Mais uma vez, o país se deparou com uma grande crise nos altos
escalões do governo logo no início de um novo mandato presidencial, no
caso, o enriquecimento do chefe da Casa Civil, Antonio Palocci, por meio
de consultorias corporativas que lhe teriam auferido uma riqueza de 20
milhões de reais entre 2006 e 2010. Para analisar todo o contexto
político que culminou na queda de outro cacique petista desse
posto-chave, o Correio da Cidadania conversou com o filósofo Roberto Romano.
Para o professor, o caso apenas reflete a instabilidade inerente
ao modo de funcionamento do Estado brasileiro, calcado numa grande
concentração de força pelo Poder Executivo, hegemônico nas políticas
públicas e na arrecadação de recursos. Assim, nada mais previsível que
Palocci tenha se tornado alvo fácil do jogo político violento que
permeia nosso Congresso, “que pratica lobby selvagem para si mesmo” –
explicativo também da falta de vontade parlamentar de regulamentar tal
prática.
Mantendo as mesmas características de “funcionamento”, o Estado
brasileiro se encontra em momento mais instável, colocando à prova a
habilidade política de Dilma, ainda pouco comprovada. Na opinião do
filósofo, casos com a aprovação do Código Florestal apenas ilustram o
“grande xadrez que se joga, no qual a presidente está levando
xeque-mate”, agravado pela interferência de Lula em meio à tormenta.
Romano volta a bater na tecla da democratização dos partidos,
hoje cada vez mais reduzidos às vontades de seus líderes. Sem esta
democratização, a discussão sobre uma reforma política é nada mais que
um “engodo”, pois não será enfrentada a “oligarquização dos partidos”,
fenômeno que o filósofo já identifica no PT.
Tal confusão no seio do governo só abre mais caminho para o retorno triunfal de Lula em 2014, acredita Romano.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como o senhor analisa o início do governo Dilma Rousseff?
Roberto Romano: Tem sido bastante tumultuado, como
estamos vendo. A presidente não tem a maestria política do seu protetor,
o Luiz Inácio Lula da Silva, pois nunca tinha feito uma carreira
política, sendo mais do plano da execução, dos escritórios. E já tinha
mostrado anteriormente bastante falta de sentido diplomático no trato
com subordinados e aliados.
Dessa forma, era de se esperar que muitos choques surgissem no seu
governo. Além disso, o governo continua exatamente na mesma estrutura do
Estado brasileiro tradicional, continua reiterando sua hegemonia
absoluta dentro do Estado, por meio da arrecadação de impostos e do
monopólio das políticas públicas, concentrando tudo nas mãos dos
ministérios. Isso faz com que a função da Casa Civil seja essencial para
o relacionamento entre a presidência da República, os demais poderes e a
sociedade.
Como sabemos, do lado do Congresso Nacional temos oligarquias
regionais que tentam arrancar da presidência o máximo possível de
impostos e verbas públicas para sua região. E essas oligarquias fazem
pressão junto à Casa Civil para que despache à presidência e depois ao
Congresso iniciativas e projetos que alarguem seu poder.
Se nós temos na chefia da Casa Civil uma pessoa com problemas de
comportamento político ou ético, essa pessoa tende a ser o alvo de
denúncias, chantagens, proposições, que levam quase sempre ao
afastamento. No período FHC, o ministro Hargreaves foi afastado por
problemas semelhantes. José Dirceu caiu, Erenice Guerra caiu e, agora, o
Palocci.
Assim, eu diria que o governo está enfrentando os problemas
tradicionais do Estado brasileiro, sob a super-hegemonia do Executivo.
Com isso, temos um panorama que não é tranqüilo, e não podemos dizer que
a presidente vai vencer esse período, pois ela precisa dominar sua
inapetência ao diálogo, refrear o apetite de cargos e verbas do PMDB,
grande fiador e chantageador do governo, e ao mesmo tempo atender a tudo
que foi prometido à sociedade civil, especialmente no combate à
miséria.
Portanto, é um início muito tenso de governo, e devemos esperar que
ela se saia bem, tendo em vista os interesses nacionais. Mas uma análise
realista e apurada não mostra saída em curto prazo.
Correio da Cidadania: Mesmo que o caso Palocci revele
problemas tradicionais de nosso Estado, sem dúvida alguma, o escândalo
sobre o aumento patrimonial por ele auferido entre os anos 2006 e 2010,
através de sua firma de consultoria, foi notório em um mandato ainda
muito principiante. O que essa precocidade diz do atual quadro político?
Roberto Romano: Não quero discutir se o Palocci é
culpado ou não, isso cabe a uma investigação e julgamento mais
aprofundados. Mas ele foi incriminado por algo compartilhado pela
maioria absoluta dos nossos políticos: a indistinção entre o público e o
privado. Fora o desrespeito pelo povo e a falta de idéia de que quem
está no poder deve prestar contas sempre, do dinheiro e das pessoas sob
sua responsabilidade.
Além disso, é muito estranho que um legislador, isto é, alguém pago
pelo Estado brasileiro e consequentemente por todos os contribuintes,
tenha cláusulas confidenciais com empresas privadas.
A incoerência começa quando comparamos a origem do Palocci e outros
membros do governo em termos ideológicos. Ele veio da esquerda
trotskista, da Libelu, que pregava revolução internacional, modificação
na estrutura da sociedade, democracia imposta da sociedade ao Estado, e
de repente o vemos como o queridinho da Avenida Paulista.
Esse é o ponto que chama a atenção. O Jacques Wagner fala que é o
dinheiro que chama a atenção. Eu não diria isso. Não é o fato de ele
acumular 20 milhões que me preocupa. Se ele tivesse acumulado um
real(!), mas com o esquema de favorecer antigos inimigos, já teria me
chamado a atenção. Não sou daqueles que exige fidelidade ideológica
eterna, pelo contrário, todos temos direito de mudar opiniões. O
problema é que ele continua como representante de um partido que se
disse orientado à modificação e democratização da sociedade.
Não acho que se você foi trotskista tem que morrer trotskista. Mas
existem muitos matizes de mudanças de atitude. Se há quinze anos você
tinha um discurso e prática que hoje são radicalmente diversos, é de se
perguntar se existe, na verdade, algum ideal, algum valor, na cabeça
dessas pessoas. Porque, na falta disso, você entra no realismo mais
bruto, na falta de escrúpulos e de respeito ético pelo próximo. Aí que a
coisa fica feia.
Correio da Cidadania: Acredita que essa tendência, a promiscuidade público-privado, vai se reafirmar no governo Dilma?
Roberto Romano: Vai, porque não depende só da
presidente e nem do próprio executivo. É um sistema que domina o Estado e
a sociedade do país. Somos uma sociedade onde os ricos prestam favores
com o dinheiro dos pobres. O pobre espera o favor. O rico faz, só não
conta com que dinheiro.
E o PMDB, o partido hegemônico no país, é a grande máquina de
produção de favores. Vendem, trocam favores, chantageiam com favores.
Basta ver o caso do Anthony Garotinho, a meu ver, esse sim, muito
escandaloso. Em nome da fé cristã, chantageia o Poder Executivo dizendo
que o caso Palocci é um diamante de 20 quilates. É de uma falta de
responsabilidade ética e um cinismo que eu ainda não tinha visto.
Quando o Roberto Cardoso Alves falava que “é dando que se recebe”, ao
menos enunciava uma prática geral. Não dizia quem dava nem quem
recebia. Mas, nesse caso, o Garotinho foi explícito, pornográfico até:
“O caso Palocci é um diamante de 20 quilates para nós e vamos
explorá-lo”.
Correio da Cidadania: Ainda no campo das polêmicas que
envolvem o público e o privado, o PT, em todas as eleições em que se
contrapôs ao PSDB, se utilizou de um discurso anti-privatizações. No
entanto, em menos de 6 meses de mandato, Dilma anunciou medidas de
orientação privatista na administração aeroportuária, na área de
telefonia, mais precisamente no que se refere à expansão da banda larga,
sempre beneficiando poderosos grupos privados à frente das grandes
obras de infra-estrutura. O que pensar a este respeito?
Roberto Romano: Estou terminando de ler um livro de
1942 de um economista e filósofo americano chamado Brady, no qual ele
analisa justamente a produção do poder econômico nos EUA, que define o
caminho do poder político. Tudo isso com que entramos em contato com a
crise das financeiras americanas, seus calotes e golpes, ele mostra que é
um procedimento que já vem do século 19, com as indústrias
norte-americanas, de modo que o Estado passou a ser dominado por tais
interesses econômicos. E segundo ele, essa é a maneira mais rápida de
acabar com a resistência democrática que ainda existe nos EUA. Isso em
1942.
Dessa forma, quando assistimos a um filme como Inside the Job,
sobre os agentes que protagonizaram a bancarrota norte-americana e
universal, vemos que hoje os mesmos estão aconselhando Barack Obama,
vemos que existe uma fina camada de restos democráticos nos EUA, mas
que, na verdade, estão sob a mão de ferro dos interesses particulares,
dominando e dando as ordens políticas a serem seguidas.
Aqui no Brasil não é diferente. Não à toa falei que o Palocci é o
queridinho da Avenida Paulista, porque nós, na história do século 20,
devemos à Avenida Paulista algumas tremendas preciosidades, como a
ditadura de 64. Pois, como diz o Antonio Delfim Netto, os nossos
industriais gostam é de mamar na teta do Estado. Não arriscam seu
capital próprio. Assim, se esse é o procedimento, e o consideram uma
pessoa confiável para exercer o poder, podemos dizer tranquilamente que o
Palocci era um delegado da Avenida Paulista na Casa Civil.
Se lembrarmos bem, o Palocci foi um dos pioneiros da privatização
dentro do PT, quando prefeito de Ribeirão Preto. Ele que começou com
essa prática, sendo saudado por tucanos, liberais, chamado de
“progressista no sentido econômico”, que não era “jurássico”, como
cunhou Roberto Campos para estigmatizar aqueles que eram favoráveis à
defesa do patrimônio público. Portanto, o Palocci tem uma longa
caminhada nessa linha, e claro, sendo ele o ministro chefe, deu essa
orientação geral ao governo. Aliás, uma garantia que a Dilma deu ao
empresariado nacional é a de que o Palocci seria uma das peças-chave de
seu governo. Assim, todo o ocorrido era previsível.
Ao contrário da campanha de reeleição do Lula, quando o PT assentou
fortemente a questão anti-privatista e o Alckmin foi se fazer de bobo e
colocar o chapéu da Petrobras, nessa última eleição, a insistência do
discurso anti-privatista foi bem menor ao longo de toda a campanha.
Correio da Cidadania: Mas também se fez presente...
Roberto Romano: Comparativamente com a campanha de 2006 foi bem mais discreto.
Correio da Cidadania: Há outros temas neste momento candentes
e que são também emblemáticos da atual condução política da nação,
especialmente no que diz respeito à relação destacada entre o Executivo e
o Parlamento. O geógrafo Ariovaldo Umbelino não acredita, por exemplo,
na força do Executivo para barrar o novo Código Florestal, que acabou
de ser aprovado na Câmara, e poderá ser referendado pelo Senado. O
senhor concorda com esta perspectiva?
Roberto Romano: Eu concordo. O problema é que o PMDB
é a única força nacional da atualidade, em termos de partido. Isso
porque é uma federação de oligarquias, com hegemonia do Sarney, no poder
há 50 anos e uma das peças-chave da ditadura. Portanto, conhece todos
os segredos do Estado brasileiro.
Os outros partidos não são nacionais. O PSDB tem presença forte em
Minas, São Paulo, parte do Paraná e do Rio Grande do Sul e vamos parando
aí. O PT também não tem essa presença forte em todos os estados.
Caminhava pra isso, mas ainda não alcançou.
Portanto, quem tem condições de reunir as reivindicações das regiões e
tem à sua frente a porta do Ministério da Fazenda e da presidência? O
PMDB. E esse partido controla o Senado e a Câmara. Não importa que o
presidente da Câmara seja do PT, porque todas as grandes comissões estão
na mão do PMDB e seus aliados.
O que resta a nossa presidente a fazer? Ela não pode romper de cima
pra baixo. Tentou isso e voltou atrás, quando mandou o Palocci falar
grosso com o Temer e tomou o troco. É constrangedor a presidente
precisar fazer um almoço pra mostrar ao país que está tudo bem com seu
maior aliado. É humilhante. E creio que terá conseqüências muito graves
nos próximos tempos.
O caso do Código Florestal é apenas uma ocasião. Ele está sendo usado
como uma peça nesse grande xadrez, no qual a presidente está levando
xeque-mate. Outro momento desastroso foi a intervenção do Luiz Inácio,
pra tentar apagar o fogo do Palocci. Sem querer, ou talvez querendo,
retirou o tapete da autoridade debaixo dos pés da presidente. Num
sistema autoritário como o brasileiro, em que a hierarquia é
fundamental, o Lula nunca abriu mão de tal autoridade nos oito anos de
mandato. Fazer isso com a atual presidente é desastroso.
Correio da Cidadania: Neste período de intensas negociações em torno
ao Código Florestal, saltaram aos olhos os episódios de violência no
campo, pouco antes e depois da votação do Código? O que diria a este
respeito?
Roberto Romano: É a mesma coisa. O drama do campo brasileiro vem
desde 1500, mas no século 20, desde quando o governo de João Goulart
propôs pela primeira vez de forma mais orgânica a questão da reforma
agrária, integrada naquele pacote de reformas (bancária, urbana,
universitária etc.), temos a luta dos setores do campo para chegar a um
estágio de produção e ação que corresponda à sociedade moderna.
Dessa forma, temos como primeiro grande movimento a Pastoral da Terra
e suas lutas durante a ditadura. Depois vem o MST, outros movimentos
similares e suas diversas possibilidades, mas sempre com o uso, por
parte do grande latifúndio, de repressão usurpada da força oficial.
Sempre ocorreu o uso de capangas e matadores para amedrontar aqueles que
lutam pela terra. Essa é praticamente uma invariante da política
brasileira. E não é apenas o grileiro que usa o jagunço, mas também
grandes empresas, que, por sua vez, usam tanto os jagunços como o
trabalho escravo.
Temos uma situação muito estranha: a modernidade da produção técnica
associada à forma totalmente arcaica de domínio social e intimidação
pública. Esses episódios estão plenamente conectados. É uma tarefa quase
de sofística dizer que a questão do Código Florestal não tem nada a ver
com este quadro. Tem tudo a ver, porque no núcleo da questão está a
discussão da reforma agrária. E, ora, assim como todas as demais
políticas públicas, a reforma agrária está sob o monopólio do Poder
Executivo.
E enquanto estiver sob tal monopólio, sem participação da sociedade, é
evidente que não há condições de resolver a questão de forma
democrática. Haverá somente soluções tecnocráticas, de “engenharia”, mas
a vida não é só engenharia.
Correio da Cidadania: O senhor vislumbra alguma possibilidade
de que a atual onda de crimes no campo, que chamou a atenção até da
negligente grande mídia, possa revigorar antigas bandeiras petistas,
como nos tempos do massacre de Eldorado dos Carajás e do discurso
implacavelmente favorável à reforma agrária, postura recorrente do
partido enquanto oposição?
Roberto Romano: O problema que vejo é que todas as
forças que lutavam pela reforma agrária e a democratização da sociedade
foram encampadas pelo PT. O que vejo do ponto de vista político e
simbólico é que o grande desastre do PT, consubstanciado na “Carta aos
Brasileiros”, foi chegar ao poder e abrir mão de todo o seu programa.
Com isso, desarticulou por um bom tempo todas as forças que já estavam
plenamente confiantes em sua ação.
O que ocorreu de significativo no cenário político posteriormente? A
cisão do partido, que desaguou no PSOL, algo não muito estrondoso
numericamente, pois continua uma força relevante, mas não importante a
ponto de substituir o que foi o PT. E temos os movimentos sociais,
alguns cooptados pelo Poder Executivo, e alguns combatidos pelo governo,
como o MST.
Correio da Cidadania: Uma vez refém do caso Palocci, o
governo vetou o kit anti-homofobia, após pesadas pressões da bancada
religiosa, que também compõe a base do governo. O senhor enxerga um
possível recrudescimento do conservadorismo, após suas correntes terem
pautado boa parte do debate eleitoral e seguirem realizando um contínuo
combate a políticas públicas progressistas e inclusivas, como nas
questões da homofobia, do aborto e também da Comissão de Verdade?
Roberto Romano: O que penso é que o conservadorismo
brasileiro está arraigado no formato antidemocrático de nossa estrutura
social. Temos alguns centros urbanos de modificação de mentalidade - mas
não muita! Assim, somos uma sociedade essencialmente anti-igualitária,
antidemocrática, nada republicana e pra nós o que funciona é a ordem dos
privilégios.
Nessas horas eu sempre uso de exemplo o trânsito brasileiro. Aqui no
Brasil não vale o sinal vermelho e nem a faixa de pedestre; vale o preço
do carro que você importou dos EUA, do Japão ou da Suécia. Isto é, se
você está dentro de um Audi, um Volvo, um BMW, tem todo o direito de
matar alguém, porque você é superior. Essa estrutura do nosso trânsito
reflete o que ocorre nas relações mais íntimas da sociedade brasileira.
Nossa justiça é elitista dessa mesma maneira. Uma senhora rouba um
frasco de xampu, fica um ano na cadeia, perde a visão lá dentro e não
tem nenhuma reparação. O outro mata a namorada em plena luz do dia,
passa 11 anos recorrendo livre e solto e já dizem que dentro de pouco
mais de um ano estará novamente livre e solto, passeando pelos bares e
restaurantes chiques de São Paulo... Sendo réu confesso...
Em suma, dizer que existe justiça no Brasil, no sentido estrito da palavra, é um escárnio.
Correio da Cidadania: Frente a uma estrutura social
antidemocrática tão arraigada e do descenso na movimentação social, nada
indica que os setores e membros privilegiados de nossa sociedade possam
reverter seus moldes selvagens de ação vistos até hoje, diante da
ameaça de suas hegemonias.
Roberto Romano: Bom, nada mais apropriado para o
surgimento do fascismo do que a estrutura conservadora e elitista
estabelecida no Brasil desde a colônia e reiterada por duas ditaduras. O
Brasil tem todas as condições de ser um país pré-fascista. Temos uma
classe média com tendências fascistas, que não respeita nada que não
seja o poder puro, o dinheiro puro, que não tem padrão ético nenhum, não
respeita a vida alheia, a propriedade alheia, nada... Quer dizer, temos
um país sempre predisposto ao fascismo. Não por acaso tivemos duas
ditaduras no século 20 muito próximas dos regimes fascistas.
Correio da Cidadania: Em entrevista anterior, o senhor fez
alusão a um certo “disfuncionamento” de nossa República, uma vez diante
de um Executivo que legisla com seu excesso de Medidas Provisórias,
refém, ademais, de um Legislativo a partir do império das práticas
fisiológicas, e de um Judiciário conservador, que toma o lugar de um
Legislativo apático. Como vê hoje esta relação entre os poderes de nossa
República e o que espera deste governo neste sentido?
Roberto Romano: Tende a piorar. Porque, quando temos
esse disfuncionamento com algum comando, como nos anos Lula, há certos
limites. Em vários momentos, ele comandou e recuou, mas sua autoridade
foi mantida. No período FHC, a mesma coisa. No caso da Dilma, ela vem
sendo a última a falar e a primeira a apanhar. Isso tende a criar um
vácuo nesse mecanismo disfuncional que pode trazer muitas crises.
Por exemplo, o modelo macroeconômico do país (aliás, a meu ver,
desastroso): um dos elementos fundamentais é manter a inflação baixa. A
produção de superávit primário é imensa e vai definir um padrão de
produção e consumo de acordo com os índices de inflação toleráveis a
partir deste modelo. Ora, como é possível um governo que tem de cuidar
de escândalos como o do Palocci, de pressões primárias de gente que
devia ser aliada a cada minuto, cuidar também da manutenção de um índice
de inflação baixo? Não tem condição.
O que tenho como preocupação é a injustiça do modelo econômico, pois
favorece grandes fortunas e desfavorece o contribuinte médio, além da
impossibilidade de manter a única virtude que ainda sobrava: o fato de o
salário não ser corroído pela inflação.
Eu acho que um presidente da República não pode tocar todos os
instrumentos da banda ao mesmo tempo. Essa questão da concentração de
poder, no caso da presidente, está se mostrando extremamente desastrosa
para o país.
Correio da Cidadania: Diante de seguidas chantagens e
desmoralizações, qual seria a chance de o partido no poder, o PT,
investir numa efetiva reforma política, de modo que a condução da nação
possa se liberar das atuais amarras de alianças tão espúrias, pelas
quais paga tão caro?
Roberto Romano: A Reforma Política, tal como se
discute, é um engodo porque não se fala na democratização dos partidos,
com consultas obrigatórias às bases, a respeito do programa, diretrizes
etc..
Para exemplificar, o PSDB é um conjunto de quatro lideranças que
sozinhas decidem tudo num jantar no Leopoldo’s. Gira em torno dos
interesses do Aécio, do Serra... O PT era o último partido que
respeitava mais essa idéia. Mas hoje decide tudo nas cúpulas e a massa
que siga o bonde.
Seria fundamental que cargo de direção de partido não pudesse ser
ocupado por mais de quatro anos. Os oligarcas do partido são donos do
cofre, dos programas, das alianças, propaganda e candidaturas. E agora
querem lista fechada, pra mandarem em tudo definitivamente...
Portanto, acredito que, sem a luta pela democratização dos partidos,
essenciais à vida democrática e política do país, os donos de cada
legenda viram manipuladores da opinião e direção políticas.
Correio da Cidadania: O que foi, finalmente, a era Lula para o
senhor e o que se pode esperar desse novo mandato do Partido dos
Trabalhadores, agora com Dilma no Planalto?
Roberto Romano: Olha, o Partido dos Trabalhadores
está se encaminhando para também se transformar numa federação de
oligarcas. Basta ver quantos de seus líderes regionais tiraram sua
casquinha do Palocci. Com um pouco mais de discrição. O Jacques Wagner
falou que era estranho, a Gleisi Hoffmann criticou não sei que... O PT
está se oligarquizando, a exemplo dos outros partidos brasileiros e a
exemplo do que já é o PMDB.
Assim, vemos que o único elo nacional entre todas essas pequenas
oligarquias (que tendem a se fortalecer regionalmente, não por acaso o
Jacques Wagner, os Vianna, o Tarso Genro têm adesão muito grande) era o
Lula. Não conseguindo a presidente Dilma atingir uma capacidade
administrativa que atenda às expectativas do empresariado e da população
em geral – o que é muito difícil! –, evidentemente o Lula será o grande
candidato em 2014.
Correio da Cidadania: O senhor já enxerga esse retorno triunfal?
Roberto Romano: Triunfal, com apoio do empresariado e
de todo mundo. Ele não está descuidando. Com essas palestras que ele dá
por 200 mil, ele vai mantendo contatos nacionais e internacionais.
No meu entender, está ficando cada vez mais configurado – pode ser
que eu esteja errado -, com os elementos todos que enxergo, que o
mandato Dilma é um mandato tampão. Como não se conseguiu outra
reeleição, a solução foi o mandato tampão da Dilma.
Correio da Cidadania: Aliás, essa carreira de palestrante do
Lula também entraria na linha da crítica que se fez em relação ao
Palocci e sua consultoria, a partir de uma relação promíscua entre o
público e o privado?
Roberto Romano: A técnica do Lula é mais convincente
que a do Palocci. No caso dele, foi presidente da República. E não está
oferecendo consultoria, até onde sabemos. São preços salgados para
palestras, mas nem tanto. O Clinton ganha isso, o FHC algo similar...
Mas não é a mesma coisa que vender consultoria. Ele está dando conselho
(risos). E, sobretudo, ele não diz que tem contrato de
confidencialidade.
No entanto, dormita no Congresso, há mais de 15 anos, uma série de
projetos pela regulamentação do lobby. O último é de um deputado do PT
de São Paulo (Carlos Zarattini), que exatamente por isso ganhou meu
voto. E é um projeto muito bom. Propõe um prazo de um ano para a
desincompatibilização da pessoa antes de começar a exercer lobby
oficial. Acho um ano muito pouco, pois quem foi diretor do Banco
Central, ministro da Fazenda, presidente etc. ainda guarda muitas
informações e lembranças num prazo de um ano. Mas ao menos seria um ano
de trégua para os cofres públicos. E é sintomático que nenhum partido
político leve adiante tal projeto...
Nas penúltimas eleições, quando o Arlindo Chinaglia era presidente da
Câmara, estive com ele num debate na Rádio Bandeirantes de São Paulo. E
a discussão foi exatamente essa. A minha pergunta foi: “deputado, como
está o projeto que tramita na Câmara e regulamenta o lobby?”. Ele me
respondeu: “Ah, professor, é muito difícil”. Agradeci a resposta, mas
pensei lá com meus botões na hora: “se o Congresso Nacional tivesse como
alvo resolver só o que é fácil seria inútil, certo?”.
Dessa forma, é quase impossível que se regulamente o lobby, porque o
que fazem os deputados e senadores hoje nada mais é que lobby selvagem.
Usam seus cargos para se dar importância, para que as empresas lhes dêem
dinheiro para as eleições etc. Não precisa nem da corrupção no sentido
estrito da palavra, com vantagens obscuras. Basta o fato de eles
utilizarem o cargo público para conseguirem novas reeleições. Fora os
negócios, licitações, concessões, que seguem a mesma linha.
Portanto, acho que a regulamentação do lobby não viria a resolver os
problemas de corrupção da sociedade e do Estado, mas daria parâmetros. O
caso da Erenice Guerra teria sido resolvido em dois dias se existisse
este parâmetro. “Ela e sua família faziam lobby de forma ilegal”. Ponto.
No caso Palocci, idem, pois estava fazendo lobby ilegal, e o projeto
oficializa quem pode ser lobista. Para sê-lo, precisa estar
desincompatibilizado do cargo público.
É um paradoxo tremendo, pois se trata de uma irregularidade da qual
todos têm conhecimento, mas não há lei para punir. E tal lei não será
aprovada, porque vai diretamente contra os interesses de seus
proponentes.
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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