A discussão
sobre florestas está nas primeiras páginas dos jornais e no horário
nobre das emissoras de rádio e televisão. A boa notícia é que, dessa
vez, o acalorado debate não é consequência da divulgação de números
alarmantes de derrubadas na Amazônia.
Graças a uma atuação
firme de combate ao desmatamento iniciada no primeiro governo Lula, que
teve continuidade no segundo e, espera-se, prossiga no de Dilma
Rousseff, os índices vêm diminuindo ano a ano. O monstro, que parecia
incontrolável e nos assombrou e envergonhou durante os séculos em que
reinou na Mata Atlântica e na Caatinga e as décadas em que ditou as
regras na Amazônia e no Cerrado, mostrou sua fragilidade ao ter que
enfrentar compromisso político e ação firme do governo, impulsionado a
agir pela pressão da sociedade.
A má notícia, entretanto, é que essa intensa
discussão não é motivada pela evidente necessidade de aperfeiçoamento da
legislação florestal, a fim de torná-la mais moderna e compatível com o
atual momento em que vivemos. Momento este, marcado por um forte
crescimento da consciência ambiental e da valorização dos princípios da
sustentabilidade.
O que estamos
assistindo, é uma disputa desigual entre os que querem impor uma
flexibilização total das normas de conservação e os que,
impossibilitados de fazer a agenda avançar, estão na defensiva, tentando
garantir que o estrago seja o menor possível.
Essa não é a primeira vez que parlamentares da
intitulada “bancada ruralista”, constituída pelo que há de mais atrasado
no campo, tentam flexibilizar a legislação. Em 2000 quase conseguiram.
Não fosse a vigorosa reação da opinião pública e a resistência de alguns
poucos parlamentares, que levaram o então presidente Fernando Henrique
Cardoso a intervir no processo, teria sido aprovado o famigerado
relatório do Deputado Micheletto (PMDB-PR), que literalmente destruiria
os instrumentos legais de proteção da vegetação nativa do país.
Um período de avanços
Desde essa última investida até agora, algumas
coisas mudaram nos processos de degradação florestal. E a mudança foi,
finalmente, após décadas de descontrole, para melhor.
Na Amazônia, entre 2004 e 2010, o desmatamento anual
despencou de 27.423 km² para 6.451 km², atingindo a menor taxa
registrada desde que teve início o monitoramento realizado pelo
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 1988. Nos demais
biomas o desmatamento também entrou em declínio, embora no Cerrado os
índices ainda sejam alarmantes.
Para se chegar a esse resultado, ainda não
completamente satisfatório, visto que o desmatamento, embora menor,
continua em proporções muito altas, foi implementado um conjunto inédito
de fortes medidas de controle.
Somente na Amazônia, onde o governo concentrou seus
esforços no período de 2004 a 2010, foram criadas cerca de 261 mil km²
de unidades de conservação e homologadas aproximadamente 180 mil km² de
terras indígenas. Essas novas áreas protegidas tiraram do alcance de
especuladores e grileiros uma área equivalente à soma dos territórios
dos estados de São Paulo e do Paraná.
Para tornar ainda mais eficiente a ação contra a
grilagem, um dos principais fatores de desmatamento na Amazônia, foram
cancelados nos cadastros do Incra mais de 66 mil títulos de posses
ilegítimas e modificados radicalmente os mecanismos e procedimentos para
registro de posse.
Somaram-se a isso as operações do Ibama integradas
com a Polícia Federal e polícias ambientais dos estados que levaram ao
fechamento de aproximadamente 1.500 empresas clandestinas, apreensão de
milhões de metros cúbicos de toras, desmonte de máfias da madeira e da
especulação de terras públicas, que operavam há décadas na região, e a
prisão centenas de pessoas, incluindo funcionários públicos dos governos
federal e estaduais.
Complementando essas medidas, vieram outras no campo
legal, como a aprovação da Lei de Gestão de Florestas Públicas (Lei
11.482/06) e da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/06) e a edição de
vários decretos, em especial os de números 6.321/07 e 6.514/08, que
definiram mecanismos muito consistentes para fazer valer o cumprimento
do Código Florestal.
Contraofensiva ruralista
Conhecendo esse
contexto, fica evidente não ser mera coincidência o momento escolhido
para esse grande esforço empreendido pelos ruralistas, no sentido de
buscar promover a completa desestruturação da legislação de proteção à
vegetação nativa do país. Ele é consequência direta da percepção de que
os produtores rurais em situação irregular enfrentariam cada dia mais
dificuldades para continuarem a deixar de aplicar as exigências legais,
frente os novos mecanismos de controle e punição engendrados nos últimos
anos.
O movimento antiambiental em andamento agora na
Câmara, entretanto, tem uma diferença fundamental em relação ao de 2000:
ele foi, dessa vez, minuciosamente preparado em todos os seus aspectos.
Do ponto de vista processual, ressuscitaram um
projeto de 1999, que já tinha sido arquivado duas vezes e o submeteram à
análise de uma comissão especial criada em setembro de 2009 pelo então
presidente da Câmara, Michel Temer, composta quase que exclusivamente
por parlamentares ligados ao setor ruralista.
Do ponto de vista político designaram o comunista
Aldo Rebelo como relator. Ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rebelo é
detentor de profundo conhecimento dos processos legislativos, obtido em
seus cinco mandatos consecutivos.
Do ponto de vista
técnico foram ainda mais longe. Fizeram surgir dois relatórios
produzidos por uma unidade da Embrapa, a “Embrapa Monitoramento por
Satélite”, de resultados discutíveis, mas muito úteis às teses
ruralistas.
Um deles intitulado
“Alcance territorial da legislação ambiental e indigenista”, baseado em
leitura tendenciosa dos dispositivos legais em vigor e em erros
primários de aritmética, serviu de argumento para sustentar um suposto
engessamento territorial da agropecuária brasileira pela legislação
ambiental. Amplamente divulgado em audiências públicas e alardeado pelos
líderes ruralistas por todo o país, o relatório chegou a afirmar que a
área disponível para a agropecuária era “negativa” no Brasil.
Outro relatório, ainda mais questionável, intitulado
“A dinâmica das florestas no mundo”, afirmava que nos últimos 8 mil
anos o volume de florestas no Brasil teria saltado de 9,8% para 28,3% em
relação ao total existente no planeta. Tal proeza, segundo os autores,
deveria render louros e reconhecimento internacional e não mais pressões
pela conservação. O estudo só não esclareceu aos leitores que o
desmatamento em nosso país atingiu taxas anuais de proporções tão
grandes que, mantido o ritmo do início dos anos 2000, estaríamos
repetindo em poucas décadas o mesmo erro cometido em séculos pelos
demais países criticados no relatório.
Dessa forma, com uma comissão blindada pelos
representantes do setor ruralista, um relator de reconhecida competência
parlamentar e trânsito no Congresso Nacional e estudos técnicos de
encomenda, o resultado não poderia ser outro. No dia 6 de julho de 2010,
a Comissão Especial destinada a proferir relatório sobre o Projeto de
Lei 1.876 de 1999, aprovou o substitutivo de Aldo Rebelo por treze votos
a favor e cinco contra.
Com a justificativa
de que há um enorme contingente de produtores rurais em situação
irregular, o que é verdade, e que seria necessário aprimorar os
mecanismos que estimulem, apoiem e facilitem a regularização, com o que
todos concordam, o substitutivo modifica profundamente as exigências
legais atualmente em vigor.
As alterações propostas fazem que, como num passe de
mágica, as irregularidades deixem de existir e o que era um passivo
ambiental de uma propriedade rural praticamente desapareça. Com isso,
muito pouco do que foi ilegalmente desmatado permanece com a obrigação
de ser recuperado ou compensado, como exige a legislação brasileira
desde 1934.
Uma comparação com as
iniciativas governamentais de regularização do pagamento de impostos,
os chamados Programas de Recuperação Fiscal (Refis), pode ajudar a
entender a questão.
O Refis visa criar oportunidades para o recolhimento
de impostos atrasados, que dificilmente seriam pagos em condições
normais de prazos e incidência de juros. Além disso, tem o objetivo de
regularizar a situação dos contribuintes inadimplentes que ficam sem
acesso ao credito público. Para tanto é dado um desconto e os valores
são parcelados de forma a tornar viável o pagamento.
O substitutivo de Aldo Rebelo tenta criar uma
espécie de “Refis para devedores de Reserva Legal e áreas de preservação
permanente”. O problema é que ele propõe mudanças tão radicais na
legislação que seriam comparáveis ao governo mudar a alíquota do imposto
que está atrasado durante a negociação do pagamento da dívida. Ora, se a
alíquota é alterada para menor, como exigir que os devedores paguem os
valores atrasados calculados com uma alíquota que já não existe.
Contrariando a justificativa original de facilitar a
regularização, o substitutivo retira propriedades da situação
irregular, sem que o proprietário rural tenha que corrigir pelo menos
parte do ato ilegal praticado.
Esse é um dos efeitos mais perversos do texto, pois
acaba por beneficiar quem desmatou em detrimento de quem cumpriu a lei e
possui parte de sua propriedade com Reserva Legal e APP conservada.
O outro efeito negativo, tão grave quanto o
primeiro, é que ao diminuir a dimensão das áreas que devem ser mantidas
com vegetação nativa, conforme veremos a seguir, o substitutivo torna
possível a autorização de desmatamento de extensas áreas hoje protegidas
pelo atual Código Florestal.
Estímulo aos desmatamentos
É forçoso reconhecer
que o substitutivo de Rebelo foi engenhosamente construído. Salvo
dispositivos escandalosamente antiambientais, a maioria dos problemas
está nos detalhes de um texto que possui 55 artigos e 37 páginas. Os
principais são expostos a seguir:
1.
Introdução do conceito de “Área rural consolidada”. Ao definir essa
nova figura legal, o substitutivo simplesmente converte para essa
categoria as ocupações irregulares feitas até 22 de julho de 2008 em
fragrante desrespeito à legislação ambiental. Mais do que um jogo de
palavras, introduz uma ideia que será posteriormente defendida à
exaustão, de que o que está feito não deve ser revertido. Uma espécie de
direito adquirido para quem desrespeitou a legislação ambiental.
2.
Ampliação do conceito de pequena propriedade rural, sem critérios
socialmente adequados, possibilitando o aumento significativo de
proprietários rurais beneficiados pelo tratamento diferenciado e
preferencial dado aos pequenos produtores rurais, mesmo sem o serem.
3. Modificação
do parâmetro para o cálculo das áreas de preservação permanente (APP)
nas margens dos rios, levando à redução das áreas que se encontram em
situação irregular e que, portanto, teriam que ser recuperadas, além de
permitir futuras autorizações de desmatamento onde hoje é proibido.
4.
Redução de 30 para 15 metros a faixa de proteção (APP) das margens de
rios de até cinco metros. Essa modificação, combinada com a anterior,
vai reduzir drasticamente a proteção legal das matas ciliares,
desobrigando a recuperação ou viabilizando novos desmatamentos.
5. Liberação da ocupação e desmatamentos da vegetação nativa situada em altitude superior a 1.800 metros, hoje protegida como APP.
6. Eliminação
da proteção das áreas de várzeas, que deixam de ser consideradas como
APP, sujeitando os corpos d’água a terem suas áreas de inundação natural
totalmente degradadas e contaminadas por uso intenso de pesticidas e
adubos.
7.
Eliminação da obrigatoriedade de recuperar a Reserva Legal para
propriedades de até quatro módulos fiscais, equivalentes a seiscentos
hectares na Amazônia.
8.
Desconto de área equivalente a quatro módulos fiscais no cálculo da
Reserva Legal degradada a ser recuperada nas médias e grandes
propriedades.
9.
Computo da área de preservação permanente no cálculo da Reserva Legal
para todo o país, independentemente das dimensões da propriedade,
reduzindo o montante de área ilegalmente desmatada a ser recuperada.
10.
Anistia “branca” de cinco anos para desmatadores irregulares. Esse é um
dos pontos mais graves e sofisticados do substitutivo. Estabelece a
obrigatoriedade da União e dos estados elaborarem, no prazo de até cinco
anos, Programas de Regularização Ambiental fixando os parâmetros e as
condições para a recuperação da vegetação nativa nas propriedades rurais
irregulares. Durante o período de elaboração do tal Programa, o
proprietário nada precisa fazer e está autorizado a continuar utilizando
economicamente a área que desmatou ilegalmente. Além disso, suas multas
e seus processos por desmatamento de antes de 22 de julho de 2008 ficam
suspensos.
Há muitos outros
aspectos nocivos no substitutivo, como a transferência de competências
do Conselho Nacional do Meio Ambiente para os governos federal,
estaduais e municipais, que podem editar decretos e atos normativos sem
nenhum controle social ou a possibilidade ambientalmente equivocada de
permitir a compensação da Reserva Legal em qualquer bioma.
O único dispositivo que tem um aparente caráter
ambiental no substitutivo de Aldo Rebelo é a proposta de moratória para
novos desmatamentos por um período de cinco anos, a partir da
promulgação da lei. Entretanto, cotejando essa previsão com o conjunto
de modificações, que tornarão praticamente impossível controlar e punir
os desmatamentos ilegais, fica evidente a sua iniquidade.
O grau de acirramento do debate, resultado da
radicalização do substitutivo e do próprio posicionamento de Aldo
Rebelo, vem conduzindo a um impasse raras vezes visto. No esforço para
impedir a desconstituição da legislação ambiental, praticamente nada
está sendo feito para a definição de instrumentos legais de compensação
aos que preservaram, seja por meio de mecanismos de pagamento por
serviços ambientais, seja pela criação de um mercado que remunere a
floresta como ativo econômico.
O que está mobilizando a academia, os empresários
esclarecidos e os ambientalistas é a defesa de uma agenda
preservacionista do século passado e não a do futuro onde será
imperativo desenvolver instrumentos para viabilizar a coexistência entre
o aumento da conservação e o aumento da produção. Esse é o desafio que
deveria estar consumindo as energias dos envolvidos na discussão do
Código Florestal.
Sem sinais de avanço, as reuniões se multiplicam no
Congresso e no Palácio do Planalto. Uma comissão de negociação foi
montada pelo atual presidente da Câmara, para se buscar um acordo que
permita colocar o substitutivo em votação sem que vire uma polêmica
capaz de gerar fissuras na base do governo, com graves repercussões
junto à opinião pública. Até agora nenhum resultado concreto nessa
direção foi obtido e multiplicam-se informações desencontradas e
contraditórias sobre supostos acordos entre as partes envolvidas.
Nada parece ser
suficiente para convencer a bancada ruralista e seu novo líder de que a
proposta tal como está é um retrocesso inaceitável, incapaz de levar
tranquilidade ao campo e, muito menos, estabelecer a tão desejada
segurança jurídica para o pleno desenvolvimento da atividade
agropecuária no país.
As lideranças ruralistas com forte influência e
trânsito nos arcos, cúpulas e abóbadas de Brasília parecem ter certeza
da aprovação de um substitutivo que finalmente as desobrigará do
cumprimento de exigências que estão previstas em lei desde o governo do
presidente Getúlio Vargas, quando foi editada a primeira versão do
Código Florestal, em 1934. Foi naquela época, há mais de oitenta anos,
que foi estabelecido que as florestas eram “interesse comum de todos os
habitantes do país” e definida a obrigatoriedade de preservação de 25%
da vegetação nativa das propriedades rurais e das florestas protetoras,
destinadas a conservar os recursos hídricos e evitar a erosão, entre
outras funções.
Como em 2000 parece que restará a presidente atuar junto às lideranças do Congresso para evitar o pior.
João Paulo R. Capobianco
Biólogo e
ambientalista, é membro do Conselho Diretor do Instituto Democracia e
Sustentabilidade, foi secretário nacional de Biodiversidade e Florestas e
secretário executivo do Ministério do Meio Ambiente de 2003 a 2006. |