sábado, 10 de dezembro de 2011

"Socialdemocracia precisa romper com liberalismo"


Em entrevista, Benoït Hamon, líder da corrente mais radical do Partido Socialista francês, faz uma síntese dos estragos do livre comércio liberal sem freio e, sobretudo, da forma pela qual a esquerda renunciou a seus valores históricos e passou a colaborar com o mercado. “Recuperemos a marcha do progresso social” é a consigna do livro que Benoït Hamon acaba de publicar, "Tourner la Page" (Virar a página), cujo eixo é a ideia de deixar para trás os anos nos quais a socialdemocracia foi aliada do liberalismo.


Não há nada melhor que uma travessia pela verdade e pela responsabilidade para entender o colapso mundial que desembocou na crise atual e a parte de responsabilidade que toca à esquerda europeia neste desastre. Benoït Hamon oferece esse duplo componente. Este dirigente socialista da nova geração, hoje porta-voz do PS, líder da corrente mais radical do Partido Socialista francês, fez uma síntese lúcida e responsável não só dos estragos do livre comércio liberal sem freio mas, sobretudo, da forma pela qual a esquerda renunciou a seus valores históricos e passou a colaborar com o mercado.

“Recuperemos a marcha do progresso social” é a consigna do livro que Benoït Hamon acaba de publicar, Tourner la Page (Virar a página), cujo eixo é precisamente a ideia de deixar para trás os anos nos quais a socialdemocracia foi aliada do liberalismo para passar a construir agora uma outra sociedade.

Benoït Hamon constata o abismo onde os mercados financeiros lançaram a humanidade, a forma pela qual o neoliberalismo paralisa o progresso social, o consenso que impera nas elites para que sejam os povos que paguem a conta e a maneira pela qual se questiona o sufrágio universal em benefício de uma tecnocracia impune. Tourner la Page é uma espécie de mapa do caminho, uma estratégia para a recuperação do progresso social e, sobretudo, uma lúcida radiografia da socialdemocracia e seus anos de estreita colaboração com seu inimigo histórico. Frente a uma ideologia baseada na depredação, o socialismo não foi capaz de defender suas próprias alternativas. Hoje, defende Benoït Hamon, chegou a hora de romper o consenso e sair de um sistema econômico, social e monetário que só traz pobreza, destrói empregos e extrai do presente as conquistas sociais obtidas ao longo de décadas de luta.

Você aponta em seu livro uma das novidades mais emblemáticas da crise atual: a perda da soberania dos povos. Como vimos na Grécia e Itália e por meio das declarações da União Europeia e da chanceler alemã Ângela Merkel, o liberalismo tem medo do voto, ou seja, da coluna vertebral da democracia.

Durante muito tempo o liberalismo viveu mediante um compromisso firmado entre os liberais e os socialdemocratas. No entanto, quando se passou para uma nova fase isso mudou. Quando o livre comércio inaugurou outro ciclo e se produziu uma autêntica globalização da economia com medidas para a derrubada das barreiras tarifárias ou com mudanças como o fato da internacionalização da mão de obra, o capitalismo modificou sua posição.

Em primeiro lugar, ao capital já não interessa mais chegar a um compromisso com o trabalho, mas sim, ao invés disso, romper com ele para obter o máximo de lucros. No antagonismo entre os socialdemocratas e liberais o que hoje está claro é que, para os liberais, o sufrágio universal é um obstáculo à ideia que fazem de um mundo perfeito, sem travas, governado pelos mercados e no qual os instrumentos de regulação devem estar nas mãos de agências independentes, supervisores supranacionais e aparatos tecnocráticos. Os liberais recusam a supervisão política porque têm a íntima convicção de que o sufrágio universal é a ditadura do fraco sobre os fortes, a ditadura dos indigentes cujas condições de vida não permitem entender a complexidade das coisas.

Entre as elites, liberais ou não, persiste a ideia de que elas detêm um saber que as pessoas comuns não têm. Eu estou convencido de que é preciso agir de uma forma radicalmente oposta. Devemos recuperar as bases e os fundamentos da democracia nas sociedades ocidentais e europeias. Esses fundamentos estão hoje amplamente ameaçados por 30 anos de liberalismo. Observe o que ocorre na Europa onde se fala de transferência da soberania. De acordo, transfiramos a soberania da nação para a Europa, mas somente se essa transferência de soberania de uma instância democrática a outra instância democrática não mude meu poder. Aceito que a Europa reivindique a gestão de matérias que a nação não pode administrar com eficácia, mas, uma vez mais, somente quando meu voto e meu poder não sejam menos importantes que antes.

Hoje há um movimento forte nesta direção. O presidente francês e a chanceler alemã defendem que prerrogativas nacionais muito importantes sejam colocadas nas mãos da Europa.

De fato, entre outras coisas estão defendendo a ideia de submeter os orçamentos dos Estados europeus a um regime de sanções decididas por uma instância tecnocrática como a Comissão Europeia ou a Corte de Justiça Europeia. Não. Se eu decido que em meu orçamento nacional haja 10 bilhões de dólares destinados a educação, porque meu povo necessita disso, e depois vem a Corte de Justiça Europeia dizer-me que não, isso é um absurdo. Isso quer dizer que o legislador nacional que tem a legitimidade de seu povo deve modificar seu orçamento para respeitar um critério fixado por outros. Não. Isso não faz nenhum sentido. Estamos nesta situação e creio que é a principal ameaça que paira sobre as sociedades europeias.

Por acaso, o liberalismo não perdeu o medo da revolução, quer dizer, do povo?

Neste momento, na Europa, estão se plasmando características revolucionárias: crise econômica, desconexão das elites, enriquecimento dos mais ricos, sentimento de uma espécie de fatalidade segundo a qual existe só uma política possível que se traduz em mais esforços para as classes médias e populares, corrupção das elites e um clima contrário às mesmas. Tudo isso cria um contexto muito favorável para a extrema direita. Para a esquerda, não há nada pior que o debate se concentre entre, por um lado, a direita defensora da perpetuação do sistema e, do outro, a extrema direita que aparece como a única capaz de encarnar a transformação do sistema.

A esquerda aparece neste contexto como uma mescla de tudo, um pouco de sal, um pouco de azeite, um pouco de pimenta. Estou muito de acordo com o análise que faz o filósofo Slavoj Zizek quando diz que as diferenças entre a esquerda e a direita se resumem no essencial a questões de sociedade, mas questões sociais e econômicas aparecem como subtraídas do debate. Afinal de contas, as diferenças mais claras não aparecem entre os blocos esquerda/direita, mas sim entre a direita e aqueles que pretendem provocar um curto-circuito na construção europeia. A síntese é que, pouco a pouco, a socialdemocracia se dilui e desaparece da paisagem política.

Há uma lógica nisso: a socialdemocracia europeia se aliou com o capital e passou a fazer da arquitetura do mundo atual, e não como oposição, mas sim como sócia do modelo atual.

Foi isso que aconteceu. Mas a socialdemocracia é a grande perdedora deste pacto. A partir do momento em que o liberalismo econômico e o liberalismo político se impuseram, o acordo entre liberais e socialdemocratas tornou-se mortífero. Isso é o que está precipitando a queda da socialdemocracia europeia. A responsabilidade desta fase recai muito sobre os socialdemocratas alemães. Foram eles que, sob o impulso do ex-chanceler alemão Gerhard Schroeder, protagonizaram o giro liberal da socialdemocracia europeia através do pacto com o patronato, os sindicatos e os políticos para fazer baixar o custo da mão de obra. Com isso se criaram empregos mal pagos com o objetivo de ganhar competitividade. Logo depois houve a recusa dos socialdemocratas alemães de se aliar com a esquerda para formar o governo. O partido de Schroeder preferiu se aliar com a direita. O chefe do SPD me disse um dia: “esse acordo foi mortal, fomos o grandes perdedores. Nós morremos e eles prosperaram”.

Seu livro assume plenamente a responsabilidade da socialdemocracia nessa permutação da esquerda e seu conseguinte pacto ou acordo com os liberais. Mas, para você, chegou a hora de dizer basta.

Certamente. Por isso meu livro se chama “Tourner la Page”. Se queremos que as pessoas voltem a acreditar em nós, se queremos que nos escutem quando dizemos que este modelo de desenvolvimento é um modelo esgotado, que o modelo liberal fracassou, tudo isso passa pela vontade de virar a página e também, sobretudo, pelo reconhecimento de que nós estamos dentro dessa página que devemos virar. Quando fizermos isso, quando virarmos a página, deixaremos para trás uma página de nossa história marcada pela corresponsabilidade com o sistema atual.

Não creio que sejamos tão responsáveis como os conservadores ou os liberais, não. Nossa responsabilidade não é equivalente. Eles são hoje os arquitetos do desmantelamento do Estado Providência na Europa, coisa que não queremos. Isso, não obstante, não nos exime do fato de que, em um dado momento, fomos corresponsáveis. Acreditamos que podíamos construir um modelo com os liberais. Por conseguinte, os socialdemocratas europeus têm uma grande responsabilidade com a crise atual.

Para você, em que consiste exatamente virar a página? Qual é a direção?

Creio que hoje existem os meios de empreender uma política radicalmente distinta, no mínimo pelo fato de que hoje é possível evocar temas dos quais há dez anos não se podia falar. Sem dúvida, a rapidez da crise contribui para isso. Os temas centrais da transformação são os seguintes: o tema do livre comércio é essencial, ou seja, a necessidade de impor limites ao livre comércio, de regulá-lo. O segundo tema consiste em saber em que condições pode se financiar o Estado Providência, ou seja, a política tributária. Trata-se de saber de que meios se dispõe para financiar a educação, a saúde, os serviços públicos, a proteção social, a aposentadoria.

Evidentemente, o tema da política econômica e monetária é central. Sem uma política monetária e econômica constante não pode haver nenhuma mudança. É impossível dizer que se é de esquerda sem mudar a política fiscal, a política monetária, a política comercial e a doutrina da política econômica que hoje aposta no holocausto, ou seja, na competitividade por meio da diminuição do custo da mão de obra, ou seja, do trabalho.

Ninguém pode acreditar que pode ser mais competitivo em termos de custo da mão de obra que um operário chinês. É preciso mudar as três doutrinas: a doutrina monetária que aposta em um euro forte para controlar a inflação, a doutrina comercial ultra livre-comércio e a doutrina econômica que fundamenta o crescimento sob o baixo custo da mão de obra.

Ao menos na França, a dinâmica social que deveria impulsionar e acompanhar as mudanças parece ausente.

A dinâmica social existe, se estrutura, inclusive se as pessoas estão um pouco esgotadas pelos extensos movimentos sociais que ocorreram na França. A luta contra a reforma do sistema de aposentadorias foi longa e acabou derrotada. Ficou uma espécie de pedagogia negativa da luta social.

As pessoas se dizem: para que lutar se quase nunca ganhamos. Creio que se queremos sair dessa situação, se queremos recuperar a vontade política, se queremos deixar de ser tímidos diante dos bancos, se queremos deixar de ficar congelados perante às agências de classificação de risco, se queremos tudo isso devemos saturar o espaço social com nossas reivindicações.

Para virar a página não basta ter um projeto político. Mesmo quando se está no poder é preciso saturar o espaço social com as reivindicações. Aqueles que lutaram contra a direita quando ela estava no poder tem que entender que a luta recém começa quando a esquerda chega ao poder. É aí, quando a correlação de forças políticas está ao nosso favor que a força social tem que nos acompanhar. Neste sentido, penso que o recurso ao sufrágio universal e ao referendo é um meio para que o poder político legitime suas reformas.

Há uma espécie de limite no pensamento projetivo da socialdemocracia europeia. Sua capacidade de diagnóstico é brilhante, acertada, lúcida e até comovedora. Mas na hora de agir, a força não é equivalente. Por quê? Medo dos bancos? Temor ante o mundo financeiro?

Não é muito complicado: na França fazem falta quatro ou cinco leis para modificar radicalmente a natureza do laço entre os mercados financeiros e a economia real. Com uma lei sobre as transações financeiras, outra sobre a separação entre banco para atendimento do público e banco de negócios, outra sobre comissões bancárias, outra que aponte para uma reforma da aposentadoria fundado sobre o imposto ao capital, e uma outra lei tributária para que as renda pague tanto quanto os rendimentos obtidos mediante o trabalho, com esses textos já haveria uma mudança considerável. Não há nada de revolucionário nisso, tudo é autenticamente socialdemocrata. O senso comum deveria nos conduzir a isso. O assombroso é que, mediante o jogo dos lobbys, as redes e a pressão, as ameaças e os meios de comunicação, quando chega o momento de aplicar essas reformas tudo se torna muito mais complicado.

Você expressou várias vezes seu reconhecimento pelas mudanças que a socialdemocracia conseguiu fazer na América Latina, sobretudo no Brasil, Argentina e, em outro contexto ideológico, Venezuela.

O que me assombrou e interpelou na América Latina, e digo isso sem negar a dureza do combate, é o fato de que as coisas podem mudar. A correlação de forças que foi preciso enfrentar foi poderosa: Lula, Chávez, Evo Morales, Correa, Kirchner, todos enfrentaram essa situação. Não é fácil fazer política. Observo que, no que se refere a várias questões, por exemplo a mobilização de instrumentos econômicos independentes das instituições de Breton Woods, ou a questão das nacionalizações, ou da reapropriação das ferramentas de produção, em especial quando se trata de recursos naturais, em todas essas questões a América Latina demonstrou que, em uma economia globalizada, é possível reapropriar-se desses meios, redistribuir a riqueza, sem que isso arruíne um país. Na América Latina está a última juventude da esquerda mundial. Houve um momento em que essa posição esteve na esquerda europeia. Já não está mais. A esquerda latino-americana tem uma capacidade de questionar a ordem econômica mundial que a socialdemocracia europeia não tem mais.

Tradução: Katarina Peixoto

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A Privataria Tucana: livro coloca José Serra na lona


Por Erick da Silva do ALDEIA GAULESA
 
Eis que venho a luz o tão temido livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr que tirou o sono de José Serra. A Privataria Tucana,  livro de 343 páginas publicado pela Geração Editorial, traz a luz o grande esquema de falcatruas praticadas nas privatizações do governo Fernando Henrique Cardoso e o papel central do José Serra neste esquema.
Chama a a tenção o gritante silêncio da grande mídia sobre as revelações expostas no livro. Até o momento,  a única menção que a mídia publicou sobre Privataria Tucana é um anúncio da Folha para vender livros, afinal ninguém é de ferro! Digno de nota é que o livro é classificado pela Folha como "polêmico", que diferença de tratamento para as acusações contra aliados do governo Dilma.
A honrosa exceção na mídia impressa foi a 
CartaCapital, na edição que chega às bancas nesta sexta-feira 9,  traz um relato exclusivo e minucioso do conteúdo doe uma entrevista com autor (reproduzida abaixo). A obra apresenta documentos inéditos de lavagem de dinheiro e pagamento de propina, todos recolhidos em fontes públicas, entre elas os arquivos da CPI do Banestado. José Serra é o personagem central dessa história. Amigos e parentes do ex-governador paulista operaram um complexo sistema de maracutaias financeiras que prosperou no auge do processo de privatização.

Ribeiro Jr. elenca uma série de personagens envolvidas com a “privataria” dos anos 1990, todos ligados a Serra, aí incluídos a filha, Verônica Serra, o genro, Alexandre Bourgeois, e um sócio e marido de uma prima, Gregório Marín Preciado. Mas quem brilha mesmo é o ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil, o economista Ricardo Sérgio de Oliveira. Ex-tesoureiro de Serra e FHC, Oliveira, ou Mister Big, é o cérebro por trás da complexa engenharia de contas, doleiros e offshores criadas em paraísos fiscais para esconder os recursos desviados da privatização.
O livro traz, por exemplo, documentos nunca antes revelados que provam depósitos de uma empresa de Carlos Jereissati, participante do consórcio que arrematou a Tele Norte Leste, antiga Telemar, hoje OI, na conta de uma companhia de Oliveira nas Ilhas Virgens Britânicas. Também revela que Preciado movimentou 2,5 bilhões de dólares por meio de outra conta do mesmo Oliveira. Segundo o livro, o ex-tesoureiro de Serra tirou ou internou  no Brasil, em seu nome, cerca de 20 milhões de dólares em três anos.
Confira a entrevista a seguir, onde Ribeiro Jr. explica como reuniu os documentos para produzir o livro, refaz o caminho das disputas no PSDB e no PT que o colocaram no centro da campanha eleitoral de 2010 e afirma: “Serra sempre teve medo do que seria publicado no livro”.
CartaCapital: Por que você decidiu investigar o processo de privatização no governo Fernando Henrique Cardoso?
Amaury Ribeiro Jr.: Em 2000, quando eu era repórter de O Globo, tomei gosto pelo tema. Antes, minha área da atuação era a de reportagens sobre direitos humanos e crimes da ditadura militar. Mas, no início do século, começaram a estourar os escândalos a envolver Ricardo Sérgio de Oliveira (ex-tesoureiro de campanha do PSDB e ex-diretor do Banco do Brasil). Então, comecei a investigar essa coisa de lavagem de dinheiro. Nunca mais abandonei esse tema. Minha vida profissional passou a ser sinônimo disso.
CC: Quem lhe pediu para investigar o envolvimento de José Serra nesse esquema de lavagem de dinheiro?
ARJ: Quando comecei, não tinha esse foco. Em 2007, depois de ter sido baleado em Brasília, voltei a trabalhar em Belo Horizonte, como repórter do Estado de Minas. Então, me pediram para investigar como Serra estava colocando espiões para bisbilhotar Aécio Neves, que era o governador do estado. Era uma informação que vinha de cima, do governo de Minas. Hoje, sabemos que isso era feito por uma empresa (a Fence, contratada por Serra), conforme eu explico no livro, que traz documentação mostrando que foi usado dinheiro público para isso.
CC: Ficou surpreso com o resultado da investigação?
ARJ: A apuração demonstrou aquilo que todo mundo sempre soube que Serra fazia. Na verdade, são duas coisas que o PSDB sempre fez: investigação dos adversários e esquemas de contrainformação. Isso ficou bem evidenciado em muitas ocasiões, como no caso da Lunus (que derrubou a candidatura de Roseana Sarney, então do PFL, em 2002) e o núcleo de inteligência da Anvisa (montado por Serra no Ministério da Saúde), com os personagens de sempre, Marcelo Itagiba (ex-delegado da PF e ex-deputado federal tucano) à frente. Uma coisa que não está no livro é que esse mesmo pessoal trabalhou na campanha de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, mas sob o comando de um jornalista de Brasília, Mino Pedrosa. Era uma turma que tinha também Dadá (Idalísio dos Santos, araponga da Aeronáutica) e Onézimo Souza (ex-delegado da PF).
CC: O que você foi fazer na campanha de Dilma Rousseff, em 2010?
ARJ: Um amigo, o jornalista Luiz Lanzetta, era o responsável pela assessoria de imprensa da campanha da Dilma. Ele me chamou porque estava preocupado com o vazamento geral de informações na casa onde se discutia a estratégia de campanha do PT, no Lago Sul de Brasília. Parecia claro que o pessoal do PSDB havia colocado gente para roubar informações. Mesmo em reuniões onde só estavam duas ou três pessoas, tudo aparecia na mídia no dia seguinte. Era uma situação totalmente complicada.
CC: Você foi chamado para acabar com os vazamentos?
ARJ: Eu fui chamado para dar uma orientação sobre o que fazer, intermediar um contrato com gente capaz de resolver o problema, o que acabou não acontecendo. Eu busquei ajuda com o Dadá, que me trouxe, em seguida, o ex-delegado Onézimo Souza. Não tinha nada de grampear ou investigar a vida de outros candidatos. Esse “núcleo de inteligência” que até Prêmio Esso deu nunca existiu, é uma mentira deliberada. Houve uma única reunião para se discutir o assunto, no restaurante Fritz (na Asa Sul de Brasília), mas logo depois eu percebi que tinha caído numa armadilha.
CC: Mas o que, exatamente, vocês pensavam em fazer com relação aos vazamentos?
ARJ: Havia dentro do grupo de Serra um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) que tinha se desentendido com Marcelo Itagiba. O nome dele é Luiz Fernando Barcellos, conhecido na comunidade de informações como “agente Jardim”. A gente pensou em usá-lo como infiltrado, dentro do esquema de Serra, para chegar a quem, na campanha de Dilma, estava vazando informações. Mas essa ideia nunca foi posta em prática.
CC: Você é o responsável pela quebra de sigilo de tucanos e da filha de Serra, Verônica, na agência da Receita Federal de Mauá?
ARJ: Aquilo foi uma armação, pagaram para um despachante para me incriminar. Não conheço ninguém em Mauá, nunca estive lá. Aquilo faz parte do conhecido esquema de contrainformação, uma especialidade do PSDB.
CC: E por que o PSDB teria interesse em incriminá-lo?
ARJ: Ficou bem claro durante as eleições passadas que Serra tinha medo de esse meu livro vir à tona. Quando se descobriu o que eu tinha em mãos, uma fonte do PSDB veio me contar que Serra ficou atormentado, começou a tratar mal todo mundo, até jornalistas que o apoiavam. Entrou em pânico. Aí partiram para cima de mim, primeiro com a história de Eduardo Jorge Caldeira (vice-presidente do PSDB), depois, da filha do Serra, o que é uma piada, porque ela já estava incriminada, justamente por crime de quebra de sigilo. Eu acho, inclusive, que Eduardo Jorge estimulou essa coisa porque, no fundo, queria apavorar Serra. Ele nunca perdoou Serra por ter sido colocado de lado na campanha de 2010.
CC: Mas o fato é que José Serra conseguiu que sua matéria não fosse publicada no Estado de Minas.
ARJ: É verdade, a matéria não saiu. Ele ligou para o próprio Aécio para intervir no Estado de Minas e, de quebra, conseguiu um convite para ir à festa de 80 anos do jornal. Nenhuma novidade, porque todo mundo sabe que Serra tem mania de interferir em redações, que é um cara vingativo.

O que significa o crescimento evangélico no Brasil?



A imagem dos evangélicos é de um segmento formado por pessoas na maioria das vezes honestas e confiáveis nas relações pessoais, mas intolerantes c/ religiões e morais alheias. Suas lideranças costumam ser percebidas com desconfiança, sendo algumas consideradas ambiciosas e arrivistas. Em que medida a avaliação procede?
por Ronaldo de Almeida no LeMonde-Brasil

(Celebração em templo da igreja Renascer em Cristo, em São Paulo)

Há cerca de três décadas essa pergunta domina o debate público sobre as mudanças religiosas recentes no país, e se desdobra em outras. Quais são as causas da expansão evangélica e suas implicações? Trata-se de um segmento conservador de matriz fundamentalista? Como lidar com a presença crescente desses religiosos na mídia, ora sendo notícia, ora na posição de proprietários do veículo de comunicação, ou ambos ao mesmo tempo? Como conviver com a moralidade pessoal e os valores públicos dos evangélicos? E a lista de questões não termina...
Não é simples definir a partir de quando os evangélicos começaram a ocupar o debate público, mas a eleição de 1986, que elegeu o Congresso Nacional Constituinte, pode ser considerada um marco. Nela, os pentecostais saltaram de dois deputados federais para dezoito, enquanto os protestantes históricos elegeram dezesseis, dando origem ao termo Bancada Evangélica, embora nem todos participassem dela, como atualmente nem todos participam. Já em 2010, segundo o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), foram eleitos 63 deputados federais e três senadores que se declararam evangélicos.
A compra da decadente Rede Record pela Igreja Universal, em 1989, também foi outro acontecimento que coroou décadas de investimento dos evangélicos nos meios de comunicação. Atualmente, ela é a segunda maior rede de televisão do país, rivalizando por vezes com a Rede Globo. Em resumo, os evangélicos não só crescem numericamente como também ampliam seu alcance para o mercado, a política e a mídia, que se retroalimentam.
Como consequência dessas investidas, existe uma preocupação disseminada na opinião pública, que se expressa na desconfiança sobre os interesses e o sentido dessa expansão religiosa. Seriam esses interesses comerciais? Ao que parece, essa é a crítica mais frequente.
A imagem dos evangélicos, sobretudo a dos pentecostais, bastante difundida na sociedade brasileira, é a de um segmento formado por pessoas na maioria das vezes honestas e confiáveis nas relações pessoais, mas pouco tolerantes com religiões e morais alheias. Suas lideranças costumam ser percebidas com desconfiança, sendo algumas consideradas ambiciosas e arrivistas. Em que medida tal avaliação procede?
 
Diversidade e flexibilidade

Os dados do Censo 2010 sobre filiação religiosa, assim como outros, ainda não foram divulgados. Entretanto, pelo que vêm demonstrando várias pesquisas de menor alcance demográfico, algumas tendências apontadas nos dois últimos Censos (1991 e 2000) devem permanecer: o declínio de pessoas que se identificam como católicas e o aumento daquelas que se declaram evangélicas ou sem religião. A dúvida é quais foram as taxas dessas tendências na última década.
A primeira consideração a ser feita é sobre a diversidade daquilo que genericamente se chama protestante histórico, pentecostal tradicional e neo-pentecostal. Mesmo ciente de que alguns desses religiosos não aceitariam ser classificados como evangélicos, adoto esse termo por ser de uso mais corrente e abranger todos os outros, que, por vezes, podem ser nomeados também como “crentes”. Entretanto, é prudente precaver que boa parte das minhas considerações refere-se mais propriamente ao pentecostalismo (o tradicional e o neo).
O campo evangélico é variado, e a onda do crescimento tem quebrado em várias direções e com intensidades diferentes. A diversidade engloba da posição moral mais conservadora à crescente flexibilização dos costumes e comportamentos. Em relação a esse segundo caso, cada vez menos “virar crente” significa ruptura ampla e profunda com seu modo de vida. Cada vez mais a diversidade aumenta a oferta de estilos de vida evangélicos. A onda gospel, não só como gênero musical, mas também como estética, prática cultural e comportamento juvenil, é um bom exemplo de uma vida menos “careta” e em sintonia com os tempos atuais.
Em boa medida, essa flexibilização decorre da circulação de uma parcela dos evangélicos entre as diversas igrejas. Assim, o crescimento evangélico, sobretudo da vertente pentecostal, é bem peculiar: multiplicam-se os nomes das igrejas, mas as pessoas são menos fiéis a uma delas especificamente. Uma parte significativa dos fiéis circula entre as igrejas “calibrando” sua religiosidade: com mais ou menos reflexão teológica, mais ou menos exigências comportamentais, mais ou menos emocionalismo, mais ou menos milagres, e por aí vai. Esse trânsito religioso proporcionou aos indivíduos maior autonomia, que se reflete na desinstitucionalização da prática religiosa. A vida religiosa parece cada vez mais privatizada ao mesmo tempo que de massa, logo, menos sujeita aos ditames morais de uma comunidade de “irmãos de fé”.
Isso é visível na paisagem urbana brasileira, na qual vemos igrejas neopentecostais com as portas abertas permanentemente e com cultos em vários horários do dia, os quais se frequenta sem estabelecer vínculos comunitários e pessoais densos. Vários desses templos estão próximos aos principais terminais de transporte público das grandes cidades brasileiras, configurando uma religiosidade de passagem, bem adequada à lógica e aos fluxos urbanos. Trata-se de uma religiosidade muito mais centrada na pregação do pastor (também vista individualmente em casa, pela televisão) do que no fortalecimento das relações horizontais entre os frequentadores dos cultos.
Muitos evangélicos falam da experiência religiosa como uma espécie de autoconhecimento, um voltar-se para si. Não por acaso, a pregação aproxima-se dos discursos de autoajuda e de empreendedorismo, tão recorrentes no mundo atual. Em suma, uma religiosidade muito direcionada para as demandas cotidianas materiais, afetivas e subjetivas, e menos voltada para a vida eterna, o pós-morte ou a especulação teológica, por exemplo.
 
Para não dizer que não falei dos católicos

Até onde vai esse crescimento evangélico, sobretudo dos pentecostais? Estes serão maioria no Brasil? Permitindo-me um exercício de futurologia, minha resposta é não, pelo menos não na velocidade que parece preocupar boa parte da opinião pública atual. Especulo que a tendência de crescimento das pessoas declaradas pentecostais, em particular, “baterá no teto”; não sei qual, mas o suficiente para não se constituírem como maioria demográfica no país.
Em boa medida, embaso meu argumento citando a expansão-reação do catolicismo carismático. Padre Marcelo, Renovação Carismática, Canção Nova são alguns dos polos da revitalização católica, principalmente entre jovens e nas áreas urbanas. Assim, se uma das tendências demográficas no país é a do declínio das pessoas que se declaram católicas, é fato também que a expansão do carismatismo entre os católicos os tem tornado mais convictos de sua identidade religiosa, à semelhança dos evangélicos.
Como consequência, a autodeclaração “católico não praticante”, tão popular no Brasil, tem cedido espaço à declaração “sem religião”. Isso pode ser considerado um feito do pluralismo religioso no Brasil: com a disputa por adeptos, a religião hegemônica (no caso, o catolicismo) é forçada à competição, colocando-se como uma alternativa, e não como a religião dos brasileiros. Resultado: se o número de católicos declina, ao mesmo tempo o catolicismo se robustece.
Entretanto, parte desse sucesso católico deve-se exatamente à semelhança dos carismáticos com os evangélicos na doutrina da conversão, na dinâmica dos ritos, na experiência emocional, nos valores morais, nas práticas sociais, nas relações comunitárias e nas estratégias de crescimento. Assim, a expansão da religiosidade evangélica não se dá somente na atração de católicos, mas também por dentro do catolicismo. A religiosidade de muitos brasileiros tem adquirido cada vez mais tonalidades evangélicas.
 
Política, moral e interesses

Se o crescimento dos evangélicos dá-se em várias direções, o mesmo pode ser dito da participação na política institucional. Ela varia de práticas orientadas por interesses de grupos específicos a ações pautadas por temas mais estruturais da sociedade brasileira. Ressalta-se, contudo, que as primeiras são em maior número, espelhando a própria representação política do país.
Entre as várias Comissões Permanentes do Congresso Nacional, é comum encontrarmos evangélicos naquelas que tratam dos meios de comunicação, dos programas sociais, da formação de Conselhos Públicos. Por um lado, visam à propaganda religiosa, por outro, atuam como mediadores dos serviços oferecidos pelo Estado.
Além desses interesses, os temas de ordem moral e de fé religiosa são mobilizados com a finalidade de gerar identidade política entre os fiéis. A recente eleição para a Presidência da República, em 2010, forneceu um bom cenário para pensarmos a movimentação política dos evangélicos.
De forma geral, a então candidata Marina Silva, do Partido Verde (PV), atraiu parte do eleitorado evangélico sem se valer excessivamente dessa identidade, pois já fazia parte de sua imagem pública. Seu problema foi o mesmo de Anthony Garotinho na campanha presidencial de 2002: não deixar a imagem evangélica provocar resistências no restante do eleitorado. No caso de Marina, uma declaração de que acreditava que o deus judaico-cristão havia criado o mundo lhe rendeu inúmeros questionamentos, sendo classificada por muitos como criacionista. Marina respondeu que a grande maioria da população brasileira acredita em Deus e que ele havia criado o mundo; além disso, ela não defendeu, pelo menos não publicamente, que o criacionismo fizesse parte do currículo escolar público.
Em relação à sempre polêmica questão do aborto, a candidata Dilma Rousseff (PT) foi a que mais perdeu pontos com esse debate. Graças ao marketing político de seu principal adversário, José Serra (PSDB), a posição pró-aborto foi mais associada a Dilma, o que gerou resistência de muitos religiosos, principalmente dos evangélicos. Marina respondia a essa questão propondo um plebiscito, pois estava ciente de que as sondagens estatísticas indicavam que a maior parte da população votaria contra a legalização do aborto.
Por fim, Serra assumiu a bandeira contra o aborto, assustando, e mesmo constrangendo, setores mais escolarizados e moralmente liberais nos quais tem forte base eleitoral. Mas Serra não é visto como alguém com perfil religioso, no sentido de reivindicar uma identidade, fosse ela católica, evangélica, espírita, entre outras possíveis. Seu programa eleitoral deixou o discurso contra-aborto para o pastor da Assembleia de Deus, Silas Malafaia, que tem se configurado como contraponto ao bispo Macedo e à Igreja Universal do Reino de Deus, apoiadores dos governos Lula e Dilma.
O início desse apoio aos candidatos do PT deu-se somente na campanha presidencial de 2002, graças à aliança com o então nanico Partido Republicano (PR), que além de fornecer o vice de Lula, José Alencar, tinha metade de seus deputados federais pertencentes à Igreja Universal. Cabe relembrar, contudo, que durante as eleições presidenciais de 1989 as pregações e os jornais da Igreja Universal declaravam que Lula era o candidato do diabo.
 
Plasticidade e enraizamento

A Igreja Universal não apenas refez seu discurso anti-Lula e anti-PT, em 2002, como assumiu uma posição pouco fundamentalista em relação à reprodução humana, em 2009. Quando se intensificou no país o debate público (na verdade, mais restrito às camadas escolarizadas) em torno das pesquisas com células-tronco embrionárias e, a reboque naquele momento, a legalização do aborto em casos específicos, a Igreja Universal declarou-se a favor dos dois pleitos. Além dela, manifestaram-se a favor setores mais liberais do protestantismo histórico, como a Igreja Metodista e a Igreja Presbiteriana do Brasil.
Como bem sabemos, a posição religiosa mais contundente e eficaz em termos políticos contra os dois temas é a da Igreja Católica, mas – convém sempre dizer – bem menos dos fiéis católicos. Ser a favor dos dois pleitos foi uma forma de a Igreja Universal se colocar na discussão em contraposição à Igreja Católica, com quem costuma rivalizar e de quem deseja o lugar na sociedade brasileira. Porém, tais posicionamentos permitiram a repercussão da pregação de Silas Malafaia como portador do discurso evangélico conservador, logo, contrário ao aborto.
O mesmo conservadorismo tem sido direcionado contra a criminalização da homofobia. Por considerarem a homossexualidade curável moral e espiritualmente, os evangélicos veem a criminalização como limitadora de sua pregação religiosa. Nesse assunto, bispo Macedo e Silas Malafaia estão do mesmo lado.
Por outro lado, em decorrência da crescente flexibilização dos costumes e comportamentos, foram criadas recentemente as “igrejas inclusivas” de perfil evangélico, que não condenam a homossexualidade. O número das igrejas inclusivas é insignificante perante a posição conservadora, mas o importante é perceber como a onda evangélica tem quebrado para vários lados, diferenciando-se conforme outras mudanças sociais no país.
Em que medida, então, procedem a preocupação e a desconfiança da opinião pública em relação ao crescimento evangélico, como indagado inicialmente? A avaliação continua cabendo ao leitor. Os argumentos aqui apresentados, contudo, visaram demonstrar como as questões de fé imbricam-se em outras dinâmicas e mudanças políticas e sociais mais amplas do contexto brasileiro, que podem ser resumidas em uma tautologia sociológica: quanto mais o Brasil se torna evangélico, mais os evangélicos, principalmente os pentecostais, tornam-se como o Brasil.

Ronaldo de Almeida
Professor de Antropologia da Unicamp, pesquisador do Cebrap e autor de A igreja Universal e seus demônios, Terceiro Nome, 2009.


Ilustração: Caetano Barreira/ Reuters

Direitos humanos: Tudo a ver com nossa vida


É preciso considerar a si mesmo e aos outros a partir da condição de portadores de direitos, de liberdade, de dignidade, ao mesmo tempo diferentes e iguais uns em relação aos outros

Nei Alberto Pies* no BRASILdeFATO

"Como seres humanos a nossa grandeza reside não tanto em ser capazes de refazer o mundo… mas em sermos capazes de nos refazermos a nós mesmos”. (Mahatma Gandhi)

O conceito de direitos humanos faz-se historicamente, assumindo diferentes abordagens e perspectivas, gerando diferentes posturas e compreensões. Nasce, contudo, a partir da consciência e da necessidade de preservar a vida e tudo o que nela está imbricado. Ao longo dos tempos, o conceito foi sendo construído culturalmente como se os portadores destes direitos fossem sempre os outros, aqueles que estão numa situação de extrema indignidade, nunca a gente (eu, você e nós). Há, então, a necessidade de compreender melhor o conceito de direitos humanos para que dele nos sintamos parte.

Sob o ponto de vista da compreensão histórica, os direitos humanos constituem-se a partir do reconhecimento, muito antes de constituírem faculdade de um ou de outrem . A defesa da vida, que também defesa da dignidade humana, engloba o que a humanidade, através de muita luta e conquista, reconheceu como direitos humanos. O que vem a ser dignidade humana? É difícil definir, mas entendemos quando ela falta a alguém (como aquilo que define a própria noção de humanidade, enquanto condições mínimas, básicas e elementares para sermos gente). O nosso cotidiano está repleto de infinitas realidades de indignidade, basta ativar a nossa sensibilidade e o nosso olhar.

A mesma cultura que nos fez acreditar que direitos humanos não são os nossos direitos de ser gente também alimentou a falsa ideia de que, ao afirmamos os direitos das pessoas, estaríamos abrindo mão de seus deveres. Sempre nos fora dito que temos mais deveres a serem cumpridos do que direitos a serem gozados, usufruídos. Muitas vezes entenderam-se direitos como privilégios de uma classe social, povo ou nação, em detrimento dos demais. Ocorre que, a cada direito que conquistamos, naturalmente, sem dizê-lo, está imbricado o nosso dever. Direitos e deveres chegam juntos, não existem separados como muitos supõem.

Mas como criar identidade com direitos humanos? É preciso considerar a si mesmo e aos outros a partir da condição de portadores de direitos, de liberdade, de dignidade, ao mesmo tempo diferentes e iguais uns em relação aos outros. O que todos temos em comum é o fato de que somos humanos e comungarmos das mesmas necessidades. Todos como eu e você são seres humanos, portadores de algo sagrado e inegociável: a vida da gente. Neste sentido, nossas diferenças ou semelhanças não podem ser critérios para auferir dignidade para um ou para outrem.

Desconhecemos outra maneira de mudar culturalmente conceitos ou ideias senão pela educação. A educação em direitos humanos significa educar para a democracia, oportunizando que os cidadãos tenham noção de seus direitos e deveres e que lutem por eles. É papel da escola, e da educação, contribuir para a compreensão do mundo, para uma melhor inserção nele. A cultura de direitos humanos promove condições em que ocorram a tolerância, o diálogo, a cidadania, a diversidade. Deve também permitir a liberdade de organização e luta aos grupos organizados em torno de seus direitos. Deve exigir um Estado protetor e promotor de direitos humanos, e não violador da vivência da cidadania e das liberdades. A consciência, quando transformada em luta (diária, cotidiana, permanente), é quem garantirá a exigibilidade de nossos direitos.

Educação em direitos humanos não é somente um conteúdo a ser ensinado, mas pressupõe, antes de tudo, a vivência de valores e atitudes que cultivem a preservação da vida, das singularidades e das diferenças. Para mudarmos atitudes e conceitos precisamos ser motivados, sensibilizados e estimulados a compreender o ser humano em suas diferentes situações e realidades.

A dignidade, da qual somos portadores, abre horizontes para perceber e acolher a necessidade do outro. Eu, você e nós conquistaremos felicidade quando pudermos compartilhar vida plena, na humanidade que reside em cada um e cada uma de nós, sendo iguais no fato de possuirmos diferenças e termos mesmas necessidades.

*Nei Alberto Pies é professor e ativista de direitos humanos



Subsídios para aprofundamento do tema:

1. “Um homem da aldeia de Neguá, no litoral da Colômbia, conseguiu subir aos céus. Quando voltou, contou. Disse que tinha contemplado, lá do alto, a vida
humana. E disse que somos um mar de fogueirinhas. — O mundo é isso — revelou — Um montão de gente, um mar de fogueirinhas. Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo. (Poema O Mundo, Eduardo Galeano)

2. Cartilha Direitos Humanos tudo a ver com a nossa vida! Publicação da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo.

http://www.cdhpf.org.br/25anos/cartilha_dh.html )

3. Declaração dos direitos humanos versão popular Frei Betto

http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/documentos/0008.html

Mariátegui e o jornalismo contra-hegenônico


Por Cristian Góes no PORTAL GRABOIS
 
Em razão do tipo violento de invasão cultural norte-americana e europeia, especialmente com mais força no século XX, este país acabou, literalmente, dando as costas para a América Latina, suas culturas e povos. Um dos resultados mais trágicos dessa ação deliberada de exclusão é o desconhecimento e, consequentemente, desvalorização da intensa e rica produção intelectual de nossos hermanos.
São inúmeros pensadores, escritores, intelectuais, lutadores do povo que entraram para nós na categoria de invisíveis. Mariátegui é uma dessas personagens que precisa ser alumbrado.
 
Libertário

José Carlos Mariátegui é peruano, nascido em 14 de junho de 1894, em Moquegua, uma cidadezinha ao sul de Lima. Foi jornalista e, segundo Luiz Bernardo Pericás (1), “é um dos mais criativos e originais pensadores marxistas de nosso continente”. Dedicou-se, na teoria e prática, a questão educacional. Teve participação ativa nas universidades populares, no movimento estudantil, nas ações com camponeses e indígenas, na fundação da Central Geral dos Trabalhadores e do Partido Socialista do Peru. Mas Mariátegui é também um intenso produtor de uma comunicação ativa, libertária, socialista. Ele é referência na criação de várias revistas e jornais revolucionários e contra-hegemônicos no Peru.
Desde criança, José Carlos Mariátegui teve grandes dificuldades com sua saúde. “Sofrera de inanição e formação física defeituosa, com cansaço, febres e dores constantes – teve pouco acesso à educação formal. Foi basicamente autodidata por toda vida”. Nas muitas horas de solidão e isolamento, era nos livros de bibliotecas que mergulhava. Uma de seu bisavô, que foi jornalista, político, e outra do intelectual Manoel González Prada, que acaba sendo uma espécie de mestre para Mariátegui. Essa condição de autodidata terá forte influência em quase toda sua produção intelectual. Ele torna-se um crítico feroz da letargia e do conservadorismo nas universidades.
 
Revista Amauta

Mesmo com saúde muito frágil, começa a trabalhar como gráfico em jornais e revistas, círculos povoados de intelectuais anarquistas, rebeldes, comunistas, antioligárquicos. Inicia como entregador, assistente gráfico e linotipista em La Prensa. Em pouco tempo passa a escrever e publicar artigos, inicialmente crônicas do cotidiano. Mariátegui colaborou com várias revistas e jornais, como El Tiempo, El Túrf e Lulú. Junto com Abraham Valdelomar, Percy Gibson e José Maria Eguren cria a revista modernista Colónia, onde publica poemas. Ele também foi um dos criadores da revista Nuestra Época e, em seguida, do jornal La Razón,instrumento fundamental de apoio aos trabalhadores que realizavam vários movimentos grevistas pelo país. Mais tarde faz sua própria revista, a Amauta, que em quéchua que significa sacerdote, sábio. A publicação divulga as ideias socialistas, na qual colaboram os mais importantes intelectuais de vanguarda do Peru. Anos mais tarde, o próprio Mariátegui, que chegou a ser vice-presidente do Círculo de Periodistas do Peru, também começará a ser chamado de "Amauta" pelos intelectuais progressistas e socialistas de todo o continente. A revista circulava nas áreas urbanas e rurais no Peru. No campo, por exemplo, os textos da Amauta eram lidos em voz alta para os camponeses e depois ocorriam debates sobre o tema abordado. A revista não era apenas destinada a um público intelectualizado, mas aos camponeses e indígenas, muitas vezes analfabetos ou com pouca instrução formal.
 
Denúncias

Em seus jornais e revistas, Mariátegui denuncia a miséria do povo peruano, o militarismo e o governo do Partido Civilista. Não se cala diante do atraso econômico de grande parte da população controlada pelo capital imperialista, que mantém relações sociais injustas para perpetuar seu domínio e aumentar seus ganhos. Ele tem participação ativa na luta dos camponeses, dos índios e de uma massa operária crescente. Mas é junto ao movimento estudantil que tem maior ação. Ele defendia a união entre estudantes e trabalhadores na luta pelo Socialismo.
Antes do exílio que ia sofrer por críticas ao Governo de Augusto Leguía, José Carlos Mariátegui ainda recebeu forte influência do amigo, professor de Direito, diplomata e jornalista Victor Maúrtua, um entusiasta da Revolução Russa de 1919 e das doutrinas socialistas. É a partir daí que Mariátegui será um ferrenho defensor do envolvimento dos artistas e cientistas nas lutas do povo no sentido de ajudar a transformar o mundo e a “construir um homem novo”. No final de 1919, ele chega à França exilado, mas logo depois vai à Itália e depois para Alemanha. Sua passagem pela Europa foi fundamental para consolidar seu preparo intelectual e político. Na Itália, por exemplo, participou do XVII Congresso do Partido Socialista.
 
Universidades Populares

Em 1923, quando retorna ao Peru, Mariátegui vai dar conferências nas universidades populares criadas por Abraham Gómez, Luis Bustamante e Haya de La Torre. “O objetivo desses centros de ensino seria o de promover um ciclo de cultura geral com caráter nacionalista, e outro ciclo de especialização técnica, abrindo a universidade para o proletariado e para as camadas mais pobres da população e criando a possibilidade de maior democratização da educação e do aprimoramento do nível educacional e crítico dos trabalhadores”.
Mariátegui se tornou diretor da revista Claridad, órgão oficial das unidades populares. Essa publicação, com ele, radicalizou-se na defesa socialista e começou a ser considerada também órgão da Federação Operária Local de Lima e da Juventude Livre do Peru. Mariátegui ainda fundou a Sociedade Operária Claridad, representante das federações de trabalhadores e indígenas, das Universidades Populares González Prada e dos intelectuais de vanguarda, que tinha como objetivo a publicação de um jornal classista para disseminar os anseios do proletariado, assim como o de abrir livrarias operárias e editar livros, folhetos e revistas de propaganda que difundissem a cultura das classes oprimidas. Mariátegui se torna provavelmente a figura de esquerda mais conhecida e importante do país. Ao longo dos anos, sua casa se transformou no principal local de encontros de intelectuais, artistas, operários e estudantes.
Ainda em 1925, fundou, com seu irmão Julio César, a Editora Minerva, por onde publicou seu livro “Sete ensaios de interpretação da realidade peruana”.
Em 7 de outubro de 1928 Mariátegui ajuda a fundar o Partido Socialista do Peru, tendo sido eleito Secretário-Geral. No início de 1929 ajudou a organizar a Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru. Até o final da vida dirigiu a revista Mundial e ainda teve forças para fundar o jornal quinzenário Labor. Faleceu a 16 de abril de 1930, deixando sua vida como referência para todos os lutadores do povo, especialmente aqueles que se dedicam a educação e a comunicação para um outro tempo, um outro mundo.

NOTAS
 
(1) MARIÁTEGUI, José Carlos. Mariátegui sobre a educação. Seleção de textos. Tradução de Luiz Bernardo Pericás. São Paulo: Xamã, 2007.
Cristian Góes é jornalista, editor da Revista Paulo Freire e membro do Grupo de Pesquisa Educação e Movimentos Sociais da UFS

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Laicidade do Estado como garantia de direitos e proteção contra a discriminação

Editorial do SUL21

Encabeçado pela Liga Brasileira de Lésbicas, começa a tomar corpo em todo o país um movimento pela retirada dos símbolos religiosos dos espaços públicos. Na última segunda feira (5), um documento com esta solicitação foi entregue ao presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, deputado Adão Villaverde (PT), que se comprometeu a submeter a reivindicação às bancadas partidárias. No mesmo dia, documento com teor semelhante foi protocolado no Palácio Piratini, destinado ao governador Tarso Genro, que ainda não se manifestou a respeito.
No dia 7 de novembro, as presidências da Câmara Municipal de Porto Alegre (CMPA) e do Tribunal de Justiça do RS (TJ-RS) já haviam recebido igual solicitação. Na CMPA, ainda que documento já tenha sido encaminhado para a Assessoria Jurídica da casa ele não foi distribuído, até o momento, para nenhum dos advogados do corpo funcional para análise. No TR-RS, um parecer já foi encaminhado ao corregedor, mas não até aqui não foi dado conhecimento público do seu teor.
Antes do Rio Grande do Sul, o Piauí foi palco de movimentação semelhante, sob a coordenação da mesma Liga Brasileira de Lésbicas que entregou documento ao Ministério Público daquele Estado, pedindo que o mesmo tipo de providência fosse tomado.  Mesmo acatado pelo MP, o pedido de retirada dos símbolos religiosos dos três poderes públicos locais não foi levado a termo, uma vez que uma liminar judicial derrubou a decisão.
Além da já citada Liga Brasileira de Lésbicas, não por acaso os pedidos de retirada dos símbolos religiosos no Rio Grande do Sul foram assinados também por outras entidades de defesa de homossexuais e de discriminados, como o grupo Somos, o grupo Nuances, o grupo feminista Themis, a Rede Feminista de Saúde e a Marcha Mundial das Mulheres. Estes grupos congregam segmentos sociais que foram historicamente perseguidos e que ainda hoje são estigmatizados pelos preceitos religiosos das igrejas cristãs, exatamente aquelas cujos símbolos encontram-se expostos nos locais públicos.
Baseadas no artigo 19 da Constituição Federal brasileira, as entidades acima nominadas reivindicam apenas o respeito à determinação constitucional da laicidade do Estado. Desejam simplesmente que a lei maior seja cumprida e que a religião ou a sua ausência seja uma escolha individual, livre de qualquer influência que possa ser exercida por entidades e/ou agentes públicos. Em um Estado laico como o brasileiro e que desde a constituição republicana de 1891 consagrou a separação entre igreja e Estado não deveria ser motivo de estranheza tal reivindicação.
Na verdade, a estranheza deveria advir da manutenção de símbolos religiosos nos espaços públicos, principalmente os vinculados às atividades do Estado, após a promulgação da Constituição de 1988 e num momento histórico em que se apregoa, cada vez mais, o respeito à divergência e à diversidade. Não procedem os argumentos do hábito arraigado e/ou dos costumes, utilizados pelos que defendem a presença de tais símbolos. O que deve valer é a letra fria da lei. Por mais disseminados que sejam os princípios e as crenças religiosas, nada justifica a imposição de uma religião sobre as demais ou sobre os sem religião. Nada justifica, além disso, à luz dos fundamentos democráticos contemporâneos, o domínio de uma maioria, por mais ampla que ela possa ser, sobre as minorias, a ponto de serem desrespeitados seus direitos elementares de cidadania.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Blogosfera pode reviver jornalismo "heroico"

Franklin Martins no PORTAL VERMELHO


O jornalista e ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom), Franklin Martins, defende a necessidade de a blogosfera avançar na produção de reportagens. Ele acredita na retomada do que ele chama de "período heroico do jornalismo" com a ampliação do papel da internet como fonte de informação pela sociedade

Franklin, que ocupou o cargo no segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, fez um discurso assumidamente otimista sobre o horizonte da comunicação no país. Ele participou do seminário "Mercado Futuro de Comunicação", organizado pela Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom) em São Paulo, nesta segunda-feira (5). O evento é voltado a discutir as oportunidades do setor nos próximos anos, especialmente para pequenas e microempresas.

Falando a um público de editores de publicações alternativas, produzidas fora de conglomerados de mídia, o jornalista defendeu a necessidade de se evitar o estigma da segmentação. "Ser alternativa não é segmento, é fazer jornalismo alternativo, de grande qualidade onde o espaço público prevaleça sobre o privado", definiu.

A blogosfera, avaliou, embora cumpra uma importante função de "grilo falante" da imprensa, como Martins se acostumou a defender, "não conseguiu avançar na reportagem". A maior parte da produção vai no sentido de qualificar ou desqualificar o conteúdo publicado pela velha mídia, o que foi importante para revelar a verdade em episódios como o plágio de um artigo do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) em maio de 2010, e o que ficou conhecido como o "caso da bolinha de papel" atirada em José Serra (PSDB) durante a campanha eleitoral do ano passado.

O jornalista avalia ainda que a redução de custos para produção de conteúdo permite uma democratização importante, que precisa ser aprofundada com a criação de alguma forma de central de reportagem autônoma. O modelo seria o de uma central de uma rede de veículos que captaria recursos, absorveria e remuneraria a produção. O conjunto de publicações na internet, seja de portais de notícia, seja de blogues, reproduziria as reportagens, permitindo ampliar a visibilidade da produção. "Sozinho, ninguém tem 'bala na agulha' para isso", avalia.

O ministro citou reportagens importantes já produzidas por blogueiros autônomos como sinal de que é possível avançar nesse sentido. O primeiro exemplo foram matérias escritas por Conceição Oliveira (do blogue Maria Frô), sobre as enchentes em São Paulo no início de 2011. O segundo, mais recente, foram informações apuradas pelo deputado federal Brizola Neto (PDT-RJ) e pelo jornalista Fernando Brito sobre o acidente da Chevron na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro.

"Isso mostra que a blogosfera pode fazer isso, pode ir atrás de assuntos que a velha mídia não dá, seja porque não tem interesse em apurar, seja porque está cansada", sugere. "A blogosfera vai ter bala na agulha para isso? Será que pode ter uma central de reportagem, que capte recursos para isso, bancada politicamente por todo mundo?"

Ele avalia que o desafio é superar a opinião e entrar na seara da informação. "Mas o jornalismo heróico (do século 19) começou igualzinho, com muita opinião e pouca informação", disse. A necessidade de mudar deveu-se a demandas do público e da necessidade de se preservar a relevância.

O papel que cabe aos conglomerados de comunicação no Brasil depende da forma como essas empresas se comportarem. "Se a imprensa ficar de mal com o país, não vai a lugar nenhum, não manda em nada. Se pensar que Bolsa Família é 'bolsa-esmola', se for contra o Plano Nacional de Banda Larga, não chega a lugar nenhum", disse.

Mas ele descarta a possibilidade de a internet eliminar os jornais e revistas – embora possa eliminar a necessidade de impressos em papel. A questão é a necessidade de forjar um espaço público onde temas são trabalhados com mais profundidade e menos parcialidade. "Mas os jornais no Brasil são muito ruinzinhos, não se pautam pelo imponderável da notícia, mas pelos seus próprios preconceitos", sustenta.