Joana Tavares
de Belo Horizonte (MG) no BRASILdeFATO
Antes do golpe civil-militar de 1964, os camponeses e trabalhadores rurais se organizavam por todo o Brasil, lutando de muitas formas pela realização da reforma agrária. As Ligas Camponesas se espalharam por diferentes estados, com a criação de associações civis quando os sindicatos rurais ainda eram proibidos no país.
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Primeiro Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, realizado em Belo Horizonte em novembro de 1961 - Foto: portaldoprofessor.mec.gov.br |
A atuação de Francisco Julião se tornou uma referência, e outros advogados como ele se somaram na defesa dos direitos dos trabalhadores do campo. Em Minas Gerais, também houve a articulação das Ligas, que contaram com a atuação de pessoas como Antônio Ribeiro Romanelli, que foi seu presidente e chegou a ser nomeado pelo presidente brasileiro João Goulart para articular uma rede nacional de defesa jurídica no campo. Em novembro de 1961, foi realizado em Belo Horizonte o I Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, onde se firmou a palavra de ordem “Reforma agrária na lei ou na marra”. Esse processo foi interrompido em abril de 1964, e muitos camponeses e militantes foram mortos e exilados. Romanelli ficou quatro meses preso e, com o AI-2, condenado a nove anos de prisão. Exilou-se no Chile e de lá trabalhou no processo de reforma agrária.
Nesta entrevista ao Brasil de Fato, ele conta a história das Ligas em Minas Gerais, explica como o golpe interrompeu o processo e analisa a necessidade de se concretizar a reforma agrária no país.
Brasil de Fato – Como começou a articulação das Ligas Camponesas em Minas Gerais?
Antônio Ribeiro Romanelli – Essa história começou de uma forma apartada de qualquer movimento político. Eu era advogado, quase recém-formado. Numa tarde, apareceram no meu escritório três camponeses. Eles me contaram que eram membros de um grupo de 14 famílias que ocuparam um terreno próximo à barragem de Três Marias. Eles já tinham se alojado, construído seus barraquinhos, começado a produzir. Tinham um senhor, conhecido como Neném da Peleca, que se dizia dono desse terreno e havia conseguido uma ordem de despejo contra eles. Queriam ver se eu os defenderia. Aquela história me tocou e resolvi ver como estava a coisa. Então me apeguei à história juridicamente, ainda não politicamente. Tinha argumentos jurídicos para impedir a expulsão deles da terra. O rio São Francisco era considerado navegável e a legislação dizia – como diz ainda hoje – que os 33 metros da margem do rio era terreno de Marinha, portanto, da União. Entrei por aí e consegui a vitória, depois de recorrer ao Tribunal de Justiça de Belo Horizonte. Mas, nesse meio tempo, a coisa tinha tomado um aspecto político. Houve uma reação terrível e eu e mais dois companheiros – Antônio de Oliveira Lins e Cássio Gonçalves – acompanhamos pessoalmente a decisão do Tribunal e o assentamento das famílias. Nós nos reunimos e chegamos à seguinte conclusão: não podemos deixar esse pessoal e ir embora, porque eles serão expulsos outra vez se não tiverem o mínimo de organização. Naquele tempo, era proibida a organização de sindicatos rurais. Fomos estudar e verificamos que havia uma saída legal, que era apelar para o Código Civil: nada impedia que fizéssemos uma associação de caráter civil. Aí fundamos e registramos a associação em cartório. As famílias elegeram então os seus dirigentes.
Que tipo de trabalho a associação fazia?
O primeiro trabalho que a gente sugeriu a eles foi a construção de uma escola. Havia muitas crianças em idade escolar, que tinham que andar oito quilômetros para chegar na escola mais próxima. Nos comprometemos a arrumar o mobiliário e uma professora se eles conseguissem construir um local. Nesse meio tempo, aconteceu uma coisa engraçada. Recebemos uma doação de madeira para fazer as carteiras do cônsul de Portugal e depois descobrimos que ele era da CIA. O sindicato dos marceneiros fez as carteiras. A coisa tinha tomado vulto, vários sindicatos urbanos resolveram ajudar, o Partido Comunista também. Quando as carteiras ficaram prontas – eram aquelas carteiras rústicas conjugadas –, conseguimos uma caminhonete emprestada para transportá-las, e um jovem estudante de arquitetura se ofereceu para levar. Pegou as carteiras na garagem lá em casa e foi levar. Ele então perguntou numa guarita no caminho a localização e lá havia agentes da polícia, um sargento inclusive. Da forma como estavam embaladas, as carteiras pareciam caixotes. Esses oficiais de polícia fizeram um relatório dizendo que eu tinha mandado para lá caixas com metralhadoras. As carteiras viraram caixas de metralhadoras. Se pensar bem, tem até sentido. Na obscuridade deles, escola é muito perigoso. A ideia, a palavra, é perigosa para eles, mais até do que a própria metralhadora.
Como vocês conheceram as Ligas Camponesas no Nordeste e o Francisco Julião?
Chegou ao nosso conhecimento de que em Pernambuco havia um movimento, liderado por um colega advogado também, chamado Francisco Julião, que estava funcionando muito bem, e estava se espalhando a ideia. O pessoal achou então que eu devia ir lá; cotizamos a passagem e fui. Verifiquei uma coisa muito interessante: a origem das Ligas Camponesas em Pernambuco era a morte. Quando morria alguém, eles pegavam a rede onde a pessoa dormia, levavam o corpo, as mulheres iam cantando e iam enterrar a pessoa. Mas eles não podiam deixar a rede, porque ela faria falta. Então abriam um buraco e jogavam o corpo nu lá dentro. Veio então a ideia de organizar uma associação – também civil – que tinha como finalidade a morte, ou seja, criar um fundo para poder comprar um caixão e enterrar dignamente os mortos. E o negócio foi crescendo. Para organizar e tocar a associação, eles precisavam se reunir e começaram a discutir outras coisas que não a morte. Começaram a discutir a vida e começaram a questionar porque trabalhavam tanto, faziam a riqueza dos donos de engenho e não tinham nem como morrer com dignidade. Aí a coisa assustou. Porque enquanto estavam discutindo a morte, os fazendeiros e usineiros estavam achando até bom. Mas quando souberam que estavam discutindo a vida, a coisa esquentou, viram que aquilo era perigoso e começaram uma campanha de caráter nacional contras as Ligas. Mas, dialeticamente, à medida que a reação veio, as Ligas foram vistas, divulgadas, suas ideias foram se propagando. Voltei, verificando que aquela era a solução. Sindicato não podíamos fazer, associação era sem força, e as Ligas então nos entusiasmaram. Resolvemos então trazer as Ligas Camponesas para Minas Gerais. Começamos a organizá-las em diversas cidades do interior. A coisa foi tomando pé. Formalizamos as Ligas, substituindo o registro da associação, e fui eleito o presidente. Já havia nessa época a legislação trabalhista aplicada ao campo, como salário mínimo, férias, mas os fazendeiros não cumpriam. Então o trabalho das Ligas era dar suporte jurídico – o fato de sermos advogados levou muito para isso – nas reclamações trabalhistas. E ganhávamos todas. Na medida em que fomos ganhando, a fama das Ligas Camponesas foi crescendo. Nessa época elas eram uma espécie de federação de sindicatos. Essa coisa tomou vulto e tiveram a ideia de criar a nível nacional uma instituição para dar assistência jurídica e judiciária aos camponeses. Meu nome foi sugerido e fui nomeado pelo Jango para ser o coordenador nacional dessa organização.
Como o golpe de 1964 atingiu esse processo?
No dia 1º de abril de 1964 eu estava com a passagem na mão e recebi um telefonema. A pessoa não disse o nome, mas me disse que estavam indo me prender e que eu devia sair da minha casa naquele momento. Disse que sabia disso porque um de seus filhos pertencia à organização dos Faixas Amarelas. Reconheci a voz e fui para a casa desse senhor, onde fiquei algum tempo. E os jornais estampavam fotos, diziam que estava procurado o advogado que trouxe cinco mil metralhadoras para as Ligas Camponesas. Quando percebi que o golpe estava consolidado, voltei e me entreguei à polícia. Era um interrogatório que nunca findava. Fiquei preso por quatro meses, e, depois, houve um relaxamento, me soltaram condicionalmente, mas não podia sair de Belo Horizonte; uma espécie de prisão domiciliar. Voltei a advogar, estava tranquilo, até que veio o AI-2, que era a transferência para a competência da Justiça Militar de todos os casos, como os nossos, de civis envolvidos com “crimes políticos”. Instituíram o que podemos chamar de tribunal de exceção. Fui condenado a nove anos de cadeia. Depois disso eu e alguns companheiros conseguimos chegar na embaixada do Chile, que era das poucas que ainda recebiam exilados políticos e fomos então para lá.