Deolindo
Amorim foi um grande didata a serviço do pensamento espírita. De
personalidade serena e afetuosa, lutou incessantemente contra a
corrupção do pensamento doutrinário e pelo entendimento da obra de Allan
Kardec, sempre de forma elegante e independente.
Deolindo Amorim
nasceu em 23 de janeiro de 1906 no Estado da Bahia, numa família pobre e
católica. Foi presbiteriano fervoroso. Rompeu com sua igreja e
permaneceu muitos anos sem definição filosófica ou religiosa. Em 1935
descobriu o Espiritismo.
A palavra descobriu é empregada no seu
sentido de percepção totalizadora de uma idéia. É, certamente, um
exercício intelectual, mas ultrapassa esse universo para penetrar no
universo da apreensão do objeto.
Quando se descobre uma doutrina, por exemplo, ela se incorpora a nossa estrutura mental, ao nosso modo de estar no mundo.
Bem
ao contrário de qualquer recaída fanática, a descoberta é a forma de
inserir-se no conteúdo, abrangendo, pouco a pouco, não apenas os
enunciados, as ideias, os conteúdos. É mais, percebe-se os objetivos,
divisa-se o rumo e a essência. Enquanto o adepto, o estudioso permanece
na superfície ou na profundidade da ideia, o descobridor se integra, faz
uma ligação definitiva com a Doutrina. Foi o que aconteceu com Deolindo
Amorim.
Nascido a 23 de janeiro de 1908, Deolindo mudou-se para
o Rio de Janeiro. Radicado na antiga capital do Brasil, tornou-se
jornalista e, posteriormente funcionário público, tendo galgado elevada
posição funcional no Ministério da Fazenda.
Desde que descobriu a
Doutrina Espírita, tornou-se, progressiva e determinadamente, no
baluarte pela definição específica do que é o Espiritismo.
Conheci
pessoalmente Deolindo Amorim. Missivista atencioso, ele teceu
comentários elogiosos à minha obra “Comportamento Espírita”, na ocasião
de seu lançamento. A dimensão de seu trabalho certamente não cabe nos
limites destas notas. Sua figura simpática, serena, não significava,
entretanto, fraqueza ou acomodação. Polemizou com companheiros de forma
responsável e respeitosa. Prosseguiu seu caminho com coerência e
dignidade. Manteve posições firmes, mesmo contra amigos e situações.
Personalidade
afetuosa, mostrou uma determinação e uma estrutura de pensamento
ímpares. Foi, ao longo de sua vida, uma barreira positiva, definida,
contra a corrupção do pensamento doutrinário. Lutou sem descanso pelo
bom entendimento da obra de Allan Kardec.
Creio que a figura ímpar de Deolindo pode ser definida como o didata por excelência, o professor eficaz do Espiritismo.
O ATIVISTA
Deolindo
não ficou na teoria. Além de escrever livros, editar jornais,
representar periódicos e enviar artigos para muitos jornais e revistas,
proferir conferências, tomou iniciativas que marcaram o movimento
espírita brasileiro.
Já em 1939 ele idealizou e promoveu o I
Congresso de Jornalistas e Escritores Espíritas, realizado na cidade do
Rio de Janeiro. Foi uma reunião de intelectuais espíritas, semente de
propostas posteriores. O momento era crucial, o Espiritismo era
perseguido pela Igreja e pela Polícia. A II Grande Guerra estava
iniciada.
Esteve ao lado de Leopoldo Machado na promoção do I
Congresso de Mocidades e Juventudes Espíritas do Brasil e na criação do
Conselho Consultivo de Mocidades Espíritas.
Foi parceiro fiel de
Aurino Souto, presidente da Liga Espírita do Brasil. Finalmente, fundou
em 7 de dezembro de 1957 O Instituto de Cultura Espírita do Brasil
(ICEB), instituição de grande influência no estudo e divulgação do
Espiritismo, com sede no Rio de Janeiro e que dirigiu até sua
desencarnação.
EM DEFESA DO ESPIRITISMO
Um dos
problemas mais emergentes relativos ao bom entendimento da Doutrina
Espírita foi a constante tentativa de confundi-lo seja com a Umbanda, o
Candomblé, com as religiões cristãs e doutrinas espiritualistas.
Principalmente com os cultos afro-católicos, as confusões foram muitos
grandes. Hoje, talvez, esse aspecto esteja quase superado mas já foi
mais grave. A própria Federação Espírita Brasileira (FEB) pretendeu
fazer uma divisão absurda: chamar de Espiritismo todas as práticas
mediúnicas ou semelhantes e de Doutrina Espírita, a obra de Kardec.
Em
1947 Deolindo publicou Africanismo e Espiritismo, onde deixa clara a
inexistência de ligações filosóficas, práticas ou doutrinárias entre o
Espiritismo e as correntes espiritualistas apoiadas na cultura africana,
trazida pelo escravos e que se converteram em várias seitas de gosto
popular.
Determinado a explanar, didaticamente, as bases da
doutrina de Allan Kardec, ele escreveu “O Espiritismo e os Problemas
Humanos”, “O Espiritismo à Luz da Crítica”, em resposta a um padre que
escrevera livro atacando a Doutrina. “Espiritismo e Criminologia”,
oriundo de uma conferência no Instituto de Criminologia da Universidade
do Rio de Janeiro. Em 1958, lançou “O Espiritismo e as Doutrina
Espiritualistas”, onde não combate nenhuma corrente ou ideia
espiritualista, como a Teosofia, a Rosacruz, seitas de origem asiática
ou africana. Ele simplesmente define, separa, identifica o que é o
Espiritismo, mostrando a sua independência filosófica, embora
ressaltando eventuais coincidências de pontos filosóficos, devido à base
espiritualista desses movimentos.
O DIDATA DA DOUTRINA
Deolindo
não lançou teorias, nem propôs ideias revolucionárias de atualização ou
desenvolvimento da Doutrina. Esmerou-se e o fez com absoluto sucesso,
em definir o conteúdo, a abrangência, o papel e o lugar do Espiritismo
na sociedade e nas doutrinas espiritualistas.
Não se pense,
todavia, que tenha sido ortodoxo e conservador. Nada disso. Foi uma
mente aberta ao novo, entendeu perfeitamente o sentido evolucionista do
Espiritismo e recusou-se a aceitar as ideias conservadoras, retrógradas.
Na
Introdução de “O Espiritismo e as Doutrina Espiritualistas” ele diz:
“Escrevemos este trabalho com o sincero propósito de concorrer, embora
despretensiosamente, para que se esclareça cada vez mais a verdadeira
posição do Espiritismo perante as doutrinas e os cultos espiritualistas.
Todas as doutrinas, como todos os credos, sejam quais forem as suas
origens, nos merecem o mais justo respeito. (...) Devemos, porém, dizer
claramente o que é e o que não é Espiritismo, para que não haja confusão
nem tomem corpo interpretações duvidosas.”
E reafirma sua
posição: “Repetimos que o Espiritismo é universalista, porque os fatos
do espírito são universais, os seus problemas têm o sentido da
universalidade, mas também é oportuno acentuar que o Espiritismo não é
uma forma de sincretismo doutrinário ou religioso, sem unidade nem
consistência”.
Que é o Espiritismo, afinal? Vejamos o que nos diz
Allan Kardec: O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de
observação e uma doutrina filosófica. Ciência de observação, sim, nem
precisamos dizê-lo, porque tem por objeto uma fenomenologia que já foi
comprovada em experiências; doutrina filosófica, realmente, porque,
tendo por base experimental o fenômeno mediúnico, faz inquirições sobre
as causas e leis, deduzindo consequências que incidem no domínio moral,
da religião, da filosofia em si. Eis, em síntese, o que é o Espiritismo
Finalizando
o excelente “O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas”, afirma que
“Como doutrina essencialmente progressista, recebe os enriquecimentos
das ciências, como acompanha os fenômenos sociais e culturais, sem
perder, todavia, a sua integridade e as suas características. Nenhuma
religião, nenhum culto espiritualista poderia absorvê-lo ou confundi-lo,
a despeito da existência de aspectos comuns, porque as suas concepções
basilares, tendo consequências científicas, filosóficas e religiosas,
não permitem adaptações e concessões arbitrárias. Desta proposição,
consequentemente, chegamos à conclusão de que O Espiritismo é uma
doutrina que se basta a si mesma, sem empréstimos nem acréscimos
artificiais”.
A QUESTÃO RELIGIOSA
Sobre a questão
religiosa no Espiritismo, sua posição foi bem igual a de Kardec. Citando
as palavras do fundador, concluía que, como qualquer filosofia
espiritualista, o Espiritismo tinha consequências religiosas, mas de
forma alguma se tornava uma religião constituída.
“Allan Kardec
frisa bem que o Espiritismo não é uma religião constituída. Não o fora
nos primeiros tempos, quando o seus delineamentos ainda estavam na fase
de elaboração, nem o seria hoje, com a experiência histórica de mais de
um século, quando a Doutrina já está definitivamente consolidada. O
qualificativo constituída não exclui a ideia religiosa. Há muita
diferença entre o culto organizado e atos religiosos ou consequências
religiosas. O Espiritismo tem, indiscutivelmente, consequências
religiosas, e muito profundas, mas a sua esquematização, a sua índole e a
sua conceituação básica não comportam qualquer forma de culto material,
nem, sacerdotes, nem chefes carismáticos... O verdadeiro culto para o
Espiritismo é o culto interior, é o sentimento, a elevação do
pensamento.”
“O fato de haver Allan Kardec preferido não
instituir nenhum sistema moral, porque lhe bastou a moral cristã para o
coroamento da doutrina por ele codificada, não quer dizer que o
Espiritismo concorde ou deva concordar com tudo quanto ensinam as
diversas religiões e denominações cristãs; muito menos seria possível
introduzir no Espiritismo práticas, dogmas e formas peculiares às
religiões oriundas do Cristianismo.”
E, “não é possível reduzir o
Espiritismo às limitações de uma seita cristã, assim como não se pode
concordar com a suposição corrente de que tudo seja a mesma coisa.”
“Tendo-se
preocupado fundamentalmente com a interpretação filosófica do fenômeno e
suas consequências na ordem moral, a Codificação do Espiritismo não
cogitou, nem poderia cogitar, de qualquer culto material, assim como não
prescreve cerimônias de iniciação, nem hierarquia sacerdotal” .
Se
reconhecida, como é obvio, que o Espiritismo tem uma ligação estreita
com a moral de Jesus, e consequentemente com o Evangelho, deixa claro
que essa foi uma decisão de Kardec e separa de maneira muito clara o
cristianismo do Espiritismo.
Pelo fato de aceitar a mensagem do
evangelho, afirmou, não significa que o Espiritismo aceita tudo do
cristianismo. Ele sempre foi contrário à confusão dos que tentam diluir o
Espiritismo seja com os cultos espiritualistas, seja com os rituais do
cristianismo. Repudiava o tudo é a mesma coisa, frase usada para
justificar as deturpações gritantes contra a identidade da Doutrina.
“É o Espiritismo que interpreta o evangelho, não é o evangelho que interpreta o Espiritismo.”
REFORÇO À INTELECTUALIDADE
Como
é comum no movimento espírita, Deolindo foi muito criticado por optar
pela cultura e pela inteligência. Existiu, no Rio de Janeiro, a
Faculdade Brasileira de Estudos Psíquicos que ele não fundou, como às
vezes se diz, mas a que pertenceu e foi seu último presidente. Tornada
insubsistente a continuidade da Faculdade, ele promoveu a criação do
Instituto de Cultura Espírita do Brasil (ICEB) fundado em 7 de dezembro
de 1957 e por ele dirigido até sua desencarnação.
Quanto à
questão da unificação do movimento, Deolindo nunca aderiu à Federação
Espírita Brasileira, tanto que aliou-se à Liga Espírita do Brasil,
entidade criada em 1927, por Aurino Souto e da qual Deolindo foi o
último 2º vice-presidente.
Em 1949, com o chamado Pacto Áureo, a
Liga Espírita do Brasil, que não tinha representatividade nacional,
deixou de existir, transformando-se numa entidade federativa estadual.
Hoje, depois de várias denominações, é a USERJ - União das Sociedades
Espíritas do Estado do Rio de Janeiro.
Deolindo foi contra o
acordo. Suas palavras sobre o assunto, em 1949: “quando a Liga aceitou o
Acordo de 5 de outubro, acordo que se denominou depois, Pacto Áureo,
tomei posição contrária (...) votei contra a resolução, porque não
concordei com o modo pelo qual se firmara esse documento. E o fiz em voz
alta, de pé, na Assembleia, com mais doze companheiros que pensavam da
mesma forma”.
Admirava muito Léon Denis, de quem disse: “Léon
Denis pertence, com inteira justiça, à galeria dos mais autênticos
filósofos espíritas. Discípulo e continuador de Allan Kardec, ninguém o
foi, até hoje, com mais afeição e com vigor intelectual”.
Mas seu
respeito a sua fidelidade ao pensamento de Allan Kardec foi não apenas
exemplar, mas de um tirocínio brilhante e uma defesa inteligente e
atuante.
Em 24 de abril de 1984, aos 77 anos de vida terrena,
desencarnou Deolindo Amorim, fechando um ciclo fecundo de pensadores
espíritas, dos quais, com justiça, ele está num lugar privilegiado.
Todavia,
mais do que nunca, neste momento em que o Espiritismo precisa decidir
seu próprio caminho, o pensamento, a palavra e a postura de Deolindo
Amorim são elementos indispensáveis para entender, seguir e definir o
futuro da Doutrina.
Fonte: Jornal de cultura espírita “Abertura”, dezembro de 2000, ano XIII, nº 155 - Santos-SP.
Jaci Regis (1932-2010),
psicólogo, jornalista, economista e escritor espírita, foi o fundador e
presidente do Instituto Cultural Kardecista de Santos (ICKS),
idealizador do Simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita (SBPE),
fundador e editor do jornal de cultura espírita “Abertura” e autor dos
livros “Amor, Casamento & Família”, “Comportamento Espírita”, “Uma
Nova Visão do Homem e do Mundo”, “A Delicada Questão do Sexo e do Amor”,
“Novo Pensar - Deus, Homem e Mundo”, dentre outros.