No dia 24 de novembro uma greve geral parou um
milhão dos cinco milhões de trabalhadores ativos em Portugal. “A greve
geral com mais impacto até hoje", de acordo com o líder sindical
Carvalho da Silva, tinha como uma das metas lutar contra o desemprego
que acomete 20% dos jovens portugueses e 10,8% da população total do
país (de acordo com o relatório “Emprego na Europa 2010” da União
Europeia). E um dos efeitos dessa situação foi o incremento da emigração
no país. O fluxo atual, só comparado ao êxodo da década de 60, tirou
nos últimos cinco anos 350 mil pessoas do país (dados do Observatório
das Migrações). No entanto, os destinos da emigração se modificaram.
Antes,
os portugueses migravam principalmente para a vizinha Espanha e para o
Reino Unido, mas a taxa de desemprego de 20,3% hoje no país hermano e a
crise inglesa que prevê a demissão de meio milhão de funcionários
públicos no país fizeram com que os lusitanos descessem um pouco no
mapa. “Quando as crises são globais as migrações baixam sempre.
Aparentemente o único país que escapou a esta baixa foi Angola”, explica
Rui Pena Pires, que duas semanas antes da Greve Geral lançava o ‘Atlas
das Migrações Internacionais Portuguesas’.
Em 2006, haviam sido
tirados apenas 156 vistos de portugueses para a ex-colônia. Três anos
depois o número subiu para mais de 23 mil. Atualmente, estima-se que
vivam em Angola 100 mil portugueses: quatro vezes mais do que os
angolanos que vivem em Portugal. Assim, o país subverte o esquema de
migrações norte-sul enquanto Angola contraria a característica das
ex-colônias de exportadora de mão de obra. “Angola é o único país fora
da Europa para onde se dirige a emigração”, continua Rui Pena Pires.
Entre
2005 e 2008, em Portugal "houve mais saídas do que entradas. Há um
déficit migratório", completa Pires. "Este déficit tem consequências no
plano demográfico, normalmente associado à sustentabilidade dos sistemas
de proteção social. Mas não só nesse plano: não conheço nenhuma
economia que cresça com a população a diminuir", explica. De acordo com o
Atlas, embora Portugal tenha uma média de emigrados semelhante à de
países europeus como o Reino Unido, ele não consegue atrair atualmente a
mesma quantidade de imigrantes: são 2,3 milhões de portugueses
espalhados no mundo e menos de meio milhão de imigrantes na pátria lusa.
Portugal é o 22º país com mais emigração, mas conta com apenas 4,2% de
imigrantes na sua população.
A diferença entre as economias dos
dois países ajuda a explicar o fluxo. O Produto Interno Bruto de Angola
deve chegar a 258,388 bilhões de dólares em 2010, com crescimento de
7,08% neste ano. Por outro lado, em Portugal estima-se que o PIB neste
ano será de US$ 161,596 bi, com crescimento de 1,12%. Para os próximos
anos, o FMI estima que a distância entre os dois irá aumentar: o
crescimento da economia angolana deve ser de 6,29% em 2011 e 6,05% em
2012, enquanto a economia lusa deve ter índices pífios, -0,05% e 0,6%
respectivamente.
Nem lá, nem cáFilipa
Faria, profissional da área de eletrônica, trabalha há dois anos em uma
empresa portuguesa de softwares que tem filiais em alguns países
africanos. “Nunca tinha pensado em morar lá até ser me oferecido um
trabalho no ano passado”, conta. “Perguntaram se eu estaria disponível
para ir trabalhar em uma das filiais de Angola porque ainda há muita
falta de mão de obra lá. Pensei duas horas e disse logo que sim, que
aceitava. Do ponto de vista profissional representa um ganho na
carreira”, explica. Além de promoção, Filipa teve um reajuste salarial.
“Mas lá o custo de vida é muito mais alto, estou ganhando apenas 30%
mais do que ganhava em Lisboa”, explica.
Se realmente os
portugueses – e aqui poderíamos incluir também os brasileiros – que
seguem para Angola tem seus salários aumentados, o custo social da vida
nova tem que ser avaliado e não pode ser contado numericamente. Filipa
opta por não fazer como alguns portugueses que conhece, que se mantêm em
“guetos de brancos frequentando restaurantes para estrangeiros de cem
dólares por jantar” e vivendo em condomínios fechados. Ela tem um grupo
de amigos que mescla a comunidade internacional com angolanos. Por
tentar circular normalmente em Luanda ela enfrenta parte das restrições
sofridas pelos angolanos. “São preocupações básicas com água e luz que
eu não tinha em Portugal, como a questão da segurança. Depois, toda a
logística envolvida com os transportes, com o fato de não haver táxis,
mas são coisas que se aprende a lidar”, esclarece.
O choque
cultural também é outro problema que acompanha os lusitanos que vão para
Angola. “Há um pouco o estigma de que os portugueses vão para lá para
se aproveitar e para continuar a `roubar` como na época da colonização.
Isto aconteceu com muitos, mas o que mais vejo é que as pessoas que
estão lá querem juntar um bocadinho de dinheiro para comprar uma casa,
por exemplo”, justifica Filipa. Não seria de se esperar outra reação,
considerando que são apenas 35 anos de independência após uma história
colonial exploradora. O preconceito pode ser visto em agressões verbais e
físicas ou em pequenos atos cotidianos. Filipa conta que em qualquer
compra de rua acaba pagando duas a três vezes o valor que pagaria um
angolano. “Por isso, acabamos pagando para nosso motorista fazer as
compras”, explica.
“Angola foi muito mitificada nas décadas de
1950 e 1960 como uma espécie de futuro de Portugal, era o novo Brasil na
África que se esperava e que também viria a ser multirracial, onde os
portugueses pudessem ficar”, explica Rui Ramos. Para o historiador, além
da motivação econômica, Angola oferece “este fator mítico, sentimental.
Basta falar com estas pessoas que saíram de Angola há trinta anos, mas
que nunca perderam este sentimento de nostalgia. Há muita gente que vai
por vezes para lá para descobrir aquilo que lhe contaram, e gente mais
nova que vai tentar redescobrir o que seus pais ou avós contaram da
forma como viviam em África”.
Filipa não é exceção a esta regra.
Seus pais, brancos e descendentes de portugueses, são angolanos. Vieram
estudar em Lisboa, onde se conheceram e ficaram porque no período
eclodiu a guerra na então colônia. “Todas as histórias da minha família
estão muito relacionadas com Angola. As histórias que me contavam eram
todas fantásticas, envolviam animais selvagens, daqueles que eu só via
na televisão... E um estilo de vida mais descontraído”, conta Filipa.
“Lembro de histórias do meu pai quando era criança, que ele tinha um
macaco no quintal. Isto tudo para mim era fabuloso de imaginar”,
continua. Ela diz ainda que seus pais estão muito preocupados com ela
estar lá, sozinha, “mas ao mesmo tempo eles respeitam muito a minha
opção e se divertem muito em partilhar a minha vida lá: eles conhecem as
ruas, os bares, os cafés... então é giro [legal] mostrar as fotos, as
diferenças”, encerra.
Na mão inversaSe
os portugueses têm dificuldades quando migram para Angola, a vida
tampouco é fácil para quem vai tentar a vida na terra de Cabral. Apesar
de Portugal ser historicamente de emigrantes (ver box), o país também
recebe pessoas vindas de outros países e reproduz as políticas europeias
de imigração. Beatriz Padilla, socióloga especialista em imigração
latino-americana do Centro de Investigações do Estudo de Sociologia
(CIES, Lisboa), acredita que “a relação é sempre unidirecional: só os
imigrantes enxergam a necessidade de se integrar. O discurso é sempre ‘a
culpa é deles, eles são ignorantes, as suas culturas são atrasadas, nós
na Europa temos os valores universais etc’. Então até que ponto as
sociedades europeias recebem com braços abertos aos imigrantes? Eles
queriam mão de obra e vieram pessoas, não é?”.
Em Portugal, a
maior comunidade imigrante é a brasileira, seguida pela caboverdiana e,
depois, pela ucraniana. Esta predominância brasileira se efetivou em
função principalmente do famoso 11 de setembro. Com o endurecimento das
leis imigratórias norte-americanas, brasileiros, em especial vindos de
Minas Gerais, passaram a pousar em terras lusas e, em 2004, já eram a
maior comunidade de migrantes e em 2008 já chegavam a 107 mil. Antes
disso, a imigração brasileira se caracterizava por ser de profissionais
com nível superior, mas hoje a mão de obra não-qualificada é bastante
significativa, com trabalhadores da construção civil e trabalho
doméstico, por exemplo.
“Até dez anos atrás as maiores
comunidades eram de países de língua portuguesa vindos das ex-colônias
da África”, explica Beatriz Padilla. “Apesar de serem os imigrantes com
maior tempo de fixação, os africanos são ainda os mais discriminados,
pois sofrem mais com o racismo e com dificuldades na integração no
mercado de trabalho”, continua. “Muitas vezes os filhos destes
imigrantes continuam a ser discriminados como os seus pais. Mas é claro
que a revolta é diferente porque muitas vezes eles já nasceram em Angola
e não são considerados ou vistos como portugueses”, completa.
Cor de peleNa
periferia de Lisboa, em bairros de realojamento de populações vindas
dos ‘bairros de lata’ – as favelas lisboetas – trabalha Eunice Gomes.
Muitos destes bairros têm população majoritária de imigrantes e Eunice,
que fez sua tese sobre a segunda geração de imigrantes caboverdianos em
Portugal, consegue observar em sua rotina o que escutava em entrevistas.
“A principal revolta das comunidades de portugueses de origem
caboverdiana deriva da identidade, da não aceitação devido à cor da
pele, e do sistema de legalização dos documentos. Eles se questionam ‘se
eu nasci cá por que é que não vou ter direito a ser um cidadão
português?’”. Eunice, mulata, é filha de imigrantes. Embora nunca tenha
viajado a Cabo Verde, ela se identifica mais com a cultura do
arquipélago de seus pais. “A música, a comida, o jeito de ser do
caboverdiano”, explica com sorriso largo, “me fazem sentir mais de lá”,
conta, ilustrando sua própria tese.
A pesquisadora Beatriz
Padilla, neta de espanhóis, nasceu e cresceu na Argentina. De segunda
geração assim como Eunice, ela contrapõe os exemplos dos dois lados do
mar. “Isso nunca foi uma questão para mim, lá somos todos imigrantes.
Hoje sou casada com um português, moro em Lisboa e tenho um filho
português. Entretanto, aqui escutamos gente falando com ele ‘ah que bom,
você vai passar o Natal na sua terra’ e aí eu fico pensando ‘ué, mas a
terra dele é aqui!’ E isso com o meu filho, que é branco, imagina quando
as crianças não são brancas. Elas nascem e não são vistas nem tratadas
como portugueses e isto é muito grave para a sua integração na
sociedade”, garante.
Para romper este ciclo e combater o racismo,
parte essencial da transformação é a alteração das leis. É necessário
que elas facilitem a imigração e a documentação para que os estrangeiros
tenham acesso ao sistema dos países onde vivem – como educação, saúde e
moradia. “Embora a lei imigratória portuguesa esteja melhorando ainda
há muitos problemas e deficiências. Muitos jovens e adultos nascidos
aqui não são cidadãos; às vezes, para conseguir a nacionalidade, têm que
apresentar atestado de antecedentes criminais de Cabo Verde, por
exemplo. Mas eles nunca foram lá, nasceram e cresceram em Portugal. Para
uma família pobre isso pode inviabilizar a efetivação da nacionalidade e
uma das consequências é que eles só têm acesso a uma parte do ensino”,
explica Beatriz.
Isso ocorre porque ali, como em boa parte dos
países europeus, impera o jus sanguinis, ou seja, quem nasce em solo
português e é filho de imigrantes não é português. Esta diferença
modifica drasticamente a relação na incorporação e integração dos
imigrantes aos países de destino. Rui Ramos explica que “Portugal, por
ter sido ser Império, se baseava no direito do solo (jus soli) até o
final dos 1970. Foi então que uma lei retirou a nacionalidade da maior
parte das populações do ultramar”. Segundo ele, “no momento da
descolonização da África deu-se o direito aos cidadãos de escolher suas
nacionalidades. Aqui em Portugal temeu-se a possibilidade de toda a
colônia optar pela nacionalidade portuguesa e vir para cá. Então
promoveram uma lei com efeito retroativo e centenas de milhares de
pessoas perderam o direito de ser portugueses”. A legislação passou a
exigir que aqueles que tinham obtido nacionalidade lusitana, mas não
tinham ascendentes portugueses e não residiam em Portugal há mais de
três anos não eram portugueses. “Essa foi a maneira de, digamos,
desnacionalizar aqueles milhares de angolanos, moçambicanos e outros;
desta forma, introduziu-se este direito de sangue”.
Os pais de
Eunice foram diretamente afetados pela lei. “Eles nasceram em Cabo
Verde”, nos tempos em que o arquipélago era colônia, “e vieram para cá
muito jovens, com cerca de dez anos. Meus pais têm residência fixa e
aguardam a cidadania e isto tem para lá de quarenta anos”, ri. “Estamos
sempre entre dois mundos, acho que a nossa identidade não deveria ser
assim, não deveria haver esta diferença. Sou um pouco caboverdiana e um
pouco portuguesa, mas o que acontece é que não me sinto aceita em
nenhuma das duas sociedades”, lamenta.
Box 1 – Migração e xenofobia nos países vizinhosO
‘Atlas das Migrações Internacionais Portuguesas’ é lançado no momento
em que a Europa assiste a um crescimento de discursos abertamente
xenofóbicos e a chegada ao poder de parlamentares de extrema-direita com
discursos anti-imigração. Assim, na Escandinávia, outrora admirada por
sua abertura, chegaram aos parlamentos dos países líderes da
extrema-direita xenofóbica. A França iniciou a deportação em massa de
ciganos (ver matéria na pág. XX). A chanceler alemã Angela Merkel
decretou o fracasso do multiculturalismo e deixou claro que quem não
aceitar os valores ocidentais não tem lugar por ali, isto no mesmo
instante em que um livro anti-islâmico vira best seller no país. A Suíça
proibiu a construção de minaretes, o leste europeu continua com
políticas nacionalistas inspiradas no fascismo da década de 1930 e a
Itália de Berlusconi segue com duras políticas anti-imigratórias. No sul
da Europa já é notável a redução da imigração africana e, embora as
estatísticas ainda não reflitam, se inicia um movimento de volta para os
países de origem.
“Acho que o principal problema que vamos ter
nos próximos dez, quinze anos, é uma desagregação de alguns princípios
da sociedade europeia que estavam em tese garantidos. Eles têm a ver com
a igualdade, os direitos humanos, com a tentativa de integrar e
incentivar políticas de diversidade. Creio que com a atual crise e a
desintegração que está acontecendo na União Europeia vamos ter uma ou
duas décadas de retração para o Estado Nação. Normalmente é necessária
uma narrativa muito nacionalista para isto acontecer”, explica o
antropólogo e deputado português Miguel Vale Almeida. “Além da crise
global, criou-se também o inimigo islâmico, por assim dizer, e que vai
fazer com que haja uma reconfiguração identitária na Europa muito
baseada simultaneamente na ideia do Estado Nação e, por outro lado, a
diferenciação daquilo que é europeu, ocidental, cristão daquilo que é
oriental, islâmico e por aí afora. E tenho muito receio deste processo”,
lamenta Miguel.
Toda esta onda xenófoba despreza dados de um
estudo da ONU que afirma que nos próximos 40 anos a população europeia
em idade de trabalho se reduzirá em 20%. Ou seja, a Europa será ainda
mais dependente de mão de obra imigrante, e corre o risco de deparar com
o que ocorre em Portugal atualmente.
Box 2 – A imigração como problemaO
historiador português Rui Ramos coloca a criação do discurso do
‘problema da migração’ em uma perspectiva histórica. “A Europa começou
por ser uma grande `exportadora de população` no século XIX antes de se
tornar no século XX uma importadora do resto do mundo. O que é
interessante é que tanto na fase em que importava como na que exportava,
se via a circulação das pessoas como um problema”, explica. “Isto tinha
muito a ver com os tipos de Estados que se desenvolveram na Europa a
partir do século XIX, que são os Estados nacionais que procuravam
populações homogêneas e coesas, e que viam a perda de população como um
problema porque se estava não apenas a perder mão de obra como também
soldados, recrutamento militar. E via também na entrada daqueles que não
eram nativos, que não eram educados conforme os sistemas nacionais, uma
perturbação da coesão nacional.”
Desde o início do século
passado um terço do crescimento demográfico português é absorvido pela
emigração. Entre 1886 e 1950, 1,2 milhão de portugueses chegaram ao
Brasil. Até a II Grande Guerra Mundial era para aí que se direcionava o
maior fluxo de emigrantes lusos. Neste momento, os portugueses se
caracterizavam por uma emigração pouco qualificada. Após a guerra o foco
mudou para Estados Unidos, Canadá e Venezuela. Durante seu boom
petroleiro, o país de Hugo Chávez foi um polo receptor de imigrantes no
sul, situação comparável ao que se passa atualmente com Angola.
Durante
a década de 1960, os lusitanos seguiam principalmente para França,
Alemanha e Luxemburgo. Com a Revolução dos Cravos, que marcou o início
da redemocratização em 1974, a emigração praticamente cessou. O período,
que coincide com a descolonização da África, foi marcado pelo retorno
de meio milhão de portugueses que viviam nas ex-colônias. Com a entrada
na União Europeia em 1986, reinicia-se a onda emigratória em direção à
Suíça e depois em direção aos demais países da UE. Neste momento, o
perfil do emigrante passa a ser de um profissional qualificado. Em 2000,
por exemplo, 13% dos portugueses com nível superior emigraram. Depois
da crise econômica global, as emigrações começaram a se dirigir para
Angola.
* Eliza faz parte do coletivo de Africa Tas a Ver:
www.tasaver.org