novo partido junto aos pesos-pesados da política australiana. Maurie Ryan quer apresentar candidatos para as eleições regionais em 2012.
 
Tradução: Lana Lim

Fonte: Le Monde via Portal Vermelho

Turquia islamista versus Irã secular?


É possível que o Irã se torne o líder da sanidade e criatividade no Oriente Médio, enquanto o mais vigoroso aliado muçulmano do Ocidente, a Turquia, se transforme na maior fonte de hostilidade da região. Por Daniel Pipes


No início do século XVI, enquanto o império Otomano e o império Safávida lutavam pelo controle do Oriente Médio, Selim I, governando de Istambul, entregava-se ao seu lado artístico ao compor célebres poesias em persa, na época a língua da alta cultura no Oriente Médio. Simultaneamente, Ismail I, governando de Esfahan, escrevia poesias em turco, sua língua ancestral. Esta justaposição vem à mente no momento em que as populações da Turquia e do Irã iniciam uma nova troca.  Enquanto a Turquia secular fundada por Atatürk ameaça desaparecer sob uma onda islamista, a República Islâmica fundada por Khomeini aparentemente titubeia, à beira do secularismo. Ironicamente, turcos querem viver como iranianos, e iranianos como turcos.
Selim I escrevia em persa enquanto Ismail I preferia o turco, sua língua ancestral

Turquia e Irã são países grandes, influentes, de maioria muçulmana, relativamente avançados, historicamente centrais, estrategicamente posicionados, e amplamente observados; ao cruzarem caminhos, como previ em 1994, correndo em direções opostas, seus destinos irão afetar não apenas o futuro do Oriente Médio, mas potencialmente o mundo muçulmano inteiro.

Isto está acontecendo agora. Vamos rever a evolução de cada país:

Turquia: Atatürk praticamente removeu o Islã da vida pública no período de 1923-28. No entanto, ao longo das décadas, os islamistas reagiram e por volta de 1970 formaram parte de uma coalizão de liderança; em 1996-97 até lideraram um governo. Os islamistas tomaram o poder após a estranha eleição de 2002, quando obtiveram um terço dos votos e garantiram dois terços dos assentos parlamentares. Governando com competência e precaução, conseguiram aproximadamente metade dos votos em 2007, momento no qual tiraram suas luvas e as ameaças começaram, desde a descontrolada e excessiva multa cobrada de uma mídia crítica a infundadas teorias de conspiração contra as Forças Armadas. Os islamistas conseguiram 58% dos votos em um referendo em setembro e aparentam estar prontos para vencer as próximas eleições parlamentares, marcadas para junho de 2011.
Caso os islamistas vençam as próximas eleições, isto irá, provavelmente, estabelecer a premissa para que permaneçam continuamente no poder, e durante esse período irão forçar o país à sua vontade, instituindo a lei islâmica (a sharia) e construindo uma ordem islâmica semelhante ao regime idealizado por Khomeini.
Irã: Khomeini fez o oposto de Atatürk, tornando o Islã politicamente dominante durante o seu período no poder, de 1979 a 1989, mas após isso, logo começou a vacilar, com facções discordantes emergindo, a economia caindo, e a população se distanciando do governo extremista. Nos anos 90, observadores externos esperavam a rápida queda do regime. Apesar da crescente desilusão da população, a maior influência do Corpo de Elite da Guarda Revolucionária Islâmica e a chegada ao poder de veteranos endurecidos da guerra Irã-Iraque, simbolizados por Mahmoud Ahmadinejad, deram ao regime uma segunda lufada.
Atatürk excluiu o Islã da vida pública na Turquia e Khomeini o tornou central no Irã

Esta reafirmação das metas islâmicas também aumentou a alienação da população com relação ao regime, incluindo um distanciamento das práticas islâmicas em direção ao secularismo. As crescentes patologias do país, o consumo desenfreado de drogas, pornografia e prostituição apontam para a profundidade de seus problemas. A alienação instigou demonstrações contrárias ao regime logo após as fraudulentas eleições de junho de 2009. A repressão que se seguiu incitou ainda mais raiva contra as autoridades.
Uma corrida está a caminho. Exceto que não é uma competição justa, uma vez que islamistas governam nas duas capitais, Ancara e Teerã.
Olhando para o futuro, o Irã representa tanto o maior perigo quanto a maior esperança para o Oriente Médio. Sua escalada nuclear, o terrorismo, a agressividade ideológica e a formação de um “bloco de resistência” apresentam uma verdadeira ameaça global, abrangendo desde o aumento excessivo do preço do petróleo e gás a um ataque de pulso eletromagnético aos Estados Unidos. Mas se estes perigos puderem ser direcionados, controlados e vencidos, o Irã possui um potencial único de liderar os muçulmanos para fora da escuridão islamista em direção a uma forma mais moderna, moderada e amigável do Islã. Assim como em 1979, tal feito provavelmente afetará muçulmanos em todas as partes do mundo.
Contrariamente, enquanto o governo turco apresenta um menor perigo imediato, sua aplicação mais sutil dos abomináveis princípios islamistas o agiganta como uma ameaça futura. Muito tempo após Khomeini e Osama Bin Laden terem sido esquecidos, acredito que Recep Tayyip Erdoğan e seus colegas serão lembrados como inventores de uma forma de islamismo mais duradoura e insidiosa.
Portanto, é possível que o país mais problemático do Oriente Médio possa se tornar o líder da sanidade e criatividade do amanhã, enquanto que o mais vigoroso aliado muçulmano do Ocidente, por mais de cinco décadas, poderá se tornar a maior fonte de hostilidade e reação. A extrapolação é um jogo de tolos, a roda gira e com a história surgem surpresas.

Dois pontos que não se encaixaram no corpo principal da minha coluna:

(1) Ultimamente, Ancara e Teerã trabalham em conjunto, mas prevejo que em breve se tornarão rivais pela liderança islamista. Orgulho histórico, ambições sectárias e competições geoestratégicas sugerem que o atual momento de harmonia não irá durar muito. Observe a Turquia disputando a liderança iraniana em áreas como talento comercial, poderio militar e autoridade religiosa.
(2) Em 1994, eu apontei esta rivalidade em um artigo, publicado na National Interest, no qual eu ressaltei uma “luta longa, profunda e difícil” provavelmente fermentando “entre dois dos maiores países do Oriente Médio, Turquia e Irã”. Os turcos, eu escrevi, “parecem ainda não ter percebido o que os mulás sabem: que o Islã fundamentalista irá elevar-se ou decair de acordo com o que os turcos fizerem e que, portanto, a Turquia e o Irã estão envolvidos num confronto mortal. Será que os turcos irão acordar a tempo de se defender? Muito depende deste resultado.”

Maria e José na Palestina em 2010

Maria e José na Palestina em 2010

James Petras*Odiario.info
 James Petras 
Neste conto de Natal de James Petras, a alegoria ao nascimento de Jesus mostra-nos a persistência secular da injustiça e aponta-nos a necessidade de lutar por um mundo moderno.


Os tempos eram duros para José e Maria. A bolha imobiliária explodira. O desemprego aumentava entre trabalhadores da construção civil. Não havia trabalho, nem mesmo para um carpinteiro qualificado.
Os colonatos ainda estavam a ser construídos, financiados principalmente pelo dinheiro judeu da América, contribuições de especuladores de Wall Street e donos de antros de jogo.
“Bem”, pensou José, “temos algumas ovelhas e oliveiras e Maria cria galinhas”. Mas José preocupava-se, “queijo e azeitonas não chegam para alimentar um rapaz em crescimento. Maria vai dar à luz o nosso filho um dia destes”. Os seus sonhos profetizavam um rapaz robusto a trabalhar ao seu lado… multiplicando pães e peixes.
Os colonos desprezavam José. Este raramente ia à sinagoga, e nas festividades chegava tarde para fugir à dízima. A sua modesta casa estava situada numa ravina próxima, com água duma ribeira que corria o ano inteiro. Era mesmo um local de eleição para a expansão dos colonatos. Por isso quando José se atrasou no pagamento do imposto predial, os colonos apropriaram-se da casa dele, despejaram José e Maria à força e ofereceram-lhes bilhetes só de ida para Jerusalém.
José, nascido e criado naquelas colinas áridas, resistiu e feriu uns tantos colonos com os seus punhos calejados pelo trabalho. Mas acabou abatido sobre a sua cama nupcial, debaixo da oliveira, num desespero total.
Maria, muito mais nova, sentia os movimentos do bebé. A sua hora estava a chegar.
“Temos que encontrar um abrigo, José, temos que sair daqui… não há tempo para vinganças”, implorou.
José, que acreditava no “olho por olho” dos profetas do Antigo Testamento, concordou contrariado.
E foi assim que José vendeu as ovelhas, as galinhas e outros pertences a um vizinho árabe e comprou um burro e uma carroça. Carregou o colchão, algumas roupas, queijo, azeitonas e ovos e partiram para a Cidade Santa.
O trilho era pedregoso e cheio de buracos. Maria encolhia-se em cada sacudidela; receava que o bebé se ressentisse. Pior, estavam na estrada para os palestinos, com postos de controlo militares por toda a parte. Ninguém tinha avisado José que, enquanto judeu, podia ter-se metido por uma estrada lisa pavimentada – proibida aos árabes.
Na primeira barragem José viu uma longa fila de árabes à espera. Apontando para a mulher muito grávida, José perguntou aos palestinos, meio em árabe, meio em hebreu, se podiam continuar. Abriram uma clareira e o casal avançou.
Um jovem soldado apontou a espingarda e disse a Maria e a José para se apearem da carroça. José desceu e apontou para a barriga da mulher. O soldado deu meia volta e virou-se para os seus camaradas. “Este árabe velho engravida a rapariga que comprou por meia dúzia de ovelhas e agora quer passar”.
José, vermelho de raiva, gritou num hebreu grosseiro, “Eu sou judeu. Mas ao contrário de vocês… respeito as mulheres grávidas”.
O soldado empurrou José com a espingarda e mandou-o recuar: “És pior do que um árabe – és um velho judeu que violas raparigas árabes”.
Maria, assustada com o caminho que as coisas estavam a tomar, virou-se para o marido e gritou, “Pára, José, ou ele dispara e o nosso bebé vai nascer órfão”.
Com grande dificuldade, Maria desceu da carroça. Apareceu um oficial do posto da guarda, a chamar por uma colega, “Oh Judi, apalpa-a por baixo do vestido, ela pode ter bombas escondidas”.
“Que se passa? Já não gostas de ser tu a apalpá-las?” respondeu Judith num hebreu com sotaque de Brooklyn. Enquanto os soldados discutiam, Maria apoiou-se no ombro de José. Por fim, os soldados chegaram a um acordo.
“Levanta o vestido e o que tens por baixo”, ordenou Judith. Maria ficou branca de vergonha. José olhava para a espingarda desmoralizado. Os soldados riam-se e apontavam para os peitos inchados de Maria, gracejando sobre um terrorista ainda não nascido com mãos árabes e cérebro judeu.
José e Maria continuaram a caminho da Cidade Santa. Foram frequentes vezes detidos nos postos de controlo durante a caminhada. Sofriam sempre mais um atraso, mais indignidades e mais insultos gratuitos proferidos por sefarditas e asquenazes, homens e mulheres, leigos e religiosos – todos soldados do povo Eleito.
Já era quase noite quando Maria e José chegaram finalmente ao Muro. Os portões já estavam fechados. Maria chorava em pânico, “José, sinto que o bebé está a chegar. Por favor, arranja qualquer coisa depressa”.
José entrou em pânico. Viu as luzes duma pequena aldeia ali ao pé e, deixando Maria na carroça, correu para a casa mais próxima e bateu à porta com força. Uma mulher palestina entreabriu a porta e espreitou para a cara escura e agitada de José. “Quem és tu? O que é que queres?”
“Sou José, carpinteiro das colinas do Hebron. A minha mulher está quase a dar à luz e preciso de um abrigo para proteger Maria e o bebé”. Apontando para Maria na carroça do burro, José implorava na sua estranha mistura de hebreu e árabe.
“Bem, falas como um judeu mas pareces mesmo um árabe”, disse a mulher palestina a rir enquanto o acompanhava até à carroça.
A cara de Maria estava contorcida de dores e de medo; as contracções estavam a ser mais frequentes e intensas.
A mulher disse a José que levasse a carroça de volta para um estábulo onde se guardavam as ovelhas e as galinhas. Logo que entraram, Maria gritou de dor e a palestina, a que entretanto se juntara uma parteira vizinha, ajudou rapidamente a jovem mãe a deitar-se numa cama de palha.
E assim nasceu a criança, enquanto José assistia cheio de temor.
Aconteceu que passavam por ali alguns pastores, que regressavam do campo, e ouviram uma mistura de choro de bebé e de gritos de alegria e se apressaram a ir até ao estábulo levando as suas espingardas e leite fresco de cabra, sem saber se iam encontrar amigos ou inimigos, judeus ou árabes. Quando entraram no estábulo e depararam com a mãe e o menino, puseram de lado as armas e ofereceram o leite a Maria que lhes agradeceu tanto em hebreu como em árabe.
E os pastores ficaram estupefactos e pensaram: Quem seria aquela gente estranha, um pobre casal judeu, que chegara em paz com uma carroça com inscrições árabes?
As novas espalharam-se rapidamente sobre o estranho nascimento duma criança judia mesmo junto ao Muro, num estábulo palestino. Apareceram muitos vizinhos que contemplavam Maria, o menino e José.
Entretanto, soldados israelenses, equipados com óculos de visão nocturna, reportaram das suas torres de vigia que cobriam a vizinhança palestina: “Os árabes estão a reunir-se mesmo junto ao Muro, num estábulo, à luz das velas”.
Abriram-se os portões por baixo das torres de vigia e de lá saíram camiões blindados com luzes brilhantes, seguidos por soldados armados até aos dentes que cercaram o estábulo, os aldeões reunidos e a casa da mulher palestina. Um altifalante disparou, “Saiam cá para fora com as mãos no ar ou disparamos”. Saíram todos do estábulo, juntamente com José, que deu um passo em frente de braços virados para o céu e falou, “A minha mulher Maria não pode obedecer às vossas ordens. Está a amamentar o menino Jesus”.

Este artigo foi publicado em www.lahaine.org e em http://resistir.info.

Tradução de Margarida Ferreira.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Clarice Lispector nos lembra: ninguém nasce pra ser feliz


 Clarice na sala de seu apartamento no Leme (Rio de Janeiro, 1961). Foto de Claudia Anduja.

por Pedro Gabriel  no blog Amalgama

Se viva, Clarice Lispector teria completado este mês belos 90 anos. Reconhecedor que sou da importância maiúscula de Clarice para a nossa prosa e admirador contumaz de sua personalidade incrivelmente lúcida sou, não obstante, um quase desconhecedor de sua obra. Pretendo ser breve neste artigo a fim de (como manda a prudência) não cutucar minha própria ignorância com vara curta. Não tecerei nenhum comentário sobre algo de específico em sua obra que, como disse, desconheço em profundidade. Meu comentário diz respeito ao sentido geral de sua produção, algo que faz de Clarice uma escritora digna de ser lida e que se refere a uma postura oposta à índole comum da nossa humanidade: a de esconder o rosto sob o travesseiro da ilusão e sob o mesmo dormir o profundo sono da animalidade onde se sonha enganosa e falivelmente com a felicidade.
As pessoas querem ser felizes. O tempo inteiro, a cada instante, interminavelmente. Tal experiência é esperada hoje por todas as pessoas em todos os níveis, individual e social (com o novo laço social que se desenha) e reforçada pela produção das drogas da felicidade e por uma imersão midiática numa atmosfera de euforia onde todos os bens necessários à nossa plena satisfação estão à venda numa série interminável de coisas ofertadas sobr essa égide. Há hoje uma espera constante e permanente por uma vida isenta de perdas, traumas, violência, frustrações, lesões, engano. Enquanto há outro há dor (diria Freud se perguntado hoje sobre o sentido geral de uma de suas obras maiores: O Mal Estar na Civilização). Falando em Freud, aliás, não podemos esquecer do que este disse sobre a literatura que é o reino onde impera soberano o Princípio do Prazer, afirmação que não deve ser confundida com a idéia de fruição (isso seria entender superficialmente a terminologia freudiana, embora não fosse de todo incoerente com a função a-pragmática da arte e do que faz Clarice com sua pena majestosa). Completamente de acordo com a arte-epifania, todas as obras de Clarice que tive contato são tramas tecidas pelo fio do conflito e do trauma, dito em uma única palavra: do Trágico.
Talvez seja esse o critério que mais facilmente nos ajude a distinguir os gigantes intelectuais dos meros vendedores de livros (os celebrados best sellers): na nossa história estética nenhuma obra cunhada sob uma atmosfera edificante com personagens felizes sempre emitindo bons exemplos resistiu à prova do tempo. A vassoura da história felizmente varre de nossa memória obras irrelevantes não condizentes com a dimensão mais elementar da vida, aquelas que não são feitas sob a proposta de um trilhar sobre nossas veredas mais intimas: o ouro verdadeiro só se prova no fogo (já diz um antiquíssimo ditado Hebreu). Mesmo as histórias feitas para as crianças, como analisa Bruno Bettelheim no seu Psicanálise dos Contos de Fadas, são metáforas do que há de mais odioso em nossa condição e que, por meio das narrativas infantis, encontram uma brecha na pesada barreira do recalque para alertar nossas crianças que a vida não é para amadores e que exige que pisemos leve e não confiemos demais. “O mundo não vale o mundo” disse Drummond e poderiam dizer, se perguntados, os contos dos Irmãos Grimm ou as fábulas de Esopo ou de Andersen (o gigante dinamarquês), obra que meu filho (cuja carne hoje ainda é feita de sonho e vento) haverá de um dia ler.
O senso comum (horse sense, como chamam os americanos) insiste em criar histórias, para adultos e crianças, que desprezam o que há de mais inconciliável em nossa condição substituindo os monstros comedores de crianças por histórias sobre pessoas felizes que não conhecem o engano em suas ascéticas trajetórias. Clarice, na contramão dessa índole (como dissemos no início desse escrito) trata de solidão, horror, morte, do eterno problema de nossa incomunicabilidade. Num de seus poucos livros que li (Laços de Família) Clarice levanta a cortina do núcleo familiar demonstrando toda a gama de impossíveis que nos cerca e dos pequenos e grandes crimes cometidos todos os dias. Clarice é uma flor de Lis ardendo em nosso peito lembrando que “nunca fomos felizes” e que, aliás, não somos aparelhados pra isso.
Conforme lemos em Benjamin Moser, seu mais recente biógrafo, Clarice fora concebida para curar sua mãe de uma sífilis incurável transmitida pelos sucessivos estupros de soldados Russos durante a ocupação na Ucrânia. Essa foi a trama que decidiu a presença de Haia (nome de batismo de Clarice) nesse mundo infeliz. Conforme uma antiga crença vigente no pequeno vilarejo de Tchetchelnik, engravidar significava curar-se de qualquer doença. Mania não resistiu e morreu pouco depois de chegar ao Brasil (fugindo da guerra). É a esse evendo que Bruno Moser se refere para argumentar que Clarice é uma missionária falhada: falhada porque não nasceu pra curar, restruturar ou edificar ninguém, senão para exprimir o que há de mais próprio (num sentido heideggeriano) de nossa experiência de estar no mundo. É uma obra onde se percebe a aceitação dos limites e do peso impostos pelo mundo e pelo tempo e um estado de conciliação com o que há de falível em nós próprios. Há paz em Clarice, mas (oportunamente) não há felicidade.
Clarice completou efetivamente 90 anos neste mês. Sua obra permanece viva e atual e assim se manterá enquanto houver algum peso que sua escrita ajude a tornar suportável ou alguma ilusão que precise ser tornada desilusão. Morrer é próprio do que é breve e passa sem deixar vestígio, com isso Drummond nos faz pensar que Clarice não morrerá em definitivo. Sua dissipação ocorrerá, fatalmente, mas como uma pluma suave que, com leveza, dissipa-se e vai se perdendo em algum lugar. Como disse a própria Clarice: perder-se é também caminho.
 
*Psicanalista, atua na clínica e no mundo: consultório, ambulatório, judiciário, docência e blogosfera.
Pedro Gabriel

Wikileaks vai publicar 3700 documentos "sensíveis e polémicos" sobre Israel


Via Diario Liberdade


261210_IsraelJornal de Notícias - O fundador do WikiLeaks anunciou, numa entrevista difundida pela cadeia de televisão árabe Al Jazeera, que o seu portal irá publicar 3700 documentos "sensíveis e polémicos" sobre Israel dentro de quatro a seis meses.
"Ainda estamos a espera de publicar documentos sobre Israel, a grande maioria ainda não foi publicada e são polémicos", afirmou Julian Assange, precisando que até ao momento apenas foram divulgados 1 a 2 por cento dos telegramas relacionados com Israel.
De acordo com Assange, tratam-se de documentos "sensíveis e polémicos" sobre a guerra entre Israel e o Líbano em 2006 ou que abordam o homicídio do alto quadro do Hamas Mahmud al-Mabuh, em Janeiro no Dubai, que foi atribuído aos serviços secretos israelitas (Mossad).
O fundador do Wikileaks, portal que em finais de Novembro começou a divulgar 250 mil telegramas diplomáticos norte-americanos, precisou que os documentos confidenciais a divulgar "têm Israel como origem".
"Temos dependido até agora dos cinco grandes jornais mundiais (que tiveram acesso antecipado a todos os documentos do WikiLeaks). O que tem sido publicado reflecte os interesses desses diários, mas não o que nós consideramos importante", salientou Assange.
É por isso que "vamos publicar todos os documentos à disposição do Wikileaks, o que deverá demorar quatro a seis meses", acrescentou.
O fundador do WikiLeaks negou a existência de qualquer acordo com Israel para não publicar os documentos secretos sobre o Estado judaico, bem como as alegações de que teria mantido contacto com os serviços de informações israelitas.
"Não temos tido nenhum contacto directo ou indirecto, mas supomos que os serviços secretos israelitas observem de perto o que fazemos", afirmou Julian Assange, explicando que apesar de estes serviços não terem feito nenhuma tentativa para se aproximar de actuais colaboradores, o tentaram fazer "com antigos membros da organização".
De acordo com telegramas diplomáticos norte-americanos divulgados esta semana pelo Wikileaks, membros do Fatah, do presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmud Abbas, terão pedido a Israel para atacar o movimento rival Hamas em 2007.
Estes documentos confidenciais também apontam para uma colaboração estreita entre Israel e forças leais a Abbas, quando militantes do Hamas invadiram a Faixa de Gaza há três anos.
O Fatah desmentiu de imediato estas alegações, que considerou uma "conspiração" do Shin Bet (serviços secretos internos israelitas) para dividir o partido.

“Precisamos de um socialismo ecológico”, afirma economista mexicano


Enrique Leff não é um velho hippie ou um ecologista fanático. Mas para o economista mexicano, é impossível discutir economia hoje sem levar em conta a crise ambiental e as mudanças climáticas. Um dos maiores expoentes da corrente “ecomarxista”, Leff é doutor em Desenvolvimento pela Universidade de Sorbonne, leciona Ecologia Política na Universidade Autônoma do México e coordena a Rede de Formação Ambiental para a América Latina e Caribe do programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUD). Ele conversou com o Opera Mundi em Manaus durante o TEDx Amazônia, conferência independente realizada em Manaus.


Leff: a transição de uma lógica econômica e tecnológica para outra, com princípios ambientais

O senhor costuma dizer que a humanidade errou. Como esse erro gerou a atual situação, em sua opinião, uma “insustentabilidade da vida”?

A civilização ocidental gerou uma forma de compreensão que transforma o mundo em objeto, não respeitando a essência da natureza e do ser humano. As religiões judaico-cristãs pensavam o ser humano como criação divina, mas com direito de intervir sobre todos os seres vivos, com quase uma obrigação de subjugar a natureza. Depois houve muitos momentos de construção desse pensamento, como a fundação da metafisica, da filosofia grega. Ali se começa a pensar o mundo não como um ser complexo, mas como entes, coisas. É também o começo da fragmentação do mundo – não se via mais a vida em termos de processos complexos, interatuantes, interdependentes. E começava também uma obsessão de unidade do mundo, de ideias universais. Isso permanece ao longo de todo esse trajeto que vai desde a concepção originária da metafísica até a ciência moderna.

No fundamento da ciênca moderna essa lógica se perpetua?

Sim. A ciência não é o conhecimento universal. É um modo de produção de conhecimento. Mas foi idealizada pela modernidade como a forma suprema de criação de conhecimento. E pretende gerar um controle; é a ideia de controlar a natureza. A ciência pretendeu e pretende ainda chegar a um conhecimento objetivo da vida. Com isso, gerou também uma ideia de progresso, de que o destino dos seres humanos teria que ser um processo sempre crescente. Com todas essas ideias de fundo, vem o mito da ciência capaz de gerar conhecimentos sem a intervenção das paixões, dos interesses dos cientistas ou de grupos sociais.

Quando essa lógica passa da ciência para a economia?

No período da revolução industrial, dois fatos foram determinantes. O primeiro, a construção do novo modo de produção com a máquina de vapor, transformou a lógica do trabalho, surgindo o trabalhador desumanizado, destinado a produzir. Ao mesmo tempo, ciência econômica imaginada estava sendo estabelecida. Karl Marx fez uma crítica de uma lucidez maravilhosa e profunda para desentranhar onde que estava a relação social de dominação no modo de produção, que se pensava neutra...

Como uma lei natural.

Sim, como algo natural. Não se pensou que era uma relação de dominação, mas que o capital era mais forte que a força de trabalho, e assim se equilibravam as forças de produção para gerar uma produção de bem-estar. Uma falácia. A partir disso, a ciência e a tecnologia foram usadas para manter o capital produtivo, para salvar as crises cíclicas do capital. E finalmente a força de trabalho começou a ser substituída por uma aplicação direta da ciência convertida em tecnologia. Ou seja, não tem nem o humano. Hoje, o grande suporte do capital não é mais a força de trabalho. Isso gerou uma artificialidade, que é a economia completamente isolada da natureza. Não quer dizer que ela não utiliza a natureza, mas que utiliza a natureza já tratada como objeto, retirada dessa trama complexa que faz com que a biosfera continue a funcionar como um planeta vivo.
 
Onde Marx errou?

Marx foi o maior pensador crítico, mas nenhum pensamento é um pensamento final. Não conseguiu chegar nisso que agora chamamos de ecomarxismo, ou a segunda contradição: o capital estava se construindo sobre a destruição de suas bases ecológicas de sustentação. Estava objetivando, fragmentando a natureza, rompendo ciclos ecológicos necessários para manter a oferta de natureza de que a economia precisa. O que a economia fez foi explorar em demasia o trabalho, mas ao mesmo tempo, exauriu a natureza. Podemos dizer que Marx estava inserido no seu tempo. Em 1860 se acreditava que a natureza conseguiria se recuperar sempre. Não é o caso hoje. Mais de 100 anos depois, podemos fazer a crítica e avançar em uma conceitualização ainda mais complexa do que esse modo de produção gera. É por isso que precisamos de um socialismo ecológico, com foco na mudança dessa racionalidade econômica. Não é só uma questão do protelariado tomar os meios de produção, não é uma mudança de mãos do mesmo processo, é uma transformação profunda dessa racionalidade econômica.

Então, um marxista hoje tem que considerar a questão ambiental?

Sem dúvida. Hoje não se pode continuar a ser marxista sem pensar nessa contradição entre capital e natureza. O aquecimento global é gerado pela economia, não é uma coisa natural. É isso que ninguém compreende. Nem mesmo os cientistas, os políticos que discutem o aquecimento global. Precisamos entender que não é só uma questão da economia estar produzindo escassez da água, de recursos naturais, mas que está gerando a morte entrópica do mundo.

Como mudar essa racionalidade?

O primeiro passo é baixar a ciência do pedestal. A ciência construiu coisas maravilhosas, mas é só um modo de produção de conhecimentos. Não é o único, a vida humana gerou outros modos de compreensão do mundo. A academia não somente tem que ir para a interdisciplinaridade dentro da academia, mas debater os princípios científicos com outros princípios, como os saberes tradicionais. Hoje em dia há um grande debate se devemos seguir construindo pelas potencialidades da ciência e da tecnologia, ou se deve haver uma ética para normalizar essas potencialidades, porque a ciência gera grandes possibilidades, construiu a bomba atômica, o genoma humano que pode agora produzir seres vivos... É disso que estamos falando, é uma questão ética.

Outro conceito que você aponta nesse novo paradigma é o da alteridade...

A ciência gerou uma unificação do mundo através da dominação do sistema de mercado, a globalização econômica. Cria hábitos e formas de viver unificadas. A desconstrução desse modelo de produção deve pensar a produção a partir de potenciais ecológicos de cada território. A articulação entre a conformação de um território natural e uma cultura gera um mapa de modos diferenciados de produção que não podem ser unificados pela lei do mercado. Devemos conviver nessas diferenças. Mas a alteridade é um conceito ainda mais forte. A ciência diz que vamos construindo sobre as certezas que ela descobre, o que é errado. A verdade, se aceitarmos nossa condição de seres humanos, de seres simbólicos, é que nós não vamos nunca atingir um momento de totalidade, de sapiência absoluta.