“Nós somos a expressão da liberdade”, define Carlos Lugo, coordenador
da rádio Negro Libre Primero (101,1 FM), numa manhã de domingo em
Caracas. É com este espírito ideológico que as mais de 244 rádios
comunitárias da Venezuela atuam, acreditando na força do meio de
comunicação para promover a tão desejada transformação socialista no
país.
Desde o fracassado golpe de Estado promovido pela oposição
em 2002, o ex-general militar Hugo Chávez difunde sua ideologia
política, principalmente, pelos meios de comunicação públicos, como o
jornal Ciudad CSS, a emissora Telesur, a Radio Nacional de Venezuela,
entre outros.
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Locutores na rádio Ali Primera (crédito: Maísa Tomaz) |
Rádios comunitárias
O processo “revolucionário”,
que, segundo os chavistas, a Venezuela atravessa, tem apoio massivo das
rádios comunitárias, com transmissão sustentada pelo eleitorado mais
fervoroso do presidente, as classes baixas.
Estas rádios
comunitárias, em grande parte, possuem como principal objetivo a
propagação dos ideais socialistas do bolivarianismo, os quais se valem
da concepção de que os países latino-americanos devem emancipar-se da
dependência do capital norte-americano e europeu, nações que, na visão
de Hugo Chávez, exploram a classe trabalhadora por intermédio das super
lucrativas multinacionais.
“Nós somos revolucionários,
acreditamos que para construir uma sociedade mais justa há de se
trabalhar, formar as pessoas, nos prepararmos. Neste momento, apoiamos o
projeto do presidente Chávez porque, ainda que não seja o governo que
sonhamos, é o que mais se assemelha ao que sempre nós sonhamos”, declara
o coordenador editorial Yaarabid Gomez, da rádio Ali Primera (98.3 FM).
O
fato é que, na prática, as comunidades adquiriram voz própria e
liberdade para comunicar não apenas os ideais socialistas do
bolivarianismo, mas também o que é de interesse coletivo do bairro. A
rádio tornou-se um meio alternativo que na sua essência socialista
transcende o simples “informar”, ela surge como uma necessidade de
comunicação entre os moradores, como é a história da Negro Libre
Primero, localizada em um antigo prédio de três andares na periferia de
Caracas.
“No ano de 2002, em meio ao golpe de Estado e greve do
petróleo, o cidadão pobre que vinha a este posto (à frente da rádio) não
poderia comprar a gasolina barata ou comprar o gás na bodega da
esquina. Todos estes elementos a oligarquia mandou fechar, e as pessoas
não sabiam onde poderiam buscar estes produtos. Foi então que começamos a
perceber que estávamos sem comunicação”, relembra o também apresentador
Carlos Lugo.
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Rádio Negro Libre Primero realiza projetos sociais (Crédito: Renan Justi) |
Outras iniciativas
Para quem é morador da
comunidade La Candelaria, onde é sintonizada a Negro Libre Primero,
existe o que eles chamam de processo de desenvolvimento social. Graças à
radio, a comunidade dispõe de iniciativas sociais e projetos de
capacitação profissional. “Estes cursos (carpintaria, construção e
costura) são preparatórios para estabelecermos grandes redes coletivas,
onde todos podem compartilhar e ser donos daquilo que produzimos”,
declara Lugo.
As novas instalações da rádio mostram que o próximo
passo, como já está sendo construído, será a criação de uma padaria e
açougue dentro do prédio da rádio, onde as pessoas irão aprender a
produzir o que elas precisam consumir e, inclusive, adquirir mantimentos
por preços menores, desprendendo-se do consumismo capitalista.
A
moradora do bairro, Pátria América Zapata, que participa das aulas de
costura, busca no passado a explicação para o processo
“revolucionário-socialista” que a Venezuela chavista almeja há tanto
tempo. “Estamos aqui hoje, data 9 de outubro, dia importante para todos,
morte de Ernesto Che Guevara. E aqui, na rádio, enquanto abrimos estes
projetos de formação e capacitação, fazemos honra a Che.” E complementa
sobre o ambiente de igualdade: “O bom daqui é que todos sabemos e todos
vamos aprender”, afirma Zapata.
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Rádio Pérola define programação com a comunidade (Crédito: Maísa Tomaz) |
Conteúdo colaborativo
Como decreta o governo ao
sancionar a livre atuação dos meios alternativos (Lei Orgânica de
Telecomunicação, de 2000), o conteúdo dos programas exibidos nas rádios é
decidido de forma participativa entre quaisquer membros engajados da
comunidade e produtores, construindo-se um laço de identificação com o
material que vai ao ar.
É com base nesta lei que a rádio Perola
(92.3 FM), instalada no piso térreo de um prédio residencial, define sua
linha editorial. Sua programação é produzida com responsabilidade,
centralizada nas questões que envolvem o bem social de quem vive no
bairro Caricuao. Um exemplo é o programa “Em Família”, apresentado por
Cristel Arrellano, funcionária do Ministério da Educação da Venezuela,
que orienta os pais sobre como melhorar a qualidade de vida da população
infantil, abordando temas ligados à saúde e educação.
A
iniciativa de organizar um programa com estes temas surgiu a partir do
alto número de jovens grávidas que despontou na comunidade. “Temos anos e
anos lutando e trabalhando por isto, que para nós significa um projeto
de vida, um sonho realizado por ajudar muitíssimas pessoas que não tem
tantas alternativas”, revela Arellano.
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Rádios funcionam na periferia de Caracas e comunidade ajuda a manter emissoras (Crédito: Renan Justi) |
Meio alternativo
Um fator decisivo para o
nascimento das rádios comunitárias foi a falta de identificação com os
meios de comunicação privados, por não se sentirem representados por um
conteúdo produzido pelas classes mais abastadas. “Hoje e ontem, os meios
de comunicação privados tentam monopolizar as rádios. Surgimos, então,
por uma necessidade de sermos escutados, das pessoas poderem dizer o que
pensam, afinal, as comunidades também têm o direito de expressar-se sem
comercializar o meio”, diz Marcos Flores, colaborador da Perola, sobre a
democratização comunicacional do país.
Embora haja apoio
incontestável dos meios comunitários às campanhas do presidente Chávez,
mantido no poder há 12 anos, não há qualquer recompensa financeira por
parte do governo. O sustento da rádio Ali Primera, montada dentro da
Universidade Simón Rodriguez, é sacado do bolso de cada produtor, que
colaboram mensalmente com 20 bolívares fortes, o equivalente a 8 reais. O
coordenador Yaarabid esclarece este procedimento ao ilustrar como eles,
moradores do bairro El Valle, conseguiram dinheiro para um novo
equipamento. “Aqui sequer fazemos publicidade institucional. Em 2002, o
CD player da rádio foi danificado e tivemos que vender nossa moto para
comprar um novo”, revela.
Se as recentes eleições legislativas,
em setembro, na Venezuela apontaram uma queda de prestígio do partido de
Chávez (PSUV) perante os venezuelanos, Yaarabid mantém um discurso fiel
e coerente à ética socialista, mas com ressalvas. “Nós acreditamos
neste processo revolucionário porque estamos comprometidos com o próprio
princípio moral, nossa forma de pensar, independente se Chávez preste
algum apoio econômico”, finaliza.