sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A Privataria Tucana: livro coloca José Serra na lona


Por Erick da Silva do ALDEIA GAULESA
 
Eis que venho a luz o tão temido livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr que tirou o sono de José Serra. A Privataria Tucana,  livro de 343 páginas publicado pela Geração Editorial, traz a luz o grande esquema de falcatruas praticadas nas privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso e o papel central do José Serra neste esquema.
Chama a a tenção o gritante silêncio da grande mídia sobre as revelações expostas no livro. Até o momento,  a única menção que a mídia publicou sobre Privataria Tucana é um anúncio da Folha para vender livros, afinal ninguém é de ferro! Digno de nota é que o livro é classificado pela Folha como "polêmico", que diferença de tratamento para as acusações contra aliados do governo Dilma.
A honrosa exceção na mídia impressa foi a 
CartaCapital, na edição que chega às bancas nesta sexta-feira 9,  traz um relato exclusivo e minucioso do conteúdo doe uma entrevista com autor (reproduzida abaixo). A obra apresenta documentos inéditos de lavagem de dinheiro e pagamento de propina, todos recolhidos em fontes públicas, entre elas os arquivos da CPI do Banestado. José Serra é o personagem central dessa história. Amigos e parentes do ex-governador paulista operaram um complexo sistema de maracutaias financeiras que prosperou no auge do processo de privatização.

Ribeiro Jr. elenca uma série de personagens envolvidas com a “privataria” dos anos 1990, todos ligados a Serra, aí incluídos a filha, Verônica Serra, o genro, Alexandre Bourgeois, e um sócio e marido de uma prima, Gregório Marín Preciado. Mas quem brilha mesmo é o ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil, o economista Ricardo Sérgio de Oliveira. Ex-tesoureiro de Serra e FHC, Oliveira, ou Mister Big, é o cérebro por trás da complexa engenharia de contas, doleiros e offshores criadas em paraísos fiscais para esconder os recursos desviados da privatização.
O livro traz, por exemplo, documentos nunca antes revelados que provam depósitos de uma empresa de Carlos Jereissati, participante do consórcio que arrematou a Tele Norte Leste, antiga Telemar, hoje OI, na conta de uma companhia de Oliveira nas Ilhas Virgens Britânicas. Também revela que Preciado movimentou 2,5 bilhões de dólares por meio de outra conta do mesmo Oliveira. Segundo o livro, o ex-tesoureiro de Serra tirou ou internou  no Brasil, em seu nome, cerca de 20 milhões de dólares em três anos.
Confira a entrevista a seguir, onde Ribeiro Jr. explica como reuniu os documentos para produzir o livro, refaz o caminho das disputas no PSDB e no PT que o colocaram no centro da campanha eleitoral de 2010 e afirma: “Serra sempre teve medo do que seria publicado no livro”.
CartaCapital: Por que você decidiu investigar o processo de privatização no governo Fernando Henrique Cardoso?
Amaury Ribeiro Jr.: Em 2000, quando eu era repórter de O Globo, tomei gosto pelo tema. Antes, minha área da atuação era a de reportagens sobre direitos humanos e crimes da ditadura militar. Mas, no início do século, começaram a estourar os escândalos a envolver Ricardo Sérgio de Oliveira (ex-tesoureiro de campanha do PSDB e ex-diretor do Banco do Brasil). Então, comecei a investigar essa coisa de lavagem de dinheiro. Nunca mais abandonei esse tema. Minha vida profissional passou a ser sinônimo disso.
CC: Quem lhe pediu para investigar o envolvimento de José Serra nesse esquema de lavagem de dinheiro?
ARJ: Quando comecei, não tinha esse foco. Em 2007, depois de ter sido baleado em Brasília, voltei a trabalhar em Belo Horizonte, como repórter do Estado de Minas. Então, me pediram para investigar como Serra estava colocando espiões para bisbilhotar Aécio Neves, que era o governador do estado. Era uma informação que vinha de cima, do governo de Minas. Hoje, sabemos que isso era feito por uma empresa (a Fence, contratada por Serra), conforme eu explico no livro, que traz documentação mostrando que foi usado dinheiro público para isso.
CC: Ficou surpreso com o resultado da investigação?
ARJ: A apuração demonstrou aquilo que todo mundo sempre soube que Serra fazia. Na verdade, são duas coisas que o PSDB sempre fez: investigação dos adversários e esquemas de contrainformação. Isso ficou bem evidenciado em muitas ocasiões, como no caso da Lunus (que derrubou a candidatura de Roseana Sarney, então do PFL, em 2002) e o núcleo de inteligência da Anvisa (montado por Serra no Ministério da Saúde), com os personagens de sempre, Marcelo Itagiba (ex-delegado da PF e ex-deputado federal tucano) à frente. Uma coisa que não está no livro é que esse mesmo pessoal trabalhou na campanha de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, mas sob o comando de um jornalista de Brasília, Mino Pedrosa. Era uma turma que tinha também Dadá (Idalísio dos Santos, araponga da Aeronáutica) e Onézimo Souza (ex-delegado da PF).
CC: O que você foi fazer na campanha de Dilma Rousseff, em 2010?
ARJ: Um amigo, o jornalista Luiz Lanzetta, era o responsável pela assessoria de imprensa da campanha da Dilma. Ele me chamou porque estava preocupado com o vazamento geral de informações na casa onde se discutia a estratégia de campanha do PT, no Lago Sul de Brasília. Parecia claro que o pessoal do PSDB havia colocado gente para roubar informações. Mesmo em reuniões onde só estavam duas ou três pessoas, tudo aparecia na mídia no dia seguinte. Era uma situação totalmente complicada.
CC: Você foi chamado para acabar com os vazamentos?
ARJ: Eu fui chamado para dar uma orientação sobre o que fazer, intermediar um contrato com gente capaz de resolver o problema, o que acabou não acontecendo. Eu busquei ajuda com o Dadá, que me trouxe, em seguida, o ex-delegado Onézimo Souza. Não tinha nada de grampear ou investigar a vida de outros candidatos. Esse “núcleo de inteligência” que até Prêmio Esso deu nunca existiu, é uma mentira deliberada. Houve uma única reunião para se discutir o assunto, no restaurante Fritz (na Asa Sul de Brasília), mas logo depois eu percebi que tinha caído numa armadilha.
CC: Mas o que, exatamente, vocês pensavam em fazer com relação aos vazamentos?
ARJ: Havia dentro do grupo de Serra um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) que tinha se desentendido com Marcelo Itagiba. O nome dele é Luiz Fernando Barcellos, conhecido na comunidade de informações como “agente Jardim”. A gente pensou em usá-lo como infiltrado, dentro do esquema de Serra, para chegar a quem, na campanha de Dilma, estava vazando informações. Mas essa ideia nunca foi posta em prática.
CC: Você é o responsável pela quebra de sigilo de tucanos e da filha de Serra, Verônica, na agência da Receita Federal de Mauá?
ARJ: Aquilo foi uma armação, pagaram para um despachante para me incriminar. Não conheço ninguém em Mauá, nunca estive lá. Aquilo faz parte do conhecido esquema de contrainformação, uma especialidade do PSDB.
CC: E por que o PSDB teria interesse em incriminá-lo?
ARJ: Ficou bem claro durante as eleições passadas que Serra tinha medo de esse meu livro vir à tona. Quando se descobriu o que eu tinha em mãos, uma fonte do PSDB veio me contar que Serra ficou atormentado, começou a tratar mal todo mundo, até jornalistas que o apoiavam. Entrou em pânico. Aí partiram para cima de mim, primeiro com a história de Eduardo Jorge Caldeira (vice-presidente do PSDB), depois, da filha do Serra, o que é uma piada, porque ela já estava incriminada, justamente por crime de quebra de sigilo. Eu acho, inclusive, que Eduardo Jorge estimulou essa coisa porque, no fundo, queria apavorar Serra. Ele nunca perdoou Serra por ter sido colocado de lado na campanha de 2010.
CC: Mas o fato é que José Serra conseguiu que sua matéria não fosse publicada no Estado de Minas.
ARJ: É verdade, a matéria não saiu. Ele ligou para o próprio Aécio para intervir no Estado de Minas e, de quebra, conseguiu um convite para ir à festa de 80 anos do jornal. Nenhuma novidade, porque todo mundo sabe que Serra tem mania de interferir em redações, que é um cara vingativo.

O que significa o crescimento evangélico no Brasil?



A imagem dos evangélicos é de um segmento formado por pessoas na maioria das vezes honestas e confiáveis nas relações pessoais, mas intolerantes c/ religiões e morais alheias. Suas lideranças costumam ser percebidas com desconfiança, sendo algumas consideradas ambiciosas e arrivistas. Em que medida a avaliação procede?
por Ronaldo de Almeida no LeMonde-Brasil

(Celebração em templo da igreja Renascer em Cristo, em São Paulo)

Há cerca de três décadas essa pergunta domina o debate público sobre as mudanças religiosas recentes no país, e se desdobra em outras. Quais são as causas da expansão evangélica e suas implicações? Trata-se de um segmento conservador de matriz fundamentalista? Como lidar com a presença crescente desses religiosos na mídia, ora sendo notícia, ora na posição de proprietários do veículo de comunicação, ou ambos ao mesmo tempo? Como conviver com a moralidade pessoal e os valores públicos dos evangélicos? E a lista de questões não termina...
Não é simples definir a partir de quando os evangélicos começaram a ocupar o debate público, mas a eleição de 1986, que elegeu o Congresso Nacional Constituinte, pode ser considerada um marco. Nela, os pentecostais saltaram de dois deputados federais para dezoito, enquanto os protestantes históricos elegeram dezesseis, dando origem ao termo Bancada Evangélica, embora nem todos participassem dela, como atualmente nem todos participam. Já em 2010, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), foram eleitos 63 deputados federais e três senadores que se declararam evangélicos.
A compra da decadente Rede Record pela Igreja Universal, em 1989, também foi outro acontecimento que coroou décadas de investimento dos evangélicos nos meios de comunicação. Atualmente, ela é a segunda maior rede de televisão do país, rivalizando por vezes com a Rede Globo. Em resumo, os evangélicos não só crescem numericamente como também ampliam seu alcance para o mercado, a política e a mídia, que se retroalimentam.
Como consequência dessas investidas, existe uma preocupação disseminada na opinião pública, que se expressa na desconfiança sobre os interesses e o sentido dessa expansão religiosa. Seriam esses interesses comerciais? Ao que parece, essa é a crítica mais frequente.
A imagem dos evangélicos, sobretudo a dos pentecostais, bastante difundida na sociedade brasileira, é a de um segmento formado por pessoas na maioria das vezes honestas e confiáveis nas relações pessoais, mas pouco tolerantes com religiões e morais alheias. Suas lideranças costumam ser percebidas com desconfiança, sendo algumas consideradas ambiciosas e arrivistas. Em que medida tal avaliação procede?
 
Diversidade e flexibilidade

Os dados do Censo 2010 sobre filiação religiosa, assim como outros, ainda não foram divulgados. Entretanto, pelo que vêm demonstrando várias pesquisas de menor alcance demográfico, algumas tendências apontadas nos dois últimos Censos (1991 e 2000) devem permanecer: o declínio de pessoas que se identificam como católicas e o aumento daquelas que se declaram evangélicas ou sem religião. A dúvida é quais foram as taxas dessas tendências na última década.
A primeira consideração a ser feita é sobre a diversidade daquilo que genericamente se chama protestante histórico, pentecostal tradicional e neo-pentecostal. Mesmo ciente de que alguns desses religiosos não aceitariam ser classificados como evangélicos, adoto esse termo por ser de uso mais corrente e abranger todos os outros, que, por vezes, podem ser nomeados também como “crentes”. Entretanto, é prudente precaver que boa parte das minhas considerações refere-se mais propriamente ao pentecostalismo (o tradicional e o neo).
O campo evangélico é variado, e a onda do crescimento tem quebrado em várias direções e com intensidades diferentes. A diversidade engloba da posição moral mais conservadora à crescente flexibilização dos costumes e comportamentos. Em relação a esse segundo caso, cada vez menos “virar crente” significa ruptura ampla e profunda com seu modo de vida. Cada vez mais a diversidade aumenta a oferta de estilos de vida evangélicos. A onda gospel, não só como gênero musical, mas também como estética, prática cultural e comportamento juvenil, é um bom exemplo de uma vida menos “careta” e em sintonia com os tempos atuais.
Em boa medida, essa flexibilização decorre da circulação de uma parcela dos evangélicos entre as diversas igrejas. Assim, o crescimento evangélico, sobretudo da vertente pentecostal, é bem peculiar: multiplicam-se os nomes das igrejas, mas as pessoas são menos fiéis a uma delas especificamente. Uma parte significativa dos fiéis circula entre as igrejas “calibrando” sua religiosidade: com mais ou menos reflexão teológica, mais ou menos exigências comportamentais, mais ou menos emocionalismo, mais ou menos milagres, e por aí vai. Esse trânsito religioso proporcionou aos indivíduos maior autonomia, que se reflete na desinstitucionalização da prática religiosa. A vida religiosa parece cada vez mais privatizada ao mesmo tempo que de massa, logo, menos sujeita aos ditames morais de uma comunidade de “irmãos de fé”.
Isso é visível na paisagem urbana brasileira, na qual vemos igrejas neopentecostais com as portas abertas permanentemente e com cultos em vários horários do dia, os quais se frequenta sem estabelecer vínculos comunitários e pessoais densos. Vários desses templos estão próximos aos principais terminais de transporte público das grandes cidades brasileiras, configurando uma religiosidade de passagem, bem adequada à lógica e aos fluxos urbanos. Trata-se de uma religiosidade muito mais centrada na pregação do pastor (também vista individualmente em casa, pela televisão) do que no fortalecimento das relações horizontais entre os frequentadores dos cultos.
Muitos evangélicos falam da experiência religiosa como uma espécie de autoconhecimento, um voltar-se para si. Não por acaso, a pregação aproxima-se dos discursos de autoajuda e de empreendedorismo, tão recorrentes no mundo atual. Em suma, uma religiosidade muito direcionada para as demandas cotidianas materiais, afetivas e subjetivas, e menos voltada para a vida eterna, o pós-morte ou a especulação teológica, por exemplo.
 
Para não dizer que não falei dos católicos

Até onde vai esse crescimento evangélico, sobretudo dos pentecostais? Estes serão maioria no Brasil? Permitindo-me um exercício de futurologia, minha resposta é não, pelo menos não na velocidade que parece preocupar boa parte da opinião pública atual. Especulo que a tendência de crescimento das pessoas declaradas pentecostais, em particular, “baterá no teto”; não sei qual, mas o suficiente para não se constituírem como maioria demográfica no país.
Em boa medida, embaso meu argumento citando a expansão-reação do catolicismo carismático. Padre Marcelo, Renovação Carismática, Canção Nova são alguns dos polos da revitalização católica, principalmente entre jovens e nas áreas urbanas. Assim, se uma das tendências demográficas no país é a do declínio das pessoas que se declaram católicas, é fato também que a expansão do carismatismo entre os católicos os tem tornado mais convictos de sua identidade religiosa, à semelhança dos evangélicos.
Como consequência, a autodeclaração “católico não praticante”, tão popular no Brasil, tem cedido espaço à declaração “sem religião”. Isso pode ser considerado um feito do pluralismo religioso no Brasil: com a disputa por adeptos, a religião hegemônica (no caso, o catolicismo) é forçada à competição, colocando-se como uma alternativa, e não como a religião dos brasileiros. Resultado: se o número de católicos declina, ao mesmo tempo o catolicismo se robustece.
Entretanto, parte desse sucesso católico deve-se exatamente à semelhança dos carismáticos com os evangélicos na doutrina da conversão, na dinâmica dos ritos, na experiência emocional, nos valores morais, nas práticas sociais, nas relações comunitárias e nas estratégias de crescimento. Assim, a expansão da religiosidade evangélica não se dá somente na atração de católicos, mas também por dentro do catolicismo. A religiosidade de muitos brasileiros tem adquirido cada vez mais tonalidades evangélicas.
 
Política, moral e interesses

Se o crescimento dos evangélicos dá-se em várias direções, o mesmo pode ser dito da participação na política institucional. Ela varia de práticas orientadas por interesses de grupos específicos a ações pautadas por temas mais estruturais da sociedade brasileira. Ressalta-se, contudo, que as primeiras são em maior número, espelhando a própria representação política do país.
Entre as várias Comissões Permanentes do Congresso Nacional, é comum encontrarmos evangélicos naquelas que tratam dos meios de comunicação, dos programas sociais, da formação de Conselhos Públicos. Por um lado, visam à propaganda religiosa, por outro, atuam como mediadores dos serviços oferecidos pelo Estado.
Além desses interesses, os temas de ordem moral e de fé religiosa são mobilizados com a finalidade de gerar identidade política entre os fiéis. A recente eleição para a Presidência da República, em 2010, forneceu um bom cenário para pensarmos a movimentação política dos evangélicos.
De forma geral, a então candidata Marina Silva, do Partido Verde (PV), atraiu parte do eleitorado evangélico sem se valer excessivamente dessa identidade, pois já fazia parte de sua imagem pública. Seu problema foi o mesmo de Anthony Garotinho na campanha presidencial de 2002: não deixar a imagem evangélica provocar resistências no restante do eleitorado. No caso de Marina, uma declaração de que acreditava que o deus judaico-cristão havia criado o mundo lhe rendeu inúmeros questionamentos, sendo classificada por muitos como criacionista. Marina respondeu que a grande maioria da população brasileira acredita em Deus e que ele havia criado o mundo; além disso, ela não defendeu, pelo menos não publicamente, que o criacionismo fizesse parte do currículo escolar público.
Em relação à sempre polêmica questão do aborto, a candidata Dilma Rousseff (PT) foi a que mais perdeu pontos com esse debate. Graças ao marketing político de seu principal adversário, José Serra (PSDB), a posição pró-aborto foi mais associada a Dilma, o que gerou resistência de muitos religiosos, principalmente dos evangélicos. Marina respondia a essa questão propondo um plebiscito, pois estava ciente de que as sondagens estatísticas indicavam que a maior parte da população votaria contra a legalização do aborto.
Por fim, Serra assumiu a bandeira contra o aborto, assustando, e mesmo constrangendo, setores mais escolarizados e moralmente liberais nos quais tem forte base eleitoral. Mas Serra não é visto como alguém com perfil religioso, no sentido de reivindicar uma identidade, fosse ela católica, evangélica, espírita, entre outras possíveis. Seu programa eleitoral deixou o discurso contra-aborto para o pastor da Assembleia de Deus, Silas Malafaia, que tem se configurado como contraponto ao bispo Macedo e à Igreja Universal do Reino de Deus, apoiadores dos governos Lula e Dilma.
O início desse apoio aos candidatos do PT deu-se somente na campanha presidencial de 2002, graças à aliança com o então nanico Partido Republicano (PR), que além de fornecer o vice de Lula, José Alencar, tinha metade de seus deputados federais pertencentes à Igreja Universal. Cabe relembrar, contudo, que durante as eleições presidenciais de 1989 as pregações e os jornais da Igreja Universal declaravam que Lula era o candidato do diabo.
 
Plasticidade e enraizamento

A Igreja Universal não apenas refez seu discurso anti-Lula e anti-PT, em 2002, como assumiu uma posição pouco fundamentalista em relação à reprodução humana, em 2009. Quando se intensificou no país o debate público (na verdade, mais restrito às camadas escolarizadas) em torno das pesquisas com células-tronco embrionárias e, a reboque naquele momento, a legalização do aborto em casos específicos, a Igreja Universal declarou-se a favor dos dois pleitos. Além dela, manifestaram-se a favor setores mais liberais do protestantismo histórico, como a Igreja Metodista e a Igreja Presbiteriana do Brasil.
Como bem sabemos, a posição religiosa mais contundente e eficaz em termos políticos contra os dois temas é a da Igreja Católica, mas – convém sempre dizer – bem menos dos fiéis católicos. Ser a favor dos dois pleitos foi uma forma de a Igreja Universal se colocar na discussão em contraposição à Igreja Católica, com quem costuma rivalizar e de quem deseja o lugar na sociedade brasileira. Porém, tais posicionamentos permitiram a repercussão da pregação de Silas Malafaia como portador do discurso evangélico conservador, logo, contrário ao aborto.
O mesmo conservadorismo tem sido direcionado contra a criminalização da homofobia. Por considerarem a homossexualidade curável moral e espiritualmente, os evangélicos veem a criminalização como limitadora de sua pregação religiosa. Nesse assunto, bispo Macedo e Silas Malafaia estão do mesmo lado.
Por outro lado, em decorrência da crescente flexibilização dos costumes e comportamentos, foram criadas recentemente as “igrejas inclusivas” de perfil evangélico, que não condenam a homossexualidade. O número das igrejas inclusivas é insignificante perante a posição conservadora, mas o importante é perceber como a onda evangélica tem quebrado para vários lados, diferenciando-se conforme outras mudanças sociais no país.
Em que medida, então, procedem a preocupação e a desconfiança da opinião pública em relação ao crescimento evangélico, como indagado inicialmente? A avaliação continua cabendo ao leitor. Os argumentos aqui apresentados, contudo, visaram demonstrar como as questões de fé imbricam-se em outras dinâmicas e mudanças políticas e sociais mais amplas do contexto brasileiro, que podem ser resumidas em uma tautologia sociológica: quanto mais o Brasil se torna evangélico, mais os evangélicos, principalmente os pentecostais, tornam-se como o Brasil.

Ronaldo de Almeida
Professor de Antropologia da Unicamp, pesquisador do Cebrap e autor de A igreja Universal e seus demônios, Terceiro Nome, 2009.


Ilustração: Caetano Barreira/ Reuters

Direitos humanos: Tudo a ver com nossa vida


É preciso considerar a si mesmo e aos outros a partir da condição de portadores de direitos, de liberdade, de dignidade, ao mesmo tempo diferentes e iguais uns em relação aos outros

Nei Alberto Pies* no BRASILdeFATO

"Como seres humanos a nossa grandeza reside não tanto em ser capazes de refazer o mundo… mas em sermos capazes de nos refazermos a nós mesmos”. (Mahatma Gandhi)

O conceito de direitos humanos faz-se historicamente, assumindo diferentes abordagens e perspectivas, gerando diferentes posturas e compreensões. Nasce, contudo, a partir da consciência e da necessidade de preservar a vida e tudo o que nela está imbricado. Ao longo dos tempos, o conceito foi sendo construído culturalmente como se os portadores destes direitos fossem sempre os outros, aqueles que estão numa situação de extrema indignidade, nunca a gente (eu, você e nós). Há, então, a necessidade de compreender melhor o conceito de direitos humanos para que dele nos sintamos parte.

Sob o ponto de vista da compreensão histórica, os direitos humanos constituem-se a partir do reconhecimento, muito antes de constituírem faculdade de um ou de outrem . A defesa da vida, que também defesa da dignidade humana, engloba o que a humanidade, através de muita luta e conquista, reconheceu como direitos humanos. O que vem a ser dignidade humana? É difícil definir, mas entendemos quando ela falta a alguém (como aquilo que define a própria noção de humanidade, enquanto condições mínimas, básicas e elementares para sermos gente). O nosso cotidiano está repleto de infinitas realidades de indignidade, basta ativar a nossa sensibilidade e o nosso olhar.

A mesma cultura que nos fez acreditar que direitos humanos não são os nossos direitos de ser gente também alimentou a falsa ideia de que, ao afirmamos os direitos das pessoas, estaríamos abrindo mão de seus deveres. Sempre nos fora dito que temos mais deveres a serem cumpridos do que direitos a serem gozados, usufruídos. Muitas vezes entenderam-se direitos como privilégios de uma classe social, povo ou nação, em detrimento dos demais. Ocorre que, a cada direito que conquistamos, naturalmente, sem dizê-lo, está imbricado o nosso dever. Direitos e deveres chegam juntos, não existem separados como muitos supõem.

Mas como criar identidade com direitos humanos? É preciso considerar a si mesmo e aos outros a partir da condição de portadores de direitos, de liberdade, de dignidade, ao mesmo tempo diferentes e iguais uns em relação aos outros. O que todos temos em comum é o fato de que somos humanos e comungarmos das mesmas necessidades. Todos como eu e você são seres humanos, portadores de algo sagrado e inegociável: a vida da gente. Neste sentido, nossas diferenças ou semelhanças não podem ser critérios para auferir dignidade para um ou para outrem.

Desconhecemos outra maneira de mudar culturalmente conceitos ou ideias senão pela educação. A educação em direitos humanos significa educar para a democracia, oportunizando que os cidadãos tenham noção de seus direitos e deveres e que lutem por eles. É papel da escola, e da educação, contribuir para a compreensão do mundo, para uma melhor inserção nele. A cultura de direitos humanos promove condições em que ocorram a tolerância, o diálogo, a cidadania, a diversidade. Deve também permitir a liberdade de organização e luta aos grupos organizados em torno de seus direitos. Deve exigir um Estado protetor e promotor de direitos humanos, e não violador da vivência da cidadania e das liberdades. A consciência, quando transformada em luta (diária, cotidiana, permanente), é quem garantirá a exigibilidade de nossos direitos.

Educação em direitos humanos não é somente um conteúdo a ser ensinado, mas pressupõe, antes de tudo, a vivência de valores e atitudes que cultivem a preservação da vida, das singularidades e das diferenças. Para mudarmos atitudes e conceitos precisamos ser motivados, sensibilizados e estimulados a compreender o ser humano em suas diferentes situações e realidades.

A dignidade, da qual somos portadores, abre horizontes para perceber e acolher a necessidade do outro. Eu, você e nós conquistaremos felicidade quando pudermos compartilhar vida plena, na humanidade que reside em cada um e cada uma de nós, sendo iguais no fato de possuirmos diferenças e termos mesmas necessidades.

*Nei Alberto Pies é professor e ativista de direitos humanos



Subsídios para aprofundamento do tema:

1. “Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida
humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas. — O mundo é isso — revelou — Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. (Poema O Mundo, Eduardo Galeano)

2. Cartilha Direitos Humanos tudo a ver com a nossa vida! Publicação da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo.

http://www.cdhpf.org.br/25anos/cartilha_dh.html )

3. Declaração dos direitos humanos versão popular Frei Betto

http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/documentos/0008.html

Mariátegui e o jornalismo contra-hegenônico


Por Cristian Góes no PORTAL GRABOIS
 
Em razão do tipo violento de invasão cultural norte-americana e europeia, especialmente com mais força no século XX, este país acabou, literalmente, dando as costas para a América Latina, suas culturas e povos. Um dos resultados mais trágicos dessa ação deliberada de exclusão é o desconhecimento e, consequentemente, desvalorização da intensa e rica produção intelectual de nossos hermanos.
São inúmeros pensadores, escritores, intelectuais, lutadores do povo que entraram para nós na categoria de invisíveis. Mariátegui é uma dessas personagens que precisa ser alumbrado.
 
Libertário

José Carlos Mariátegui é peruano, nascido em 14 de junho de 1894, em Moquegua, uma cidadezinha ao sul de Lima. Foi jornalista e, segundo Luiz Bernardo Pericás (1), “é um dos mais criativos e originais pensadores marxistas de nosso continente”. Dedicou-se, na teoria e prática, a questão educacional. Teve participação ativa nas universidades populares, no movimento estudantil, nas ações com camponeses e indígenas, na fundação da Central Geral dos Trabalhadores e do Partido Socialista do Peru. Mas Mariátegui é também um intenso produtor de uma comunicação ativa, libertária, socialista. Ele é referência na criação de várias revistas e jornais revolucionários e contra-hegemônicos no Peru.
Desde criança, José Carlos Mariátegui teve grandes dificuldades com sua saúde. “Sofrera de inanição e formação física defeituosa, com cansaço, febres e dores constantes – teve pouco acesso à educação formal. Foi basicamente autodidata por toda vida”. Nas muitas horas de solidão e isolamento, era nos livros de bibliotecas que mergulhava. Uma de seu bisavô, que foi jornalista, político, e outra do intelectual Manoel González Prada, que acaba sendo uma espécie de mestre para Mariátegui. Essa condição de autodidata terá forte influência em quase toda sua produção intelectual. Ele torna-se um crítico feroz da letargia e do conservadorismo nas universidades.
 
Revista Amauta

Mesmo com saúde muito frágil, começa a trabalhar como gráfico em jornais e revistas, círculos povoados de intelectuais anarquistas, rebeldes, comunistas, antioligárquicos. Inicia como entregador, assistente gráfico e linotipista em La Prensa. Em pouco tempo passa a escrever e publicar artigos, inicialmente crônicas do cotidiano. Mariátegui colaborou com várias revistas e jornais, como El Tiempo, El Túrf e Lulú. Junto com Abraham Valdelomar, Percy Gibson e José Maria Eguren cria a revista modernista Colónia, onde publica poemas. Ele também foi um dos criadores da revista Nuestra Época e, em seguida, do jornal La Razón,instrumento fundamental de apoio aos trabalhadores que realizavam vários movimentos grevistas pelo país. Mais tarde faz sua própria revista, a Amauta, que em quéchua que significa sacerdote, sábio. A publicação divulga as ideias socialistas, na qual colaboram os mais importantes intelectuais de vanguarda do Peru. Anos mais tarde, o próprio Mariátegui, que chegou a ser vice-presidente do Círculo de Periodistas do Peru, também começará a ser chamado de "Amauta" pelos intelectuais progressistas e socialistas de todo o continente. A revista circulava nas áreas urbanas e rurais no Peru. No campo, por exemplo, os textos da Amauta eram lidos em voz alta para os camponeses e depois ocorriam debates sobre o tema abordado. A revista não era apenas destinada a um público intelectualizado, mas aos camponeses e indígenas, muitas vezes analfabetos ou com pouca instrução formal.
 
Denúncias

Em seus jornais e revistas, Mariátegui denuncia a miséria do povo peruano, o militarismo e o governo do Partido Civilista. Não se cala diante do atraso econômico de grande parte da população controlada pelo capital imperialista, que mantém relações sociais injustas para perpetuar seu domínio e aumentar seus ganhos. Ele tem participação ativa na luta dos camponeses, dos índios e de uma massa operária crescente. Mas é junto ao movimento estudantil que tem maior ação. Ele defendia a união entre estudantes e trabalhadores na luta pelo Socialismo.
Antes do exílio que ia sofrer por críticas ao Governo de Augusto Leguía, José Carlos Mariátegui ainda recebeu forte influência do amigo, professor de Direito, diplomata e jornalista Victor Maúrtua, um entusiasta da Revolução Russa de 1919 e das doutrinas socialistas. É a partir daí que Mariátegui será um ferrenho defensor do envolvimento dos artistas e cientistas nas lutas do povo no sentido de ajudar a transformar o mundo e a “construir um homem novo”. No final de 1919, ele chega à França exilado, mas logo depois vai à Itália e depois para Alemanha. Sua passagem pela Europa foi fundamental para consolidar seu preparo intelectual e político. Na Itália, por exemplo, participou do XVII Congresso do Partido Socialista.
 
Universidades Populares

Em 1923, quando retorna ao Peru, Mariátegui vai dar conferências nas universidades populares criadas por Abraham Gómez, Luis Bustamante e Haya de La Torre. “O objetivo desses centros de ensino seria o de promover um ciclo de cultura geral com caráter nacionalista, e outro ciclo de especialização técnica, abrindo a universidade para o proletariado e para as camadas mais pobres da população e criando a possibilidade de maior democratização da educação e do aprimoramento do nível educacional e crítico dos trabalhadores”.
Mariátegui se tornou diretor da revista Claridad, órgão oficial das unidades populares. Essa publicação, com ele, radicalizou-se na defesa socialista e começou a ser considerada também órgão da Federação Operária Local de Lima e da Juventude Livre do Peru. Mariátegui ainda fundou a Sociedade Operária Claridad, representante das federações de trabalhadores e indígenas, das Universidades Populares González Prada e dos intelectuais de vanguarda, que tinha como objetivo a publicação de um jornal classista para disseminar os anseios do proletariado, assim como o de abrir livrarias operárias e editar livros, folhetos e revistas de propaganda que difundissem a cultura das classes oprimidas. Mariátegui se torna provavelmente a figura de esquerda mais conhecida e importante do país. Ao longo dos anos, sua casa se transformou no principal local de encontros de intelectuais, artistas, operários e estudantes.
Ainda em 1925, fundou, com seu irmão Julio César, a Editora Minerva, por onde publicou seu livro “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”.
Em 7 de outubro de 1928 Mariátegui ajuda a fundar o Partido Socialista do Peru, tendo sido eleito Secretário-Geral. No início de 1929 ajudou a organizar a Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru. Até o final da vida dirigiu a revista Mundial e ainda teve forças para fundar o jornal quinzenário Labor. Faleceu a 16 de abril de 1930, deixando sua vida como referência para todos os lutadores do povo, especialmente aqueles que se dedicam a educação e a comunicação para um outro tempo, um outro mundo.

NOTAS
 
(1) MARIÁTEGUI, José Carlos. Mariátegui sobre a educação. Seleção de textos. Tradução de Luiz Bernardo Pericás. São Paulo: Xamã, 2007.
Cristian Góes é jornalista, editor da Revista Paulo Freire e membro do Grupo de Pesquisa Educação e Movimentos Sociais da UFS

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Laicidade do Estado como garantia de direitos e proteção contra a discriminação

Editorial do SUL21

Encabeçado pela Liga Brasileira de Lésbicas, começa a tomar corpo em todo o país um movimento pela retirada dos símbolos religiosos dos espaços públicos. Na última segunda feira (5), um documento com esta solicitação foi entregue ao presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, deputado Adão Villaverde (PT), que se comprometeu a submeter a reivindicação às bancadas partidárias. No mesmo dia, documento com teor semelhante foi protocolado no Palácio Piratini, destinado ao governador Tarso Genro, que ainda não se manifestou a respeito.
No dia 7 de novembro, as presidências da Câmara Municipal de Porto Alegre (CMPA) e do Tribunal de Justiça do RS (TJ-RS) já haviam recebido igual solicitação. Na CMPA, ainda que documento já tenha sido encaminhado para a Assessoria Jurídica da casa ele não foi distribuído, até o momento, para nenhum dos advogados do corpo funcional para análise. No TR-RS, um parecer já foi encaminhado ao corregedor, mas não até aqui não foi dado conhecimento público do seu teor.
Antes do Rio Grande do Sul, o Piauí foi palco de movimentação semelhante, sob a coordenação da mesma Liga Brasileira de Lésbicas que entregou documento ao Ministério Público daquele Estado, pedindo que o mesmo tipo de providência fosse tomado.  Mesmo acatado pelo MP, o pedido de retirada dos símbolos religiosos dos três poderes públicos locais não foi levado a termo, uma vez que uma liminar judicial derrubou a decisão.
Além da já citada Liga Brasileira de Lésbicas, não por acaso os pedidos de retirada dos símbolos religiosos no Rio Grande do Sul foram assinados também por outras entidades de defesa de homossexuais e de discriminados, como o grupo Somos, o grupo Nuances, o grupo feminista Themis, a Rede Feminista de Saúde e a Marcha Mundial das Mulheres. Estes grupos congregam segmentos sociais que foram historicamente perseguidos e que ainda hoje são estigmatizados pelos preceitos religiosos das igrejas cristãs, exatamente aquelas cujos símbolos encontram-se expostos nos locais públicos.
Baseadas no artigo 19 da Constituição Federal brasileira, as entidades acima nominadas reivindicam apenas o respeito à determinação constitucional da laicidade do Estado. Desejam simplesmente que a lei maior seja cumprida e que a religião ou a sua ausência seja uma escolha individual, livre de qualquer influência que possa ser exercida por entidades e/ou agentes públicos. Em um Estado laico como o brasileiro e que desde a constituição republicana de 1891 consagrou a separação entre igreja e Estado não deveria ser motivo de estranheza tal reivindicação.
Na verdade, a estranheza deveria advir da manutenção de símbolos religiosos nos espaços públicos, principalmente os vinculados às atividades do Estado, após a promulgação da Constituição de 1988 e num momento histórico em que se apregoa, cada vez mais, o respeito à divergência e à diversidade. Não procedem os argumentos do hábito arraigado e/ou dos costumes, utilizados pelos que defendem a presença de tais símbolos. O que deve valer é a letra fria da lei. Por mais disseminados que sejam os princípios e as crenças religiosas, nada justifica a imposição de uma religião sobre as demais ou sobre os sem religião. Nada justifica, além disso, à luz dos fundamentos democráticos contemporâneos, o domínio de uma maioria, por mais ampla que ela possa ser, sobre as minorias, a ponto de serem desrespeitados seus direitos elementares de cidadania.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Blogosfera pode reviver jornalismo "heroico"

Franklin Martins no PORTAL VERMELHO


O jornalista e ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), Franklin Martins, defende a necessidade de a blogosfera avançar na produção de reportagens. Ele acredita na retomada do que ele chama de "período heroico do jornalismo" com a ampliação do papel da internet como fonte de informação pela sociedade

Franklin, que ocupou o cargo no segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez um discurso assumidamente otimista sobre o horizonte da comunicação no país. Ele participou do seminário "Mercado Futuro de Comunicação", organizado pela Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom) em São Paulo, nesta segunda-feira (5). O evento é voltado a discutir as oportunidades do setor nos próximos anos, especialmente para pequenas e microempresas.

Falando a um público de editores de publicações alternativas, produzidas fora de conglomerados de mídia, o jornalista defendeu a necessidade de se evitar o estigma da segmentação. "Ser alternativa não é segmento, é fazer jornalismo alternativo, de grande qualidade onde o espaço público prevaleça sobre o privado", definiu.

A blogosfera, avaliou, embora cumpra uma importante função de "grilo falante" da imprensa, como Martins se acostumou a defender, "não conseguiu avançar na reportagem". A maior parte da produção vai no sentido de qualificar ou desqualificar o conteúdo publicado pela velha mídia, o que foi importante para revelar a verdade em episódios como o plágio de um artigo do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) em maio de 2010, e o que ficou conhecido como o "caso da bolinha de papel" atirada em José Serra (PSDB) durante a campanha eleitoral do ano passado.

O jornalista avalia ainda que a redução de custos para produção de conteúdo permite uma democratização importante, que precisa ser aprofundada com a criação de alguma forma de central de reportagem autônoma. O modelo seria o de uma central de uma rede de veículos que captaria recursos, absorveria e remuneraria a produção. O conjunto de publicações na internet, seja de portais de notícia, seja de blogues, reproduziria as reportagens, permitindo ampliar a visibilidade da produção. "Sozinho, ninguém tem 'bala na agulha' para isso", avalia.

O ministro citou reportagens importantes já produzidas por blogueiros autônomos como sinal de que é possível avançar nesse sentido. O primeiro exemplo foram matérias escritas por Conceição Oliveira (do blogue Maria Frô), sobre as enchentes em São Paulo no início de 2011. O segundo, mais recente, foram informações apuradas pelo deputado federal Brizola Neto (PDT-RJ) e pelo jornalista Fernando Brito sobre o acidente da Chevron na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro.

"Isso mostra que a blogosfera pode fazer isso, pode ir atrás de assuntos que a velha mídia não dá, seja porque não tem interesse em apurar, seja porque está cansada", sugere. "A blogosfera vai ter bala na agulha para isso? Será que pode ter uma central de reportagem, que capte recursos para isso, bancada politicamente por todo mundo?"

Ele avalia que o desafio é superar a opinião e entrar na seara da informação. "Mas o jornalismo heróico (do século 19) começou igualzinho, com muita opinião e pouca informação", disse. A necessidade de mudar deveu-se a demandas do público e da necessidade de se preservar a relevância.

O papel que cabe aos conglomerados de comunicação no Brasil depende da forma como essas empresas se comportarem. "Se a imprensa ficar de mal com o país, não vai a lugar nenhum, não manda em nada. Se pensar que Bolsa Família é 'bolsa-esmola', se for contra o Plano Nacional de Banda Larga, não chega a lugar nenhum", disse.

Mas ele descarta a possibilidade de a internet eliminar os jornais e revistas – embora possa eliminar a necessidade de impressos em papel. A questão é a necessidade de forjar um espaço público onde temas são trabalhados com mais profundidade e menos parcialidade. "Mas os jornais no Brasil são muito ruinzinhos, não se pautam pelo imponderável da notícia, mas pelos seus próprios preconceitos", sustenta.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Homenagem a um grande homem de esquerda que nos deixou

Por André Lux em seu blog

Palavras do meu amigo jornalista esportivo Elias Aredes Júnior: "Sócrates morreu. Com ele, um pouco de originalidade. Em tempos de politicamente correto e de demonização do pensamento de esquerda, Sócrates nunca ficou em cima do muro. Mostrava admiração por Lula, Fidel Castro e não estava nem aí para a patrulha. O mundo do futebol é dominado por atletas sem cerebro e sem pensamento. Quando param, mesmo quando viram comentaristas, são portadores de frases. Sócrates foi original, único, indescritivel. Por isso fará falta. E como!"







Alan Nasser: Trabalhadores dos EUA cada vez mais parecidos aos de países pobres

A política econômica da redistribuição



por Alan Nasser, no Counterpounch

Traduzido por H. C. Paes via VIOMUNDO

A sabedoria econômica convencional ensina que não é do interesse dos empregadores deprimir os salários a níveis desesperadores, pois a maioria dos consumidores é assalariada e a demanda por bens de consumo responde por algo entre 66% e 72% do Produto Interno Bruto. Se os empregadores rebaixassem os vencimentos demais, eles destruíram ao mesmo tempo sua clientela, o que não é bom para o capital, e tampouco para o trabalho.

Essa linha de raciocínio baseia-se na premissa de que o capitalismo é organizado de tal forma que o mercado de trabalho de cada nação é não apenas inteiramente doméstico, mas também corresponde à única fonte de demanda pela produção de sua economia. Porém, o capitalismo é um sistema global e seus entes soberanos não são economias fechadas. A base laboral e o mercado consumidor das corporações de grande porte típicas são, hoje, globalmente dispersos. Na verdade, as últimas décadas testemunharam a criação, pela primeira vez na história, de um mercado de trabalho global.

A exportação de empregos caiu na boca e na mente do povo, e hoje a maior parte dos trabalhadores a entendem como uma causa significativa do drama de desemprego por que passam os EUA. A perda de vagas para regiões de mão-de-obra mais barata não é um fenômeno novo; vem tomando fôlego desde os anos 60. Em 1959, a manufatura representava 28% da produção doméstica. Em 2008, 11,5%. Essa tendência tem se acelerado com a desregulamentação do fluxo de capitais através de fronteiras nacionais. Desde 2000, os Estados Unidos perderam milhares de fábricas e um total de 5,5 milhões de empregos na manufatura, o que corresponde a um declínio de 32%. No fim de 2009, menos de doze milhões de estadunidenses trabalhavam em manufatura. A última vez em que esses números foram registrados foi em 1941.

A produção de engenhocas não é o único setor em que se tem visto empregos serem exportados. Temos [nos EUA] maior familiaridade com as centrais de atendimento telefônico ultramarinas, mas todo tipo de posto de trabalho qualificado também tem sido despachado para o exterior. Profissionais altamente qualificados como engenheiros e projetistas, arquitetos, programadores e outros têm sido contratados em número cada vez maior pelas companhias estadunidenses na China, na Rússia, na Índia e nas Filipinas.

Nestes tempos neoliberais, não mais nos escandalizamos ao descobrir que essa estratégia é apregoada com vigor por ninguém menos do que o chefe do Conselho de Trabalho e Competitividade do presidente Obama, Jeffrey Immelt, que coincidentemente é o principal executivo da General Electric. O ano de 2010 foi emblemático para a GE, com US$ 9,1 bilhões dos US$ 14,2 bilhões de lucro total tendo vindo de suas operações estrangeiras. Immelt não mostra recato algum com respeito à sua indiferença pelos trabalhadores estadunidenses. Num encontro de investidores em 6 de dezembro de 2002, ele declarou com entusiasmo que “Quando falo com gerentes da GE, falo em China, China, China, China, China. É preciso estar lá. É preciso mudar a maneira como as pessoas falam sobre ela, e a forma de se chegar lá. Sou um fanático pela China. A produção exportada para a China vai crescer para 5 bilhões. Estamos construindo um centro tecnológico na China. Toda discussão, hoje, tem de ser centrada na China. O custo-base é por demais atraente. É possível, no caso de um refrigerador de meio metro cúbico, fazê-lo na China e embarcá-lo para os EUA por um custo menor do que o necessário para fazê-lo nós mesmos.”

Este é o homem que Obama encarregou para liderar um comitê criado com o propósito de se debruçar sobre a crise de desemprego que passa o país. Todavia, não creio que a obsessão de Immelt com a atividade econômica no exterior se limite à mão-de-obra barata e os custos menores. Segue outra declaração: “Hoje nos posicionamos no Brasil, na China, na Índia, porque é lá que estão os clientes”.

Puxa, isso parece aquele papo leninista sobre a insuficiência dos mercados domésticos para absorver a produção econômica. O trabalhador estadunidense não está apenas se tornando cada vez menos importante como um fator de produção, mas também não é mais visto pelo grande capital como o cliente mais promissor, ou a fonte mais robusta de receita de vendas.

Tanto do lado da oferta, como do da demanda, o trabalhador/consumidor estadunidense é visto como cada vez mais descartável. O outrora Secretário do Trabalho de Clinton, e atual diarista virtual de matriz liberal, Robert Reich, é de opinião que essa estratégia é irracional, mesmo sob a óptica capitalista: “Lucros corporativos estão em alta atualmente, em grande medida, porque os salários se encontram deprimidos e as companhias não estão contratando. Contudo, isso é uma receita para o fracasso no longo prazo, mesmo para as corporações. Sem suficientes consumidores estadunidenses, elas estão com os dias lucrativos contados. Afinal, há um limite para o quanto de lucro elas podem auferir com cortes na folha de pagamento dos estadunidenses, ou mesmo com vendas no exterior. Os consumidores europeus não estão com espírito para fazer compras. E a maior parte das economias asiáticas, inclusive a China, está em desaceleração”. Reich simplesmente não sacou.

A referência a “consumidores europeus” não vem ao caso; não é a Europa que Immelt e companhia têm em mente. Exportações são, de fato, o lance do momento, mas os consumidores, na opinião da elite, devem ser encontrados nos mercados emergentes. Obama vem entoando, por anos agora, o mantra “exportar mais, consumir menos” como se fosse a chave para a revitalização econômica dos EUA. Seus patrões raciocinam por um processo de eliminação. Eles sabem que o produto total da economia é gerado por quatro, e apenas quatro, tipos de gasto: demanda de consumo, demanda por investimento, demanda governamental e demanda por exportações.

O consumo não é promissor como estímulo à produção e ao lucro porque a maioria dos consumidores é assalariada, e eles são mal pagos, vêm sofrendo cortes absolutos em seus vencimentos, estão gravemente endividados e se encontram ou desempregados, ou subempregados. O investimento não cola por dois motivos: nenhum empregador investe quando o poder aquisitivo se encontra excepcionalmente baixo e, mais importante do que isso e completamente ignorado pelos comentaristas, a presente depressão não é causada por uma escassez de capacidade instalada ou por obsolescência de equipamentos. Um conjunto bem desenvolvido de unidades produtivas se encontra instalado e pronto a operar. Não se precisa de investimento adicional. Quanto a despesas governamentais é com fins produtivos, elas são descartadas pelo consenso neoliberal. Obama tem seguidamente ressaltado que a recuperação econômica deve ser firmada nos míticos mecanismos autorrestauradores do setor privado.

Resta-nos a exportação como o equivalente econômico do “Abre-te, sésamo!”. Obama expôs sua estratégia em um discurso, a respeito de sua Iniciativa Nacional para a Exportação, proferida à conferência anual do Ex-Im Bank (agência federal estadunidense para crédito exportador) em 11 de março de 2010: “os mercados de crescimento mais rápido do mundo se encontram além de nossas fronteiras. Precisamos competir por esses clientes porque as outras nações estão competindo por eles”.

O foco na exportação é consistente com a atual geopolítica da elite, que é registrada de forma confiável pela imprensa especializada em negócios, de forma mais notável em periódicos-chave como Foreign Affairs, The Financial Times e The Economist. O pensamento atual é que há um deslocamento global da atividade manufatureira do “Ocidente” para o “Oriente”, à medida que as nações economicamente maduras – EUA, Europa e Japão – se desindustrializam enquanto os mercados emergentes, principalmente na Ásia, preenchem o vácuo global ao desenvolverem sua própria aptidão industrial. A observação de Reich de que “a maior parte das economias asiáticas, inclusive a China, está em desaceleração” é correta, mas desprovida de importância. O que importa, conforme mencionou Obama, é onde se encontram “os mercados de crescimento mais rápido do mundo”. A desaceleração atual da Ásia é compatível com o rápido crescimento, dentro da China e da Índia, por exemplo, de uma nova classe média e de um extrato de novos-ricos. Esses são vistos pelas elites ocidentais como o lugar onde a ação está, hoje e no futuro.

Um relatório do Citigroup que já se tornou notório engloba essa cosmologia econômica com sua tese de que “o mundo está se dividindo em dois blocos – a Plutonomia e o resto”. A crescente desigualdade se tornou planetária. Num mundo globalizado, assim narra o documento, os consumidores nacionais – “o consumidor estadunidense”, “o consumidor japonês” – são obsoletos. Há apenas os ricos e o resto. Os primeiros são proporcionalmente em número pequeno, mas rapidamente crescente à medida que políticas neoliberais transferem a eles os recursos do resto. Os últimos figura de forma correspondentemente marginal no conjunto dos fatores que importam para a classe de pessoas de posses.

O executivo-chefe, radicado nos EUA, de um dos maiores fundos de cobertura de riscos do mundo contou a um articulista do The Atlantic que “o esvaziamento da classe média estadunidense realmente não importava”. Ele descreveu o assunto de uma discussão executiva que teve lugar há algum tempo este ano: “… se a transformação por que passa a economia mundial tirar quatro pessoas da pobreza na China e na Índia e as trouxer para a classe média, e simultaneamente isso significar que um estadunidense despenca da classe média, não se trata de uma permuta tão ruim”.

O vice-presidente de operações financeiras de uma empresa de Internet dos EUA se manifestou no mesmo sentido: “Nós [estadunidenses] exigimos um contracheque mais polpudo que o resto do mundo. Então, se vocês pedem dez vezes o salário, vocês têm de produzir dez vezes o valor. Soa cruel, mas talvez as pessoas na classe média precisem decidir aceitar um corte nos vencimentos.”

No Festival de Idéias de Aspen, no verão de 2010, o executivo-chefe da companhia Applied Materials, do Vale do Silício, declarou que se ele estivesse começando do zero, apenas 20% de sua força de trabalho seria doméstica: “Este ano, quase 90% de nossas vendas serão fora dos EUA. A pressão para estarmos próximos a nossos clientes – a maioria na Ásia – é enorme”.

E Thomas Wilson, executivo-chefe da Allstate, é desavergonhadamente franco sobre a maneira como a globalização gera uma oposição entre os interesses da classe trabalhadora e do mundo dos negócios: “Eu consigo (trabalhadores) em qualquer lugar do mundo. Há um problema para os Estados Unidos, mas não necessariamente para as empresas estadunidenses… elas vão se adaptar.” [Vide Chrystia Freeland, “The rise of the new global elite” (A ascensão da nova elite global), em The Atlantic, janeiro/fevereiro de 2011.]

Isso tudo se resume numa política econômica de redistribuição. O crescimento global lento dos últimos 30 ou 40 anos, que não tem fim à vista, tem sido interpretado pela esquerda como uma indicação de uma “crise” que se espalha, uma falha do capitalismo em corresponder às expectativas. Do ponto de vista dos trabalhadores, essa descrição é precisa, uma vez que a ideologia legitimadora do capitalismo nos assegura que todos prosperarão enquanto o capitalismo estiver fazendo seu trabalho.

Contudo, do ponto de vista dos capitalistas, cujo objetivo é acumular riqueza, crescimento lento não é necessariamente um sinal de crise, uma vez que a riqueza pode ser acumulada por redistribuição, pelo aumento da desigualdade, na ausência de taxas de crescimento robustas. Isto é que está acontecendo intra- e internacionalmente. A exportação de empregos e clientes é parte do jogo. Lucros são receita menos despesa. O aumento da receita, assim pensam as elites, deve ser buscado no estrangeiro. A redução dos custos deve ser atingida em toda parte.

Podemos chamar isso de Terceiro-mundialização do resto, ou, se mantivermos o foco nos assalariados dos países desenvolvidos, de a progressiva obsolescência da classe trabalhadora. Jamais será possível, é claro, tornar os trabalhadores completamente obsoletos. O que está acontecendo é que nos aproximamos desse estado assintoticamente. Pode-se fazer a objeção de que há limites claros para o quanto a classe trabalhadora pode ser empobrecida – afinal, os trabalhadores têm de ser mantidos aptos para o trabalho. Há um limite para o quanto se pode redistribuir a riqueza em favor das classes mais altas. Porém, a desigualdade sempre crescente é percebida pelas elites como alcançável por obra e graça das possibilidades infinitas de maior endividamento. Os trabalhadores podem fechar as contas no fim do mês ao hipotecarem seus rendimentos futuros indefinidamente.

Não é disparatado enxergar nisso uma parecença cada vez maior dos trabalhadores estadunidenses àqueles dos países pobres. Sabe-se que formuladores de prognósticos econômicos de grande reputação se referem aos EUA como “o México da Europa”. No futuro próximo, prevêem, alguns estados dos EUA, principalmente no sul, mas também incluindo a Califórnia e o Cinturão da Ferrugem, não apenas serão a regiões de mão-de-obra mais barata do mundo desenvolvido, mas também serão competitivas com relação à Índia e a China. Os salários estão subindo nos países pobres dedicados aos setores fabril e de serviços, e caindo nos ricos. E os trabalhadores estadunidenses tendem a aquiescer, enquanto a periferia efervesce com descontentamento.

Os custos de produção convergem gradualmente entre a China e os EUA: os trabalhadores estadunidenses de baixo salário são mais produtivos, e os custos de combustível devem continuar a crescer, tornando cada vez mais caro despachar bens mundo afora. Trabalhadores não-sindicalizados contratados pela Ford para realizar inspeções em sua planta de caminhões em Dearborn recebem dez dólares por hora sem benefícios, um valor que, de acordo com projeções, é menor do que a média chinesa por volta de 2015.

Empresas como a Ford, a Caterpillar, a Wham-O (fabricante do Frisbee), a Master Lock, a Suarez Manufacturing e a própria General Electric recentemente transferiram unidades de produção da China e do México para a Geórgia, Ohio, Indiana, Wisconsin, Califórnia e Michigan. Essa tendência pode ser ou não crescente, mas o mero fato de que algumas regiões do país se tornaram novamente competitivas com México e China é um atestado do infortúnio do trabalhador estadunidense.

O selvagem neoliberal favorito do New York Times, Thomas Friedman, resume esse projeto de implantação de miséria da maneira que lhe é peculiar: cabe a nosso país “cortar os vencimentos do setor público, congelar benefícios, cortar vagas, abolir uma gama de direitos do bem-estar social e mandar programas de construção de escolas e manutenção de estradas para a guilhotina”.

Friedman vai em frente e critica os trabalhadores estadunidenses e da Europa ocidental por acreditar na “fada do dente” e esperar serviços governamentais sem pagar por eles. Nos EUA, diz Friedman, a geração do pós-guerra, que herdou a riqueza daqueles anos, “devorara toda a abundância como gafanhotos famintos… depois de 65 anos em que a política do Ocidente se tratou, principalmente, de dar coisas a eleitores de mão beijada, ela passará a ser, principalmente, de tomar essas coisas deles. Digam adeus à política da fada do dente e saúdem a política do tratamento de canal”. (9 de maio de 2010)

A oligarquia expôs, em termos simples e claros, sua estratégia de jogo. Qual será nossa resposta?



Alan Nasser é professor emérito de Economia Política da faculdade estadual Evergreen em Olympia, estado de Washington. Este artigo foi adaptado do livro que está escrevendo, The “New Normal”: Chronic Austerity and the Decline of Democracy (A “nova normalidade”: austeridade crônica e o declínio da democracia). Ele pode ser contactado pelo endereço eletrônico nassera@evergreen.



Antanas Mockus propõe cultura cidadã para a transformação social


Ex-prefeito de Bogotá (Colômbia) adotou sua Doutrina da Cultura Cidadã e trouxe melhorias, como a queda dramática na taxa de homicídios | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

André Carvalho no SUL21

Além de ser a capital da Colômbia, Bogotá era conhecida pelos abusos do crime organizado, a pobreza e as práticas de corrupção. Para mudar esse cenário, Antanas Mockus organizou um sistema de segurança da comunidade, com 7 mil homens, que diminuiu em 70% o número de homicídios e em 50% as mortes no trânsito.
Matemático, filósofo e ex-prefeito de Bogotá por duas gestões (de 1995 a 1997 e de 2001 a 2004), Mockus ficou conhecido por suas ações políticas pouco comuns, praticadas na cidade colombiana. Dentre elas, a que ganhou maior destaque foi a que ele chamou de Doutrina da Cultura Cidadã. O ex-prefeito de Bogotá, adepto da bicicleta como meio de transporte, acredita que as regras não são estáticas, devem sempre ser atualizadas de acordo com o seu momento, e que é a partir desta tripla relação que se transforma uma sociedade e melhora as relações sociais.
Seu governo distribuiu cartões com polegares para cima e para baixo aos motoristas, usados para manifestar descontentamento em incidentes de trânsito. Outra medida foi contratar mímicos para ridicularizar pessoas que violavam as leis de tráfego. Parte da estratégia das políticas de Mockus era de melhorar a capacidade de expressão e de comunicação dos cidadãos.
Em meados da década de 1990, Bogotá, com uma população de 7 milhões de habitantes e uma taxa de 80 homicídios por 100 mil habitantes, foi considerada a cidade mais violenta da América Latina. Dez anos depois, esse índice caiu para 23 por 100 mil (queda de 71%), e a previsão para este ano é de 18 homicídios por 100 mil habitantes.
O Sul21 teve a oportunidade de conversar com Mockus em sua visita a Porto Alegre, para o 10º Congresso Mundial Metropolis. Abaixo, os melhores momentos da conversa.
“As pessoas não nascem cidadãs. Assim como as pessoas têm predisposição a falar, elas têm a predisposição de tornarem-se cidadãs ao longo do tempo”
"A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Em que consiste exatamente esta política de Cultura Cidadã?

Antanas Mockus: Em primeiro lugar, é importante compreender que uma pessoa não nasce falando. Entretanto, há uma predisposição, uma tendência para falar. O mesmo vale para cidadania. O sujeito não nasce cidadão, ele passa a ser cidadão ao longo do tempo. Quero dizer, inicialmente ele não tem consciência de seus direitos, muito menos capacidade de defendê-los. Porém, assim como as pessoas têm uma predisposição a falar, elas têm uma predisposição a descobrir seus direitos e deveres e com isso, tornarem-se cidadãs. A cultura cidadã é composta por três pilares: as leis do Estado, a moral dos indivíduos e a cultura da sociedade. A partir do cruzamento destes três pontos, a formação cidadã do sujeito se constrói dentro de seis aspectos: O primeiro, parte do princípio de uma norma moral. Por exemplo, se eu te digo: “não jogue esse papel no chão”, tu certamente já teria ouvido alguém te dizer isso, mas a questão não está no pedido mas sim na ação. O que acontece se todo mundo começar a jogar os seus papéis no chão? Acontecerá a universalização da conduta criticada. Quero dizer, as ruas ficariam sujas, a cidade feia. Se criaria um péssimo hábito cultural. Não seria algo positivo, nem pro ator da ação, nem para o todo. Mas como essa é uma ação que sabemos que não deve ser feita, as pessoas vão aprendendo a raciocinar moralmente. Porém, este raciocínio moral está intrínseco a lógica de que somos educados por nossos pais, o que nos leva ao segundo aspecto, onde a partir dessa educação, surgem os princípios do que é bom ou é ruim, o que é certo ou é errado. O terceiro aspecto refere-se aos critérios sociais de reciprocidade, que normalmente surge no sujeito ainda criança. “Olha, te emprestei meu brinquedo, me empresta o teu”. E as crianças acabam aprendendo isso com a vida e levam isso consigo. Quero dizer, se uma criança empresta um boneco para um amigo, ele sabe que na lei da reciprocidade, ele poderá pegar um carrinho do outro. A quarta etapa diz respeito ao sentido das regras, tanto locais, quanto universais, onde o sujeito as reconhece e a partir disso, busca defendê-las ou transformá-las, utilizando-se de argumentos. Entretanto, a defesa é mais comum do que a transformação, visto que tradicionalmente a sociedade tem um pensamento conservador e por isso, resistente a mudanças. Mas é claro, isso não é uma regra e as mudanças também ocorrem, vindo especialmente por parte dos jovens. E aí entra a quinta etapa, que diz respeito as regras impostas pela sociedade e através de um discurso racional os jovens tendem a questioná-las sua funcionalidade e legitimidade. A partir destes questionamentos buscam melhorá-las e/ou adaptá-las para o contexto atual. Por fim, a sexta etapa é levantada por princípios éticos discutido pelos direitos humanos universais. A partir destes seis aspectos que fazem a formação cidadã do sujeito, é possível afirmar que ele composto por questões legais, morais e culturais, que são os pilares da Cultura Cidadã.

Sul21: Mas o que é exatamente ser cidadão?

Antanas Mockus: Ser cidadão é obedecer harmonicamente as normas, nos âmbitos legal, moral e cultural de três maneiras. A primeira é aceitar as regras e sacrificar interesses, controlar impulsos. A segunda, é fazer valer as normas perante os outros, ou seja, é utilizar a norma a favor individual, auxiliando o próximo a se adequar a ela também. Então, já não sou mais eu quem atira os papeis no chão, mas sim, sou eu quem digo “olha, você não deve atirar papel no chão”. Por fim, a terceira e a mais contemporânea, é acreditar e defender que as normas criadas podem ser mudadas, renovadas. Quero dizer, elas existem, mas não são estáticas, eternas. Muitas regras que hoje são consideradas ultrapassadas, antigamente foram consideradas modernas e as que hoje são consideradas modernas, antigamente eram consideradas absurdas.

Sul21: É possível transformar o cidadão? Quero dizer, após anos vivendo de uma maneira, é possível mudar as suas normas legais, morais e culturais?

Antanas Mockus: Com certeza. A partir de uma educação das emoções. Se você olhar as regras de Lei, Moral e Cultura, verá que elas funcionam porque envolvem emoções, visto que segui-las, ou não, desperta emoções no sujeito. Por isso, formar a cidadania é formar emoções. Um exemplo claro disso é o seguinte: um sujeito não nasce temendo a cadeia. Não conhece, mas imagina, vê, ouve e lê coisas sobre a cadeia e a partir disso se forma uma ideia do quão terrível é. Ele molda a cadeia no seu imaginário, a partir destas informações adquiridas ao longo da vida, e com isso, cria-se o medo de ir para lá. Ou seja, o cidadão comum evitará ao máximo ir para cadeia, pois ele se move dentro da sociedade ancorado pela Lei, pela Moral e pela Cultura. A questão é: ele se move por medo ou admiração a lei? Por medo à culpa ou gratificação moral? Por medo ao rechaço ou reconhecimento social?
“Quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas”
Sul21: Então é possível ocorrer uma transformação das relações urbanas?

Antanas Mockus: Seguindo harmonicamente as normas destas três maneiras, a relação social entre as pessoas que convivem no mesmo lugar se altera. Isso é claro por exemplo, em Bogotá. Uma cidade com aproximadamente sete milhões de habitantes, e a partir da implantação desta cultura cidadã, as pessoas procuram cuidar de si e cuidar dos outros. A partir disso, quanto maior a autorregulação e a regulação social, menor será a necessidade de uma regulação legal. Digo, quanto maiores forem os cuidados um com o outro, por exemplo, menor será a necessidade da polícia nas ruas.
"Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Anteriormente o senhor falou que as regras devem ser atualizadas, pois elas não são estáticas.

Antanas Mockus: Há 20 anos, discutir questões como o aborto, a legalização das drogas, o casamento entre gays, dentre tantos outros temas atuais, era considerado impossível. E os argumentos usados naquela época sobre estes assuntos, são hoje, considerados antiquados. Só o fato de se discutir estas coisas atualmente, já demonstra um avanço legal, moral e cultural da sociedade e consequentemente, de seus cidadãos.

Sul21: Uma de suas ações como prefeito foi acabar com estacionamentos nas vias públicas, transformando-os em ciclovias. Esta ação foi bem vista pela sociedade?

Antanas Mockus: Sim, porém, as duas coisas aconteceram separadamente. Quero dizer, primeiro, queríamos acabar com a ocupação dos carros nas ruas, pois os índices de roubos de carro eram enormes. Posteriormente veio a ideia de transformar o espaço em ciclovias. Entretanto, num primeiro momento, as ciclovias foram instaladas em alguns pontos da região central da cidade, o que foi visto positivamente pela sociedade. Posteriormente, fizemos um mapa cicloviário para ampliar os pontos de trânsito para as bicicletas. Além disso, quando fizemos as ciclovias, a ideia era usá-la para passeios, mas acabou virando um espaço de locomoção para estudantes e trabalhadores.
“Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição”
Sul21: Quais foram as consequências disso?

Antanas Mockus: Isso nos fez ver algo que a cidade pedia, mas ninguém estava dando a atenção merecida. Quero dizer, a partir da construção das ciclovias, passamos a ver a bicicleta de uma perspectiva de um transporte do cotidiano. Hoje em Bogotá, estima-se que mais de um milhão de pessoas tenha bicicletas. Além disso, tivemos uma redução de 50% no acidentes de trânsito. Historicamente a cidade estava pensada para o conforto dos carros. Bogotá é uma cidade muito quente, e os escritórios, os órgãos públicos, não possuem banheiros com chuveiros ou instalações adequadas para um funcionário que queira ir trabalhar de bicicleta. Esse é um exemplo. Por outro lado, aquele preconceito conservador que existia pouco a pouco foi deixando de existir, pois as pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro. É tudo uma questão de posicionamento cultural.
"As pessoas foram vendo que a bicicleta é um meio de transporte muito mais agradável e que amplia a qualidade de vida que o carro" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sul21: Ou seja, houve uma transformação efetiva da sociedade.

Antanas Mockus: Com certeza. Há 20 anos atrás, quando eu era reitor da Universidade de Bogotá fui conhecido no país por ser alguém que andava de bicicleta. Porém, naquele tempo algumas pessoas achavam um absurdo uma pessoa que tinha um cargo como eu ficar pedalando por aí. Mas isso me aproximava da cidade, me fazia ver a realidade cotidiana. Além disso, era uma excelente forma de me exercitar. Agora, para se ter uma ideia, Bogotá se tornou a única cidade do mundo em que o Dia Mundial Sem Carro é legalmente quase tão sólido quanto a constituição. E isso não sou eu quem falo, fizemos uma consulta popular e o uso das bicicletas foi aprovado quase que integralmente pela sociedade. Outro ponto positivo a respeito das ciclovias esta no fato de que uma quantidade de jovens se dispõem diariamente a ajudar aqueles que não sabem andar de bicicletas e fiscalizam aqueles que tem alguma conduta ilegal, como andar nas calçadas, ou não observam os sinais. Quero dizer, não precisamos de um fiscal de trânsito para os ciclistas, pois eles mesmos já fazem esse trabalho. Isso é a prática da cultura cidadã.

Sul21: Algum outro exemplo desta prática?

Antanas Mockus: No trânsito mesmo, as pessoas que andam de carro possuem dois cartões, um com um desenho de uma mão com um polegar pra cima e outro com um polegar para baixo. Se um motorista comete uma infração, como parar na faixa de pedestres, ou andar na contramão, por exemplo, os demais lhes mostram os cartões. Isso é uma política de psicologia social. Todos acabam cuidando. Além disso, eu coloquei mímicos nas ruas para fazer ironias com àqueles que não cumprem a lei de trânsito. Ao invés deles serem multados e penalizados, eles são “constrangidos” publicamente pela ação. Como o motorista ironizado também tem a responsabilidade de cuidar, ele acaba repensando na atitude, ao invés de ficar enraivado por ser multado.