segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Slavoj Zizek: A privatização do conhecimento intelectual

A Revolta da Burguesia Assalariada

Slavoj Žižek, no London Review of Books, traduzido por Heloisa Villela para o VIOMUNDO

Como foi que Bill Gates se tornou o homem mais rico dos Estados Unidos? A riqueza dele não tem nada a ver com a Microsoft produzir bons programas a preços mais baixos que a competição, ou com ‘explorar’ seus trabalhadores com mais sucesso (a Microsoft paga um salário relativamente alto a seus trabalhadores intelectuais). Milhões de pessoas ainda compram programas da Microsoft porque a Microsoft se impôs quase como um padrão universal, praticamente monopolizando o mercado, como uma personificação do que Marx chamou de “intelecto geral”, com o que ele quis dizer conhecimento coletivo em todas as suas formas, da Ciência ao conhecimento prático. Gates privatizou eficazmente parte do intelecto geral e ficou rico ao se apropriar do aluguel deste intelecto.
A possibilidade de privatização do intelecto geral é algo que Marx nunca previu nos seus escritos a respeito do capitalismo (em grande parte porque ele negligenciou a dimensão social do capitalismo). Ainda assim, isso está no centro da luta atual sobre propriedade intelectual: na medida em que o papel do intelecto geral – baseado no conhecimento coletivo e na cooperação social – aumenta no capitalismo pós-industrial, a riqueza se acumula de forma desproporcional no trabalho gasto na sua produção. O resultado não é, como Marx parecia esperar, a autodissolução do capitalismo, mas a gradual transformação do lucro gerado pela exploração do trabalho em renda apropriada através da privatização do conhecimento.
O mesmo vale para os recursos naturais, cuja exploração é uma das principais fontes de renda do mundo. Existe uma luta permanente sobre quem fica com essa renda: os cidadãos do Terceiro Mundo ou as corporações ocidentais. É irônico que ao explicar a diferença entre trabalho (que produz valor excedente) e outras commodities (que consomem todo seu valor no uso), Marx tenha dado como exemplo o petróleo, uma commodity ‘ordinária’. Hoje, qualquer tentativa de ligar as flutuações do preço do petróleo às oscilações de seu custo de produção ou ao preço da exploração do trabalho não faria o menor sentido: o custo de produção é insignificante como proporção do preço que pagamos pelo petróleo, preço que na realidade é a renda que os donos do recurso podem extrair graças à oferta limitada de petróleo.
A consequência do aumento de produtividade causado pelo crescimento exponencial do conhecimento coletivo é uma mudança no papel do desemprego. É o próprio sucesso do capitalismo (maior eficiência, aumento de produtividade, etc.) que produz desemprego, tornando mais e mais trabalhadores inúteis: o que deveria ser uma bênção – menor necessidade de trabalho pesado – se torna uma maldição.
Ou, para explicar de outra maneira, a oportunidade de ser explorado em um emprego de longo prazo agora é experimentada como um privilégio.
O mercado mundial, como disse Fredric Jameson, é “um espaço onde todo mundo já foi um trabalhador produtivo e no qual o trabalho começou, em toda parte, a se precificar fora do sistema”. No atual processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados não se limita mais ao “exército industrial de reserva” de Marx; ela também inclui, como nota Jameson, “essas massas populacionais do mundo que ‘despencaram da história’, que foram deliberadamente excluídas dos projetos modernizadores do Primeiro Mundo capitalista e descartadas como casos terminais ou sem esperança: os chamados estados falidos (Congo, Somália), vítimas da fome ou de desastres ecológicos, os que caíram na armadilha pseudo-arcaica dos ‘ódios étnicos’, objetos da filantropia ou das ONGs ou alvos da guerra ao terror”.
A categoria dos desempregados foi, assim, expandida para incluir uma vasta esfera de pessoas, dos desempregados temporariamente aos que não podem mais conseguir emprego e estão permanentemente desempregados, aos habitantes de guetos e favelas (quase todos esses descartados por Marx como parte do lumpemproletariado), e finalmente todas as populações e estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços vazios de mapas antigos.
Alguns dizem que esta nova forma de capitalismo oferece novas possibilidades de emancipação. Essa é a tese de “Multitude”, de Hardt e Negri, que tenta radicalizar Marx, afirmando que se nós simplesmente cortarmos a cabeça do capitalismo, teremos o socialismo. Marx, eles argumentam, estava limitado historicamente: ele pensou em termos de trabalho industrial centralizado, automatizado e organizado hierarquicamente. Como resultado, entendeu o “intelecto geral” como algo semelhante à agência de planejamento central; somente hoje, com o surgimento do “trabalho não-material”, uma mudança revolucionária se tornou “objetivamente possível”.
Esse trabalho não-material se estende entre dois polos:  do trabalho intelectual (a produção de ideias, textos, programas de computador, etc.) a trabalhos afetivos (desempenhados por médicos, babás e comissários de bordo). Hoje, o trabalho não-material é hegemônico, no sentido com que Marx proclamou, no capitalismo do século 19, que a produção industrial em larga escala era hegemônica: ele se impõe não através da força dos números, mas por desempenhar um papel-chave, emblemático de toda a estrutura.
O que emerge é um vasto novo domínio chamado de “commons”: conhecimento compartilhado e novas formas de comunicação e de cooperação. Os produtos da produção não-material não são objetos, mas novas relações sociais e interpessoais; a produção não-material é biopolítica, é a produção da vida social.
Hardt e Negri descrevem aqui o processo que os atuais ideólogos do capitalismo pós-moderno celebram como a passagem da produção material para a simbólica, da lógica da hierarquia centralizadora para a lógica da auto-organização e da cooperação multicentralizada.
A diferença é que Hardt e Negri são fiéis a Marx: eles tentam provar que ele estava certo, que o surgimento do intelecto geral é, a longo prazo, incompatível com o capitalismo. Os ideólogos do capitalismo pós-moderno afirmam exatamente o oposto: a teoria marxista (e a prática), argumentam, continua limitada pela lógica hierárquica do controle centralizado do estado e por isso não consegue lidar com os efeitos sociais da revolução da informação.
Existem boas razões empíricas sustentando o argumento deles: o que de fato arruinou os regimes comunistas foi sua incapacidade de se acomodar à nova lógica social sustentada pela revolução da informação. Eles tentaram dirigir a revolução, fazer dela mais um projeto em grande escala de um governo centralizado. O paradoxo é que o que Hardt e Negri celebram como uma oportunidade única para derrubar o capitalismo é comemorado pelos ideólogos da revolução da informação como o surgimento de um capitalismo novo, sem ‘fricção’.
A análise de Hardt e Negri tem alguns pontos fracos, o que nos ajuda a entender como o capitalismo tem conseguido sobreviver ao que deveria ser (em termos marxistas clássicos) uma nova organização da produção que o tornaria obsoleto. Os dois subestimaram a extensão do sucesso do capitalismo de hoje (ao menos no curto prazo) na privatização do intelecto geral, além de subestimarem a dimensão de como os trabalhadores, mais do que a própria burguesia, estão se tornando supérfluos (com um número cada vez maior de trabalhadores se tornando não apenas desempregados temporários, mas estruturalmente não-empregáveis).
Se o capitalismo antigo idealmente envolvia o empresário que investia (o seu ou emprestado) dinheiro na produção, que ele organizava e geria, e depois tirava lucro disso, um novo tipo ideal está surgindo hoje: não mais o empresário que é dono de sua companhia, mas um administrador especializado (ou um conselho de administração presidido por um CEO), que governa a empresa de propriedade dos bancos (também geridos por administradores, que não são donos do banco) ou investidores diversos.  Neste novo tipo de capitalismo ideal, a velha burguesia, tornada desfuncional, é reciclada como gerenciadora assalariada: os membros da nova burguesia recebem salários, e mesmo quando são donos de parte da empresa, ganham ações como parte de sua remuneração (“bônus” pelo seu “sucesso”).
Essa nova burguesia ainda se apropria da mais-valia, mas no formato (mistificado) do assim chamado “superávit salarial”: eles recebem bem mais que o “salário mínimo” do proletariado (quase sempre um ponto mítico de referência, cujo único exemplo real na economia global de hoje é o salário dos trabalhadores na indústria têxtil da China ou da Indonésia), e é esta distinção em relação proletário comum que determina o status da nova burguesia.
A burguesia no sentido clássico, assim, tende a desaparecer: capitalistas reaparecem como um subsetor de trabalhadores assalariados, como administradores qualificados para ganhar mais pela virtude de sua competência (por isso a avaliação pseudocientífica é crucial: ela legitima as disparidades).  Longe de se limitar aos administradores, a categoria de trabalhadores que ganha superávits salariais se estende a todo tipo de especialista, administradores, servidores públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais e artistas. O superávit assume duas formas: mais dinheiro (para gerentes, etc.), mas também menos trabalho e mais tempo livre (para – alguns – intelectuais, mas também para administradores do estado, etc.).
O processo de avaliação usado para decidir quais trabalhadores devem receber superávit salarial é um mecanismo arbitrário de poder e ideologia, sem conexão séria com a verdadeira competência; o superávit salarial existe não por razões econômicas, mas políticas: para manter uma “classe média” e preservar a estabilidade social.
A arbitrariedade na determinação da hierarquia social não é um erro, mas objetivo do sistema, com papel análogo ao da arbitrariedade no ’sucesso de mercado’.
A violência não ameaça explodir quando existe muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar a contingência. Em “La Marque du sacré”, Jean-Pierre Dupuy trata a hierarquia como um dos quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) que têm como função tornar não humilhante a relação de superioridade: a própria hierarquia (uma ordem imposta externamente que me permite experimentar meu status social mais baixo de forma independente do meu valor inerente); desmistificação (o procedimento ideológico que demonstra que a sociedade não é uma meritocracia, mas o produto de disputas sociais objetivas, que me permite evitar a conclusão dolorosa de que a superioridade de alguém sobre mim é resultado dos méritos e realizações do outro); contingência (mecanismo parecido, através do qual entendemos que nossa posição na escala social depende de uma loteria natural e social; os sortudos nascem com os genes certos, em famílias ricas); e complexidade (forças incontroláveis têm consequências imprevisíveis; por exemplo, a mão invisível do mercado pode me levar ao fracasso e o meu vizinho ao sucesso, mesmo que eu trabalhe muito mais e seja bem mais inteligente).
Ao contrário do que parece, esses mecanismos não contestam ou ameaçam a hierarquia, mas a tornam mais palatável, já que “o que dispara o tumulto da inveja é a ideia de que o outro não merece a sorte que tem e não a ideia oposta – a única que se pode expressar abertamente”. Dupuy tira desta premissa a conclusão de que é um grande erro pensar que uma sociedade razoavelmente justa, que se enxerga como justa, estará livre de ressentimento: pelo contrário, é nessas sociedades que aqueles que ocupam as posições inferiores encontrarão nas explosões violentas de ressentimento um veículo para seu orgulho ferido.
Isso está conectado ao impasse que a China enfrenta hoje: o ideal das reformas de Deng era introduzir o capitalismo sem uma burguesia (já que ela formaria a nova classe dominante); agora, porém, os líderes da China estão descobrindo dolorosamente que o capitalismo sem uma hierarquia estabelecida, possibilitada pela existência de uma burguesia, gera instabilidade permanente. Então, que caminho a China seguirá?
Os ex-comunistas estão emergindo como os administradores mais eficientes do capitalismo porque sua inimizade histórica com a burguesia como classe casa perfeitamente com a tendência atual do capitalismo de se tornar um capitalismo administrativo, sem burguesia – nos dois casos, como Stalin disse faz tempo, “os quadros decidem tudo”. (Uma diferença interessante entre a China e a Rússia de hoje: na Rússia, os professores universitários têm salários ridiculamente baixos – eles já são, de fato, parte do proletariado – enquanto na China recebem um superávit salarial confortável para garantir sua docilidade).
A noção de superávit salarial também coloca sob nova ótica os constantes protestos “anticapitalistas”.  Em momentos de crise, o candidato óbvio para apertar o cinto são as classes mais baixas da burguesia assalariada: protestos políticos são seus únicos recursos se quiserem evitar se juntar ao proletariado.
Apesar de seus protestos serem, nominalmente, dirigidos contra a lógica brutal do mercado, elas estão protestando, de fato, contra a erosão gradual de sua posição econômica privilegiada (politicamente).
Em “Atlas Shrugged”, Ayn Rand tem a fantasia de fazer greve contra capitalistas “criativos”, uma fantasia que encontra realização pervertida nas greves de hoje, quase todas sustentadas por “burguesias assalariadas” movidas pelo medo de perder o superávit salarial. Esses não são protestos proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido a proletariado.
Quem tem coragem de entrar em greve hoje, quando ter um salário fixo é, em si mesmo, um privilégio? Trabalhadores com baixos salários (o que resta deles) da indústria têxtil, etc., não; mas os trabalhadores privilegiados que têm emprego garantido (professores, empregados dos transportes públicos, policiais), sim. Isso também explica a onda de protestos estudantis: sua principal motivação é, sem dúvida, o medo de que a educação superior não garanta um superávit salarial mais tarde, na vida.
Ao mesmo tempo está claro que o grande renascimento de protestos no último ano, da Primavera Árabe à Europa ocidental, do Occupy Wall Street à China, da Espanha à Grécia, não deve ser descartado meramente como uma revolta da burguesia assalariada. Cada caso deve ser analisado de acordo com seus próprios méritos. Os protestos estudantis contra a reforma universitária na Grã-Bretanha são claramente diferentes dos distúrbios de agosto, que foram um carnaval consumista de destruição, uma verdadeira explosão dos excluídos.
Pode-se argumentar que os levantes no Egito começaram, em parte,  como uma revolta da burguesia assalariada (com jovens educados protestando por conta de sua falta de perspectiva), mas este foi apenas um dos aspectos de um protesto mais amplo contra um regime opressivo. Por outro lado, o protesto não mobilizou, realmente, trabalhadores mais pobres e camponeses e a vitória eleitoral dos islâmicos deixa clara a estreita base social do protesto secular original. A Grécia é um caso especial: nas últimas décadas, foi criada uma nova burguesia assalariada (especialmente na inchada administração estatal), graças à ajuda financeira da União Europeia, e os protestos, em boa parte, foram motivados pela ameaça do fim disso.
A proletarização das camadas mais baixas da burguesia casa, no oposto extremo, com a alta remuneração irracional de administradores e banqueiros do topo (irracional como demonstraram as investigações nos EUA, já que ela tende a ser inversamente proporcional ao sucesso da companhia). Ao invés de submeter essas tendências à crítica moralizante, devemos lê-las como sinais de que o sistema capitalista não é mais capaz de uma estabilidade autorregulada – em outras palavras, ele ameaça ficar fora de controle.

Um ótimo lugar para se visitar durante o FST de Porto Alegre

Um local de Porto Alegre:o universo da Lancheria do Parque

André Carvalho no SUL21

- “Um suco de laranja batido”;
- “Dois pasteis de carne”;
- “uma torrada com ovo”.

Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Quem já foi na Lancheria do Parque (Av. Osvaldo Aranha, 1086) certamente reconhece as clássicas frases descritas acima. É assim que – aos gritos –, os garçons da Lanchera, como é popularmente conhecida, anunciam a seus colegas no balcão os pedidos dos clientes. Com a Redenção como seu pátio e menção ao parque em seu nome, o local é conhecido por seus lanches e sucos relativamente baratos. Porém, nas décadas de 80 e 90, o seu forte era a venda de cervejas.
Nessa época, o Bom Fim era o bairro boêmio de Porto Alegre e a Avenida Osvaldo Aranha era rodeada por bares como o Ocidente, o Bar João, o Lola, o Viva a Vida, o Luar, Luar, o Bar Fim e o Escaler, entre outros, além do clássico cinema Baltimore. Hoje, restaram apenas o Ocidente, além da própria Lancheria, como “sobreviventes” daquele período.
Naqueles tempos, a propósito, a Lanchera era conhecida por ser um dos últimos lugares abertos na madrugada porto-alegrense, fechando sempre depois das 05h da manhã e por vender cerveja barata, fato que acabava reunindo nas noites de sexta e sábado mais de quinze mil pessoas na sua frente. “A gente fechava aqui e ia sentar nos cordões da calçada com a galera pra conversar. Mas eu não sei o que aconteceu, se as condições sociais foram mudando ou o quê… Mas em tão pouco tempo a madrugada no Bom Fim se tornou bem violenta”, garante Mauri Fachini, funcionário, atendente, com 20 anos de Lancheria.
“Hoje em dia, a cerveja sai bem pouco e já não reunimos mais grandes multidões. Se temos mil clientes diários, é muito”, explica Fachini, que acrescenta: “O bom, pelo menos, é que hoje, os clientes que antes vinham tomar cervejada vêm agora tomar suco. Eles não deixaram de freqüentar a Lancheria”, complementa.

Cooperativa Lancheria do Parque

Eles não param | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Sobre o termo “funcionário”, Mauri Fachini faz questão de salientar: “Aqui não temos funcionários, temos colegas de trabalho”. Isso porque há aproximadamente 12 anos, o Seu Ivo e a Dona Inês, proprietários da Lancheria do Parque, decidiram transformá-la em uma cooperativa, tornando seus demais colegas sócios do local.
“Quando o Seu Ivo fez a proposta da sociedade, trabalhavam aqui 10 pessoas. Ele nos informou que não iríamos mais ter férias, não teríamos mais horário normal pra trabalho e queria que a gente se dedicasse integralmente à Lancheria. Porém, daquele dia em diante, deixaríamos de ser funcionários e passaríamos a ser sócios da empresa”, explica Mauri.
Atualmente, trabalham na Lanchera 27 pessoas — porém, Fachini não sabe precisar quem é sócio e quem é trabalhador de carteira assinada. “No momento que começa a trabalhar aqui, não interessa se faz parte da sociedade ou não, porque vai pegar junto igual, vai fazer as mesmas coisas, trabalhando em média 08h, 09h por dia”.
Seu Ivo | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para ele, a maior vantagem da sociedade foi o ganho financeiro. “Uns ganham um pouquinho mais, outros um pouquinho menos, depende do tempo que se tem de Lancheria”, conta. Além disso, Mauri explica que quando o bar ganha um novo sócio, ninguém tem sua porcentagem diminuída, a não ser o Seu Ivo e a Dona Inês. “Como eles ficaram com a maior porcentagem da sociedade, ao entrar alguém novo, ele faz a divisão dos lucros a partir da cota dele, sem diminuir o que os outros ganham”.
Por se tratar de uma cooperativa, a Lancheria não visa lucros. Isso justifica as suas instalações simples, mas que não desmotivam as pessoas de frequentarem o local.  “Nós não temos ar condicionado, nossos bancos e mesas são os mesmos desde há muito tempo e mesmo assim, as mais variadas pessoas vêm aqui diariamente”, argumentou Fachini. Sobre a divisão dos valores arrecadados, ele explica: “Com a sociedade, nós deixamos de ter salários, trabalhamos com um caderninho. Hoje eu preciso de 500 reais, outro de 300. E aí vai anotando quanto cada um retirou. Chega ao final do dia e faz uma redistribuição. Com isso, nós não trabalhamos com dinheiro em caixa e consequentemente, nunca sabemos quanto ganhamos no mês”.

O confuso – mas nem tanto – sistema de organização da Lancheria

Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Não há quem vá na Lanchera e não se surpreenda com o “diferenciado” sistema de organização de seus cooperativados. Após anotar o pedido na comanda, o garçom avisa ao colega que está no balcão, o que o cliente quer. Para o seu colega e para todos os demais frequentadores, na verdade, já que é aos gritos que eles se comunicam. E o mais curioso é que aquele que faz um lanche ou um suco já está de costas, nem olhando para o garçom.
Mauri garante que, apesar da organização parecer confusa para quem vê de fora, o sistema do grupo não tem mistério. “A gente já se acostumou. Depois de uma semana tu já conhece as vozes que trabalham contigo, sabe quem vai gritar. O chapista pode estar conversando, aí o garçom gritou e ele já vai lá e faz. É automático. Pra quem esta de fora pode parecer difícil, mas pra nós é barbada. Complica quando troca de setor, mas em um ou dois dias já se entra no ritmo”, acrescenta.
Citando o filme Tempos Modernos, de Charles Chaplin – onde o ator passa todo o tempo apertando um mesmo parafuso, cumprindo a mesma função, Fachini explica que a Lancheria tentou fugir dessa lógica, pois cada um trabalha onde trabalha por opção e não por obrigação. “Eu, por exemplo, não tenho função. Eu vivo todos os setores. Se precisar limpar o banheiro, eu vou limpar, se precisar trabalhar na cozinha eu vou pra lá, se precisar cortar fruta, eu vou cortar. Aí tu acabas sabendo de tudo um pouco”. E complementa: “Se um dia tu quiseres sair daqui e montar o teu próprio negócio, tu vai estar apto. Quem trabalha aqui, só tem a ganhar. Tem muitos que saíram daqui e estão se dando bem em outros setores”.

O futebol da madrugada
Balcão vazio é uma foto difícil durante o dia | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

É muito comum encontrar os trabalhadores da Lancheria do Parque em mais de um turno trabalhando arduamente. Isso porque o sistema de horário da cooperativa é diferenciado. “Uns trabalham oito, nove, às vezes até 10 horas diretas, outros preferem trabalhar quatro horas de manhã e o restante de noite, isso varia muito”, conta Mauri.
Porém, o que ninguém imagina, é o que eles fazem assim que as portas do local se fecham. Ao invés de aproveitar o tempo que deveria ser destinado para o descanso, o grupo prefere atravessar a Avenida Osvaldo Aranha e entrar no estádio público Ramiro Souto, localizado dentro do Parque da Redenção.
A partida inicia tradicionalmente às 02h e não tem hora para terminar. Segundo Fachini, o jogo acaba quando o primeiro se cansa ou até “o sol se despontar”. “Eu não jogo mais, joguei por 18 anos, mas agora encerrei minha carreira. Mas o futebol ainda rola. A galera joga no inverno, agasalhado, com neblina, chuvisco, zero grau, menos um. Sempre de madrugada. Tem colega que não trabalha no turno da noite, mas vem pra cá só pra jogar futebol”, conta, faceiro.
Mas o jogo não ocorre somente entre os colegas de Lancheria. Vez que outra o grupo recebe a visita do time de médicos do HPS, do Clínicas, de músicos famosos de Porto Alegre, ou de estudantes da UFRGS para fazer um confronto na madrugada. “Eles estão sempre na noite. Esse é o horário que eles têm para o lazer”, conclui Fachini.
Mas a curiosidade não para na partida de futebol. Mauri conta que tirando o Seu Ivo, que chega há trabalhar cem dias sem tirar um dia de folga, os demais colegas folgam uma vez por semana. Porém, ele diz que em seus dias de folga o local que ele mais gosta de ir é na própria Lancheria do Parque. “Às vezes minha mulher pergunta: ‘Onde é que tu quer comer?’ E eu respondo: “Ah, quero comer na Lanchera”. Por quê? Porque eu sei quem está fazendo, sei de onde veio a comida e sei que é coisa boa. A não ser que eu queira comer um churrasco, aí eu vou pra outro lugar. E não sou só eu, os demais colegas também gostam de vir comer aqui”.

 Lancheria do Parque: um local da diversidade cultural

O famoso suco no copo de liquidificador | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Aproximando-se do seu trigésimo aniversário, a ser comemorado no dia 09 de maio, a Lancheria do Parque é consagrada por seus frequentadores como um dos pontos mais tradicionais e ecléticos da capital. Para Mauri Fachini, a Lancheria é um dos poucos lugares da cidade onde o rico e o pobre encontram-se no mesmo espaço e têm atendimento igual. “Tu podes vir a qualquer hora do dia ou da noite e poderás encontrar um executivo, de terno e gravata, em uma mesa, e um operário, um pedreiro em outra. Aqui dentro eles são iguais e terão um tratamento igual. É isso que a Lancheria quer”, garante.
Porém, não são apenas os trabalhadores comuns que freqüentam o local. Para a classe artística em geral, a Lancheria do Parque é parada obrigatória entre o ensaio e o show, ou para o café da manhã, depois da longa madrugada. Segundo Fachini, “esse pessoal nem são clientes da Lancheria, eles são da casa. O pessoal da Cachorro Grande, do Papas da Língua, Apanhador Só, Pata de Elefante. Às vezes a gente convive mais com eles do que com a nossa própria família”, comenta. E aproveitando a deixa, conta uma historia recente: “Outro dia o André Damasceno veio aqui e falou uma coisa muito engraçada: ‘A Lancheria do Parque tem o segundo melhor bauru de Porto Alegre’. Quando perguntei qual seria o primeiro ele respondeu: ‘O primeiro ainda não se sabe, porque ninguém descobriu’”, concluiu, aos risos.
Se por um lado a classe artística é grande freqüentadora da Lanchera, a dos políticos há muito tempo desistiu de tomar os tradicionais sucos nas horas vagas. “Político do grande escalão só vem, quando vem, em época de eleições, pra fazer política. O Olívio Dutra vinha bastante, agora não vem mais”, conta Fachini.
Questionado por outros nomes, Mauri responde: “A Fê (Fernanda Melchionna, Vereadora de Porto Alegre) vem muito, mas ela nem é vereadora, ela é nossa colega. Outra que vinha muito é a Manuela D’Ávila, mas depois que ficou grande não veio mais. Agora só vem a irmã dela. A Juliana Brizola vem com freqüência também”.
Outra classe que frequenta bastante a Lanchera, segundo Fachini, é a dos jornalistas. “A imprensa vem muito aqui. Nós conhecemos todos os jornalistas, de todas as emissoras de Porto Alegre, temos uma amizade com eles. Um que vinha bastante era o Kenny Braga, o David Coimbra também. Ele até fez uma biografia da nossa cozinheira uma época”.

Mais que uma Lancheria, um ponto turístico da cidade

O toldo vermelho da Osvaldo | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Para muitos a Lancheria do Parque é um local das refeições diárias ou tomar refrescantes sucos. Porém, para muitos outros, o local transcende o conceito de bar ou restaurante, sendo também considerado um ponto turístico de Porto Alegre. São raras as pessoas que, ao receber parentes do interior, ou de outros cantos do Brasil, não os levam a Lancheria, especialmente aos domingos, visto que, costumeiramente, o tradicional passeio porto-alegrense é caminhar no Brique da Redenção, tomar um chimarrão no parque e ao final da tarde ir tomar um suco na Lanchera.
Fachini conta que, certa vez, foi surpreendido por um grupo de chineses que queriam conhecer a Lancheria do Parque. “Eu estava caminhando na rua, quando fui surpreendido pelo grupo. Eles estavam com uns bilhetinhos e me perguntaram: ‘sabe onde fica esse endereço?’, aí eu olhei, ‘pô, é Lancheria do Parque’, nem acreditei”.
Graças a estas e outras coisas, Mauri garante: “Nesses 20 anos de Lancheria, eu conheci o mundo sem sair daqui de dentro. Tenho amizade com pessoas do mundo inteiro. Isso não tem preço. Aí quando tu saí, tu vê que isso é real. As pessoas te conhecem, no lugar que tu for, tu tem pessoas conhecidas, é impressionante”.

Prejuízos dos bancos foram socializados com população, diz economista do Dieese


"A crise bateu mais forte exatamente no centro do capitalismo", alerta economista Adhemar Mineiro | Foto: Arquivo pessoal

Vivian Virissimo no SUL21

A ameaça de que a quebra do sistema financeiro resultaria em uma crise sistêmica provocou um efeito perverso: a socialização dos prejuízos dos bancos com a população dos países que aplicam as chamadas medidas de austeridade. Essa é a análise de conjuntura que faz o economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Adhemar Mineiro, em entrevista concedida por telefone ao Sul21.
“A crise se inicia do lado privado e os mecanismos de salvamento nada mais foram que a socialização destes prejuízos”, disse ele. “Este espantalho do pior dos mundos acabou empurrando as alternativas para estes programas de salvamento dos bancos, que hoje mostram que sobre-endividaram os países e levaram a esta situação insustentável”, explica o pesquisador.
Na avaliação de Mineiro, a receita de garantir volumosos subsídios para as instituições bancárias e diminuir gastos sociais vai estender e agravar a crise na União Europeia. “No fundo, o mundo financeiro tem mostrado que permanece com o poder de tentar defender seus interesses em detrimento do restante dos setores, especialmente para os trabalhadores”, analisa o economista.
“A crise econômica atual é cíclica, mas também é uma crise de esgotamento da maneira de funcionar do capitalismo”

Sul 21 – O senhor avalia que vivemos uma crise estrutural do capitalismo ou é mais uma crise cíclica que ocorre de tempos em tempos? Que projeção se pode fazer diante desse quadro?

Adhemar Mineiro - Ela tem o componente das duas coisas. Ela é cíclica, mas também é uma crise de esgotamento da maneira de funcionar do capitalismo. Tem esse componente que é a impossibilidade de seguir esse processo que, de um lado, é de valorização muito grande da riqueza financeira a ritmo maior que o crescimento efetivo da riqueza real e, de outro lado, o sobre-endividamento das famílias e dos Estados nacionais que, digamos, era a contrapartida dessa especulação financeira.

Sul21 – O baixo crescimento econômico e os índices históricos de desemprego na União Europeia e nos Estados Unidos são uma demonstração disso?

Adhemar Mineiro - É, a crise bateu mais forte exatamente no centro do capitalismo. Por isso o componente mais estrutural dessa crise. A gente teve um série de crises dentro desse modelo de hegemonia do mundo financeiro desde os anos 1990, por exemplo, a crise asiática nos anos 1990, a crise entre Brasil e Argentina e a crise das empresas .com nos Estados Unidos. Todos são exemplos de crises recorrentes desse modo de funcionamento do capitalismo. Só que ele sempre voltava, conseguia se recompor e voltava a operar mantendo os mecanismos de valorização financeira e os mecanismos de endividamento. A partir de 2006 e 2007 isso ficou cada vez mais difícil, surgiu esta crise de 2008 e é no bojo dessa crise que nós ainda continuamos.
Concessão de subsídios para bancos e corte de gastos sociais vão "estender e agravar crise na União Europeia", diz Adhemar Mineiro | Foto: Reprodução

Sul21 – E essa receita seguida pela Comissão Europeia de conceder volumosos subsídios para os bancos e cortes de gastos nas áreas sociais é uma alternativa acertada? Como o senhor avalia isso?

Adhemar Mineiro – Isso vai estender e agravar a crise na União Europeia. No fundo, o mundo financeiro tem mostrado que permanece com o poder de tentar defender seus interesses em detrimento do restante dos setores, especialmente para a maior parte da população, dos trabalhadores. Os dados do início da crise, até 2007, por exemplo, indicam que países como Espanha ou Irlanda, que agora estão no olho do furacão, não tinham problema de dívida e não tinha problema fiscal. A Irlanda recorrentemente reduzia sua dívida e a Espanha também tinha superávit fiscal, uma situação muito mais sólida que a Alemanha. Na verdade essa questão fiscal e da dívida não está na origem da crise.

Sul21 – O que estaria na origem?

Adhemar Mineiro - Exatamente o processo de esgotamento da capacidade dos bancos e dos agentes financeiros de seguirem valorizando financeiramente a riqueza. A quebra desses mecanismos a partir de todas as relações de débito e crédito entre os agentes financeiros acaba atingindo fortemente o mercado financeiro europeu e é nos programas de salvamento dos bancos e do mundo financeiro que estes estados nacionais europeus entram em crise. Eles não tinham crise antes e exatamente na tentativa de salvar seus sistemas financeiros estes estados se sobre-endividam. Por outro lado, o próprio sistema financeiro aproveita essa situação para exigir taxas de riscos maiores nos países, o que agrava ainda mais capacidade de gerenciar as suas dívidas e o impacto disso no orçamento público. O que é hoje um problema fiscal, na verdade, é decorrente da própria situação dos bancos. A crise se inicia do lado privado e os mecanismos de salvamento nada mais foram que socializar estes prejuízos para os pagadores de impostos em geral, a população, sob a tal ameaça de que se deixasse quebrar o sistema financeiro entraria numa crise sistêmica. Este espantalho do pior dos mundos na verdade acaba empurrando as alternativas nacionais para estes programas de salvamento dos bancos, que hoje mostram que sobre-endividaram os países e levaram a esta situação insustentável.
“Foi sendo gerado um ambiente que permite a reprodução ampliada do capital financeiro, com força política para impor mais e mais liberalização”
Sul21 – Por que é necessária uma regulamentação mais forte do sistema financeiro para evitar um aprofundamento da crise?

Adhemar Mineiro - Porque na raiz desse processo especulativo tem uma desregulamentação que se iniciou no final dos anos 1970 e se acelerou nos governos liberais na Europa e nos Estados Unidos, particularmente Margaret Thatcher e Ronald Reagan, governos que foram adotando este tipo de matriz que foram pouco a pouco desfazendo mecanismos de regulação que se estabeleceram desde a crise dos anos 1930, que também foi uma crise de excesso de liberação. A experiência com esta crise levou, já na segunda metade dos anos 1930 e fortemente depois da 2ª Guerra Mundial, os países a adotarem uma série de medidas de regulação para evitar a repetição desta crise financeira. A lembrança que as pessoas têm mais forte é a crise da bolsa de Nova York de 1929, que foi uma crise de longo curso, resultado da especulação. Em função dela foram estabelecidos mecanismos que vigoraram e levaram a anos de ouro no capitalismo, nos anos 1950 e 1960, com forte crescimento, distribuição de renda nos principais países, com sistemas financeiros operando para agilizar a economia produtiva. Esses mecanismos de regulação, a partir do fim dos anos 1970, início dos anos 1980, foram desmontados progressivamente — o que se somou a novas tecnologias que permitem, por exemplo, operar 24 horas por dia através de rede de comunicação entre computadores. A bolsa de valores está fechando aqui no Brasil e está abrindo em outro lugar. Tudo isso foi gerando esse ambiente que permite a reprodução ampliada desse capital financeiro, com a força política que estes agentes vão tomando para impor mais e mais liberalização. Então é por isso que se fala que a saída da crise passa por restabelecer os mecanismos de regulação que existiam, digamos, até o final dos anos 1970. Não é fácil hoje, porque a regulação anterior era muito na esfera nacional e hoje os mecanismos financeiros estão muito mais internacionalizados. Além do restabelecimento da regulação anterior, teria que criar novas regulações que funcionassem em escala internacional que pudessem exatamente controlar o capital que se movimenta pelo mundo todo.
"Felizmente não entramos nesse acordo da ALCA, porque se tivéssemos entrado nossa situação seria ainda pior" | Foto: Arquivo pessoal

Sul21 — E está tendo algum movimento para garantir uma regulação internacional do mundo financeiro?

Adhemar Mineiro – Toda a discussão que está se fazendo sobre taxa, sobre transações financeiras, que era conhecida como taxa Toben, na verdade é uma sugestão de um novo mecanismo que poderia ajudar este processo de regulação dos movimentos internacionais de capitais e que seria já neste novo padrão. O G20 desde suas primeiras reuniões discute algumas medidas neste sentido: controle de paraísos fiscais, dar mais poder regulatório ao Fundo Monetário Internacional (FMI), ao Comitê de estabilidade financeira, ao comitê da Basiléia… Enfim, tem toda uma discussão de como criar essa nova regulação e de fato muita pouca coisa concreta avançou. Mesmo o controle dos chamados paraísos financeiros, que era consenso nas primeiras reuniões do G20, nem isso foi implementado. As primeiras reuniões foram no final de 2008 com a explosão da crise e esse tema era consenso e mesmo assim não saiu do papel.

Sul21 – Como a desvalorização do dólar tem impacto na industrialização brasileira?

Adhemar Mineiro – Aqui tem outro mecanismo, que é a desregulação financeira no Brasil. Esse processo ocorre desde a segunda fase do governo Collor, em 1992, quando se desmontou uma série de mecanismos de controle e acabou permitindo a saída e entrada livre de movimentos de capital. Isso, nos momentos de saída, foi responsável por algumas crises, em 1998 e 2002, mas na maior parte do tempo levou a uma entrada maior de capital, buscando se aproveitar da rentabilidade financeira que é oferecida com taxas de juros muito altas. Essa entrada de capitais acaba forçando a desvalorização do dólar e uma valorização do real e isso tem impactado fortemente o setor produtivo, num quadro que também teve liberalização financeira nos anos 1990, teve uma série de rebaixamento de tarifas prometidos por exemplo, no nível da Organização Mundial do Comércio (OMC). Felizmente não entramos nesse acordo da ALCA, porque se tivéssemos entrado nossa situação seria ainda pior. E essa valorização do real dificulta tanto a situação das empresas exportadoras brasileiras quanto as empresas que aqui dentro competem com os produtos importados. Esse efeito já tem acontecido em vários momentos desde o início do plano real. Ao longo da cadeia produtiva vários setores sofrem impacto. Desde setores de tecnologias mais baixa, área de móveis, têxteis, sapatos, mas no período mais recente tem ido para áreas de tecnologias de ponta e de bens de capital, que são as máquinas para produzir maquinas.
“Não adianta pensar que só os países mais desenvolvidos vão garantir o suprimento de produtos industrializados”
Sul21 – Investir em modelos de integração como Mercosul, Alba e Unasul tem sido uma estratégia eficaz? Um contraponto?
Adhemar Mineiro - Os processos de integração são uma estratégia interessante neste momento porque permitiriam aos países da América do Sul, que têm situação mais tranquila, apostar num sistema de produção e consumo menos dependente deste cenário externo, que é um cenário de mais crise. Tem um impulso para caminhar neste sentido, mas não é fácil, especialmente quando se olha para os países e se vê que uma parte importante do desempenho produtivo desses países está voltado para exportação justamente para esses mercados internacionais. A América do Sul se especializou muito fortemente nos últimos quinze anos na exportação de commodities agrícolas, minerais ou energética. Mesmo países da área da alternativa bolivariana, a ALBA, que contestam mais fortemente o esquema, são fortes exportadores de petróleo, de commodities energéticas. A Argentina, que também expressa muitas críticas ao sistema, é um gigantesco exportador de soja. Fora países que, digamos, são mais simpáticos a essa integração internacional, no caso do Peru e Chile, que têm se especializado na exportação de commodities minerais. Isso dá um tom das dificuldades que tem esse processo de integração. Agora, eu acho que os países tem que apostar nisso (integração). É uma alternativa boa, face ao quadro internacional. O que é necessário hoje é um direcionamento mais político, políticas de integração de como se encaminha a integração das cadeias produtivas na região. Não adianta pensar que só os países mais desenvolvidos dentro da região vão garantir o suprimento de produtos industrializados. Pode ser que os países não topem esse esquema do Brasil exportar industrializados para a região, o que significa desindustrializá-los também. Teria que pensar em como disseminar as cadeias produtivas que hoje estão concentradas em alguns países, especialmente no Brasil.
Fernado Pimentel com o ministro do Comércio da China, Chen Deming: "Há uma relação comercial com a China análoga a que se tem com a Europa" | Foto: Fábio Pozzebom/ABr

Sul21 – O Brasil acerta ao fazer uma política econômica voltada para a relação Sul-Sul, privilegiando países da África e da Ásia, por exemplo?

Adhemar Mineiro - A diversificação é uma política positiva. Agora, tem que tomar cuidado quando se fala nessa questão Sul-Sul, especialmente quando se olha para os números do comércio. Há uma relação comercial com a China que nos últimos anos é digamos análoga a que se tem com a Europa. É uma relação tão desigual quanto que se tem com a Europa e com o Japão, outro país da Ásia. Se deve analisar o peso da China, que acaba reproduzindo a mesma relação com a Europa, Japão, Coreia, com países desse tipo de desenvolvimento. Mas a diversificação, a aposta que se pode fazer dos mercados do Sul, é importante e uma alternativa boa nesse momento.
Sul21 – O modelo de agroexportação pode ser afetado no caso dessa crise se espalhar para China, por exemplo? Que impacto teria?
Adhemar Mineiro - O modelo exportador é sempre perigoso, porque deixa o país na dependência dos mercados externos e não se sabe o que vai acontecer. Existem elementos econômicos e elementos geopolíticos que podem impactar. Num momento como esse, o ideal é contar com o seu mercado interno e esse tem sido o ponto forte em países como o Brasil que tem esse potencial, tem crescido inclusive com as políticas internas de distribuição de renda, aumento de salário mínimo. E nesse processo político é importante a integração regional, porque garante mais governabilidade pela proximidade com países mais similares do quais tem maior tradição de relação e negociação. Estas alternativas seriam as de menor risco. Quanto mais longe colocar seus horizontes, mais estará aumentando seu risco nesse momento de crise internacional e quanto maior a dependência do mercado externo também maior o risco.

Sul21 – Conquistas dos trabalhadores com valorização do salário mínimo nos últimos anos, como a valorização do salário mínimo, podem estar em risco diante desse quadro de crise?

Adhemar Mineiro - Espero que não, até porque essa foi nossa saída em relação à crise de 2008. A aposta forte no mercado interno, seja com valorização de salário mínimo, seja com crédito ao consumo popular, programas de transferência de renda e investimentos públicos em infra-estrutura foram o que garantiram voltar a crescer em 2010 fortemente. Essa é a melhor vacina frente à possibilidade de crise internacional. Contar com o mercado interno com motor de crescimento é uma saída importante e deste ponto de vista o que é a nossa fraqueza, o fato de ter uma renda concentrada, o fato de que a infra-estrutura é muito ruim, etc pode ser exatamente o nosso potencial de crescer distribuindo renda. Cada real que você dá para o trabalhador mais pobre vira consumo imediatamente, esse trabalhador não tem a opção de poupar. Então você ativa a economia por aí com toda a montagem, reciclagem e melhoria da estrutura brasileira, seja de saneamento, habitação, transporte… Tudo isso cria um ambiente que são necessários investimentos que podem potencializar o crescimento.
“Em um mês se paga a Taxa Selic de um ano. E isso mina a capacidade de continuar expandindo crédito”
Sul21 – E a oferta e expansão de crédito com taxas de juros muito altas podem representar problema para população brasileira?
Adhemar Mineiro - Está mais relacionado com o fato de que ainda se opera com taxas de juros muito altas, e essas sim podem sufocar os consumidores. Porque os níveis de endividamento no Brasil ainda são menores do que se tem nos principais países do mundo. Em vários países é o total da renda, em alguns é mais do que o total da renda. Na verdade o capitalismo sempre cresceu expandindo crédito: se for esperar poupar do seu salário para comprar um casa, um carro, não compra nunca, a não ser os muito ricos. Para as empresas a mesma coisa, se for esperar acumular lucros para montar o investimento necessário para uma nova fábrica, também não vai conseguir. Crédito sempre foi o grande motor do capitalismo, partindo inclusive do primeiro crédito que é dado pelo trabalhador a empresa, ele trabalha um mês até receber o seu salário. Esse sempre foi um mecanismo de funcionamento do sistema. O que complica no caso brasileiro são os juros e spreads bancários muito altos, que às vezes tornam as dividas muito pesadas. Até o momento se contornou isso. Parece que o consumidor brasileiro é mais sensível ao prazo do pagamento, se a parcela vai caber dentro do seu orçamento do que tentar visualizar o montante de juros que está pagando. Agora evidentemente isso tem fôlego curto: no momento seguinte os juros têm que cair.
"O capitalismo sempre cresceu expandindo crédito: se for esperar poupar do seu salário para comprar um casa, um carro, não compra nunca, a não ser os muito ricos" | Foto: Leo Caobelli/Flickr

Sul21 – A tendência é de redução de juros?

Adhemar Mineiro – Essa é uma boa discussão. O Ministério da Fazenda aposta nisso, mas o Banco Central (BC) está dizendo que não se deve contar com isso, que o processo de reduzir taxas de juros tem muitos limites. Essa é uma questão que teremos que discutir como um todo, não só a taxa básica do BC, mas também os spreads cobradas pelos bancos privados que fazem com que os juros do cartão de crédito sejam altos. Por exemplo, em um mês se paga a Taxa Selic de um ano. E isso mina a capacidade de continuar expandindo crédito e inclusive do sistema bancário privado de financiar investimento. Na verdade, o investimento brasileiro é financiado pelas próprias empresas ou pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Essa é uma discussão importante que tem que se fazer, de como se reforma o sistema financeiro de modo que as taxas de juros caiam. E não é uma discussão simples.

Sul21 – E pra finalizar, essa é uma crise da dívida pública na Europa. Em que patamar esta o endividamento brasileiro?

Adhemar Mineiro - No Brasil, a dívida pública tem até caído. O Banco Central, já há alguns anos, tem feito uma política aparentemente bastante consistente de reduzir a dívida pública, em proporção ao PIB, inclusive mais que o crescimento do PIB, e alterar o perfil da dívida pública, desvinculando de moeda estrangeira e tentando reduzir aplicações de baixo e curto prazo. O grande problema é que, se não muda os mecanismos da liberalização financeira e dessa possibilidade de que os capitais internacionais especulem contra o país, essa situação de redução da dívida pública não é uma garantia em nenhum momento. Um exemplo é a Irlanda, que vinha num processo de redução de uma dívida que era em torno de 100% do PIB e essa dívida caiu a 30% do PIB em 2007. Em 2008, 2009, depois dos programas de salvamento, depois de um ano, voltou para dívida de 100% do PIB. Então a redução proporcional da dívida pública em relação ao PIB por si só não garante nada. Porque por conta da não regulação os países continuam expostos, como é o caso do Brasil, a uma vulnerabilidade externa grande. Um exemplo disso é que o movimento da primeira semana do ano, nos primeiros dez dias de 2012, apresentou uma saída de dólares de quase U$ 800 milhões. Isso provavelmente é dinheiro que está saindo dos fundos de aplicação das empresas aqui para tentar salvar suas matrizes na Europa. Enquanto não discutir e mudar os mecanismos da liberação financeira, isso vai continuar exposto. Apesar de que, se olhar hoje para a dívida e o déficit está sob controle, o déficit público brasileiro é menor do que na Alemanha, o nível de reservas está alto como nunca esteve na história. Cada indicador isoladamente é verdadeiro. Obviamente se está numa situação geral mais confortável do que esteve em vários outros momentos da história, mas isso não garante que face a uma crise de grandes proporções, uma nova crise aguda como teve em 2008, esses elementos da liberalização e da vulnerabilidade externa não possam fazer com que o país seja fortemente afetado pela crise apesar de estar em uma situação mais confortável.

domingo, 22 de janeiro de 2012

“Só protestar simbolicamente não é suficiente”, afirma Tariq Ali


O escritor analisa as movimentações políticas que sacodem a conjuntura internacional



Heloisa Gimenez, Marcio Rabat e Vinicius Mansur,BRASILdeFATO
de Brasília (DF)


Tariq Ali - Foto: Reprodução
Com uma fala tranquila, tão simples quanto ampla, o paquistanês Tariq Ali domina como poucos os processos políticos, em escala planetária, que colocam a ordem contra a parede. Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, seu olhar analítico percorreu a Primavera Árabe, dividiu as mobilizações nos países desenvolvidos – EUA e Europa – entre simbólicas e massivas, valorou a América do Sul como o processo mais radical até agora – dentro do capitalismo – e ponderou as possibilidades de transição sistêmica no continente, além de buscar conexões da luta global contra o capitalismo. Confira a entrevista.

Brasil de Fato – Em uma entrevista recente, o senhor disse que, diferentemente da resistência na América do Sul durante o final do século 20 e começo do 21, os países da chamada “Primavera Árabe” não produziram organizações políticas. Então, quais são as forças políticas que devem emergir nesses países com a queda dos governos? Há semelhanças entre elas?
Tariq Ali – Aqui na América do Sul tivemos movimentos sociais conectando-se, criando novos movimentos políticos, organizações políticas, disputando eleições e chegando ao poder – isso é o importante e completamente novo: tomar o poder a partir do sistema democrático eleitoral. No mundo árabe tivemos grandes levantamentos, mas não produziram uma nova formação política. Na Tunísia e no Egito ocorreu que as organizações políticas que haviam sido reprimidas voltaram a aparecer, principalmente, as islamistas. Então, os novos personagens, os jovens que criaram os movimentos agora, ficaram sem voz política. A escala dos movimentos foi imensa, mas não produziram nada e, por isso, o exército no Egito pode tomar o poder novamente.
Na Tunísia os islamistas ganharam as eleições. Agora, existe um grande equívoco sobre esses partidos. As pessoas automaticamente pensam em terroristas, extremistas, fundamentalistas, mas esses partidos islamistas são religiosos, socialmente conservadores, como os democratas cristãos da Europa e os partidos dominados pela Igreja Católica em outros lugares do mundo. É muito importante pôr isso em perspectiva. Os partidos apoiados por luteranos e católicos existem em diferentes lugares do mundo ocidental e são aceitos, mas quando os islamistas são eleitos, todo o mundo fica nervoso. Eu não concordo com esses partidos, mas há que se aceitar seu direito a ganhar eleições e que as pessoas aprendam através de suas próprias experiências.
No Egito, se são feitas eleições livres, é provável que a Irmandade [Muçulmana] ganhe. Calculo que tenham aproximadamente 40% do eleitorado, ou seja, podem formar um governo se o exército e os EUA permitirem. Se houver mudanças na Síria, algo similar acontecerá.
É importante entender a razão disso. De 1976 a 1989/90, a esquerda e os nacionalistas foram erradicados do mundo árabe pelos estadunidenses, em aliança com os islamistas – estes sim, islamistas duros. Então, existe um vazio e novos tipos de grupos islamistas estão surgindo. No Egito e na Tunísia, a esquerda está tentando organizar novos movimentos, partidos e esperemos que tenham êxito, mas até agora não tem forças, são pequenos, assim como em todo o mundo árabe.

O que há de comum entre os levantamentos e as mobilizações recentes da Europa e EUA, além de serem contemporâneos?
Há dois movimentos diferentes. Um são os movimentos nos EUA e Reino Unido, que são essencialmente movimentos de protesto simbólico, ocupando espaços públicos e se mantêm só nisso. Mas são muito importantes porque, ao menos, algo está acontecendo, são movimentos em uma etapa muito embrionária, pequenos, principalmente de jovens, às vezes alguns sindicalistas, e esse é seu alcance, simbólico. Não sabemos o que acontecerá com eles. Os EUA são imensos como o Brasil, não é tão fácil organizar- se, e, na minha opinião – e isso eu disse à ocupação em Oakland –, é extremadamente importante convocar uma assembleia popular de todos os movimentos para discutir como avançar. Do contrário, se diluirão, esse é meu temor.
Outro tipo de movimento está na Espanha e Grécia, que foram movimentos imensos, não somente protestos simbólicos. Na Espanha houve imensas ocupações em Madri, Barcelona e outras cidades, mas que não formularam uma carta ou programa ainda que de limitadas exigências. É evidente que o pensam, mas não o codificaram, não o puseram num plano que pudesse unir as pessoas por um longo tempo. Por isso, apesar dos imensos movimentos, tivemos na Espanha a vitória da direita nas eleições, os movimentos não participaram da política porque dizem que “a política é suja, asquerosa, manchada”. Isso é um problema porque ou se faz uma revolução – que não é possível neste momento – ou se intervém no sistema político, tal como está, como na América do Sul, e tenta-se mudá-lo com novas constituições ou seja lá o que for. Não fizeram, e a Espanha é um grande fracasso.
Na Grécia houve seis greves gerais, movimentos massivos, mas nada de resultados, e o país está entregue aos banqueiros, literalmente. Um banqueiro foi nomeado para dirigir o país, de Papandreou a Papademos. Esse é um acontecimento interessante na Europa: os partidos políticos tradicionais já não podem dirigir o sistema. Então, agora são uma colônia da União Europeia e os alemães e estadunidenses são quem decide: “Tudo bem, tomem o governo porque não confiamos neles”. Isso é o que chamo de ditadura do capital que, de distintas formas, é o “extremo centro”, composto pela centro-esquerda e centro-direita, onde não importa quem está no poder, fazem exatamente as mesmas coisas. Contra eles é preciso uma resposta política, caso contrário, os movimentos poderão ser esmagados. Na minha opinião, era possível que os movimentos na Grécia tomassem uma cidade. Eu disse a eles: “Tomem Tessalônica! Simplesmente tomem! Capturem! Se a presença das massas é imensa, os militares não vão intervir. Convoquem uma assembleia popular, tenham delegados de todas as áreas e elaborem um programa para toda a Grécia e isso inspirará o mundo”.


Egípcios reunidos na praça Tahrir, no Cairo - Foto: Reprodução
Mas eles têm suficiente organização para isso?
Esse é o problema, poderiam ter feito. Creio que se houvesse 500 ou 600 pessoas pensando com clareza… Na Grécia há a combinação de mobilizações massivas e grupos escleróticos, atrofiados na esquerda. O Partido Comunista do Exterior, o Partido Comunista do Interior, cinco dezenas de grupos trotskistas que sequer podem se unir entre si, muito menos oferecer liderança às massas.

E o que há de comum entre os movimentos dos EUA e da Europa e os da Primavera Árabe?
A crise de 2008, do sistema Wall Street, ou seja, do neoliberalismo, contra o qual os políticos não são capazes de lidar por causa do “extremo centro”. Temos uma crise imensa e eles não fazem nada para desafiar a vigência do neoliberalismo e capitalismo; seguem implementando as mesmas políticas. Até economistas burgueses tradicionais os advertem que assim não se resolverão os problemas, mas eles temem fazer mudanças e abrir espaço para mais disputas.

Mas não é essa nossa esperança?
Sim, e sou otimista. Agora temos que dizer: só protestar simbolicamente não é sufi ciente. Eles [neoliberais] estão plenamente confiantes de que não existe uma alternativa a eles. Não importam os movimentos de massas. Virão e passarão e, caso se tornem muito perigosos, podem ser esmagados. A menos que haja uma crise terminal do capitalismo, os neoliberais sempre se recuperarão. Por isso que muita gente no mundo tem esperanças verdadeiras de que algo diferente possa sair da América do Sul.

O rompimento com o capitalismo não se dá porque não há vontade popular ou porque não temos uma alternativa?
Acho que temos uma alternativa, mas as pessoas ainda continuam um pouco traumatizadas pela queda da União Soviética e pela vitória do capitalismo na China. Isso fez com que muita, muita gente, tenha medo de propor alternativas. Acho que isso acabará, mas necessitamos um ou dois grandes êxitos em algum lugar para mostrar que é possível construir um mundo e uma economia que se desfaça completamente do capitalismo. Isso não aconteceu ainda. Independentemente da solidariedade com os processos da Bolívia, Venezuela e Equador, o capital permanece. E esse é o perigo para esses processos. A situação na América do Sul é de transição, podendo ir além, num bom caminho, ou retroceder, temos que estar conscientes disso.
Se olhamos objetivamente, o mundo está pedindo a gritos um sistema diferente. Essa é a imensa tragédia e a contradição em todos os níveis: na economia, nas condições de vida durante os últimos 20 anos, o tamanho da classe trabalhadora mundial, que dizem que desapareceu, na verdade passou de 1,6 bilhão nos anos de 1980 para mais de 3 bilhões agora, com a entrada do capitalismo na China, na Rússia, a expansão na Índia e até no Brasil. A classe trabalhadora mundial é imensa, mas está muito reprimida na China, na Rússia, mas está aí.
Em segundo lugar, agora está claro que a maneira como funciona o capitalismo degrada a ecologia do mundo e o clima. Qual é a solução? A economia planejada, global ou regional, onde exista grande colaboração e planejamento para salvar o planeta da devastação do capitalismo: temos que fazer isso, isso e isso. Não produziremos mais automóveis, tentaremos tirá-los de uso – não completamente: deixaremos que sejam usados para longas viagens, não dentro das cidades (nelas, teremos um sistema de transporte público). Mas os políticos não estão pensando assim, não podem nem começar a fazê-lo. Então, a necessidade objetiva do socialismo é muito forte, mas não acontece. Esses políticos e a elite capitalista que se une contra a classe trabalhadora global e os movimentos sociais não são capazes de salvar o planeta porque necessitam maximizar os vultuosos lucros, usar o dinheiro para fazer mais dinheiro. Isso é o que os determina e o que os explodirá em algum momento.


Manifestantes ocupam o Zuccotti Park, em Nova York - Foto: Reprodução
Após mais de uma década das mudanças na América Latina, quais são os resultados?
Varia de país a país, mas há um padrão que provavelmente é o mesmo. Foi extremamente importante esses movimentos tomarem o poder em eleições democráticas, derrubando um dos pilares do Ocidente, que dizia que todos esses grupos que querem mudanças são antidemocráticos. Isso foi um impacto tremendo que não se deve subestimar. As vitórias eleitorais sucessivas de Chávez na Venezuela são extremamente importantes. Primeiro, é um líder muito valente, sem medo de dizer o que pensa diante dos EUA, o que é raro. Segundo, o fato de o maior produtor de petróleo da América se mover à esquerda é um grande atraso para os EUA e é um erro pensar que eles se renderam. Andaram e ainda estão ocupados com o Oriente Médio, mas começaram a atuar novamente aqui. Em Honduras, o Esquadrão da Morte voltou ao poder; usaram colombianos com regularidade para desestabilizar a Venezuela, puseram cada vez mais pressão sobre o Brasil para que intervenha a favor de seus interesses no continente.
Hoje, pela primeira vez na história da América, não há embaixadores dos EUA na Venezuela, Bolívia e Equador. Isso reflete algo.
O PT chegou ao poder depois de uma decisão muito consciente – não foi por acidente – de não desafiar o sistema neoliberal. Não o fizeram e é por isso que por muitos anos a imprensa financeira, como o Financial Times, The Economist, dizia que existia na América do Sul o modelo bom, o Brasil, e o mau, os bolivarianos. O Brasil é o ornitorrinco descrito por Francisco de Oliveira: manteve, em nível econômico, o modelo neoliberal – Palocci era um grande –, mas em assuntos externos mudou. Disseram aos EUA: “já não faremos o que querem”, e as tentativas muito fortes de dividir Lula e Chávez foram neutralizadas. Talvez seja somente simbólico, mas foi muito importante.

Então, qual é o balanço?
É misto. Isso é um problema, mas é o mundo em que vivemos. Vemos reformas sociais, tentativas de mobilizar desde baixo, envolver esses setores, fazê- los participar no funcionamento do sistema e isso é muito positivo. Vimos imensas quantidades de dinheiro postas a disposição. Mas o fato de que o capitalismo exista com todas suas contradições também significa que não se pode lidar com o país como um todo. Qual é a causa do nível de inseguridade na Venezuela? Se houve uma verdadeira melhora das condições de vida dos pobres, por que ela acontece? É puramente interno ou parte é promovida pela intervenção colombiana para criar instabilidade? Provavelmente um pouco dos dois. Na Bolívia também houve avanços e problemas, que recentemente explodiram num confronto entre o povo e o governo, resultado da intervenção econômica de uma empresa brasileira. Portanto, são problemas que permanecem conosco e acho que a única solução em médio prazo é os governos fortalecerem e institucionalizarem estruturas desde baixo. Assim, ainda que derrotados, a estrutura se mantém alternativa ao parlamento existente e o progresso conquistado não poderá ser totalmente revertido, porque, se tentar reverter as reformas, a direita sofrerá um tremendo levante.
Então, penso que é uma situação mista. Para o resto do mundo, o que aconteceu na América do Sul é o experimento mais radical até agora – dentro do capitalismo, de acordo –, mas muito radical, porque o mundo nos disse que o Estado não deve fazer nada, o que é muito irônico agora, quando há uma tremenda crise e é preciso recorrer ao Estado.

O senhor acredita que o Brasil está promovendo um novo tipo de imperialismo?
Nos anos de 1970, tivemos este grande debate sobre se os poderes regionais poderiam chegar a ser subimpérios. Ironicamente, Cardoso [FHC] escreveu sobre isso, quando era de esquerda, na nossa revista New Left Review. Eu acho um problema, essas são as contradições do Brasil. Se fosse um governo de direita, não haveria contradições. O governo do PT permitiu que a indústria privada se metesse em sua indústria petroleira, fomentou investimentos de corporações ocidentais no Brasil e, logo, essa é sua própria lógica para operar em outros países do continente, sem ver que esses investimentos são vistos pelas pessoas desses outros países como um tipo de exploração.
É muito comparável com a Índia em partes da Ásia. Essa é a maneira como funciona o capitalismo, a menos que tenha um Estado que o controle. Todos esses projetos deveriam ser um corpo comum das repúblicas sul-americanas. O governo brasileiro provavelmente dirá: “Não depende de nós, é o capital”. Mas depende deles, sim. Eles podem controlar o capital se quiserem.


Manifestação de indígenas em La Paz - Foto: ABI
O senhor acha importante e possível um diálogo entre os processos sul-americanos e árabes?
É muito importante que ocorra. Mas os levantamentos árabes ainda não estabeleceram vínculos entre eles mesmos. Os Estados estão colaborando entre si, os movimentos estabelecem vínculos apenas episódicos, com alguns indivíduos. É extremamente importante mostrar alo que se fez na América do Sul. Quando estamos aqui, pensamos que não é suficiente, mas comparado ao que aconteceu no mundo árabe, é enorme. Quando Chávez visitou o mundo árabe há uns cinco ou seis anos e a Al-Jazeera o entrevistou por uma hora, foi a entrevista mais popular que haviam feito até então. Porque ele falou sobre o programa social da Venezuela, como estavam utilizando os recursos do petróleo e os árabes escutando- o se diziam: “Meu Deus, por que não aqui?”. O diretor da Al-Jazeera me disse que receberam mais e-mails sobre essa entrevista do que sobre qualquer outra coisa que já transmitiram. Dezenas de milhares de e-mails que perguntavam, de diferentes maneiras: “quando o mundo árabe vai produzir um Chávez?”.

E qual é a imagem do Brasil no Oriente Médio?
Não creio que o Brasil tenha uma imagem. As pessoas pensam, desafortunadamente, em outros continentes neste momento. A Venezuela é uma exceção. Chávez, basicamente, pôs a Venezuela no cenário mundial. É o único país sulamericano que de verdade é bem conhecido, pelo programa bolivariano. Não creio que o Brasil tenha uma imagem, boa ou má.

O Fórum Social Mundial (FSM) estabeleceu um diálogo entre organizações políticas de todo o mundo e o senhor participou bastante disso. O FSM poderia ser um espaço de encontro desses levantamentos hoje?
Não estou tão convencido disso porque, quando o FSM começou, era extremamente importante, era a primeira vez, desde o grande triunfo do capitalismo, que as pessoas de todo mundo que pensavam que era preciso outra coisa começaram a se encontrar para dizer uns aos outros: “Oi! Você ainda está aqui! Que bom!”. Nesses anos existiam movimentos sociais grandíssimos, que podiam ser reconhecidos, que tinham representantes identificáveis. Tínhamos movimentos e ONGs, com contradições entre eles em alguns casos. As ONGs, por sua natureza, são obrigadas por seus patrocinadores a não serem políticas e se concentrarem em um tema, como una fábrica em particular em um país em particular. Como resposta aos problemas do mundo isso não é sufi ciente. Muitas ONGs na Ásia e no mundo árabe foram advertidas por seus patrocinadores para não se oporem à guerra no Iraque. Então, agora, com os movimentos sociais debilitados e com as ONGs dominado totalmente o FSM, acho que ele não é tão relevante. Deixei de ir aos FSMs nos últimos anos. Os de Porto Alegre foram muito importantes, mas os que se levaram a cabo agora... converteram- se em uma espécie de simbolismo. Nada é feito. Só te faz sentir bem por dois ou três dias. E agora tampouco te faz se sentir tão bem. Muita gente pobre não pôde chegar aos fóruns organizados na África porque eram muito caros. Seus organizadores têm que se perguntar: “Para que estamos organizando isso? Qual é o objetivo do FSM?” Porque o mundo mudou desde os primeiros fóruns, para melhor em alguns casos, e creio que o mais importante agora é o fortalecimento regional, unir as forças progressistas na América do Sul, unir as forças progressistas no mundo árabe, unir as forças progressistas na Europa contra os banqueiros e a burocracia que não foi eleita. Nisso que acho que devemos nos concentrar. E com as novas iniciativas estadunidenses, é muito importante criar um movimento de oposição na região do Pacífico.

Escritor e cineasta, Tariq Ali, 68, é paquistanês radicado na Inglaterra desde a juventude, onde cursou Ciências Políticas e Filosofia na Universidade de Oxford. Escreveu mais de duas dezenas de livros sobre história mundial e política e sete novelas. É editor da revista New Left Review, assessor da Telesul e articulista frequente em jornais como The Guardian e The Independent.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Televisão: fábrica de mais-valia ideológica

Elaine Tavares no PALAVRAS INSURGENTES

A televisão é uma usina ideológica. Gera milhares de megawatts de ideologia a cada programa, por mais inocente que pareça ser. E ideologia como definiu Marx: encobrimento da realidade, engano, ilusão, falsa consciência. Então, se considerarmos que a maioria da população latino-americana, aí incluída a brasileira, se informa e se forma através desse veículo, pensá-la e analisá-la deveria ser tarefa intelectual de todo aquele que pensa o mundo. Afinal, como bem afirma Chomsky, no seu clássico “Os Guardiões da Liberdade”, os meios atuam como sistema de transmissão de mensagens e símbolos para o cidadão médio. “Sua função é de divertir, entreter e informar, assim como inculcar nos indivíduos os valores, crenças e códigos de comportamento que lhes farão integrar-se nas estruturas institucionais da sociedade”. Não é sem razão que bordões, modas e gírias penetram nas gentes de tal forma que a reprodução é imediata e sistemática.

Um termômetro dessa usina é a famosa “novela das oito”, que consolidou um lugar no imaginário popular desde os anos 60, com a extinta Tupi, foi recuperado com maestria pela Globo e vem se repetindo nos demais canais. O horário nobre é usado pela teledramaturgia para repassar os valores que interessam à classe dominante, funcionando como uma sistemática propaganda que visa a manutenção do estado de coisas. É clássica, nos folhetins, a eterna disputa entre o bem e o mal, o pobre e o rico, com clara vinculação entre o bem e o rico. Sempre há um empresário bondoso, uma empresária generosa, um fazendeiro de grande coração, que são os protagonistas. E, se a figura principal começa a novela como pobre é certo que, por sua natural bondade, chegará ao final como uma pessoa rica e bem sucedida, porque o que fica implícito que o bem está colado à riqueza, vide a Griselda de Fina Estampa, a novela da vez.

Outro elemento bastante comum nas novelas é o da beleza da submissão. Como os protagonistas são sempre pessoas ricas, eles estão obviamente cercados dos serviçais, que, no mais das vezes os amam e são muito “bem-tratados” pelos patrões. Logo, por conta disso, agem como fiéis cães de guarda. Um desses exemplos pode ser visto atualmente na novela global. É o empregado-amigo (?) da vilã Tereza Cristina. Ele atua na casa da milionária como um mordomo, cúmplice, saco de pancadas, dependendo do humor da mulher. Ora ela lhe conta os dramas, ora lhe bate na cara, ora lhe ameaça tirar tudo o que já lhe deu. E ele, premido pela necessidade, suporta tudo, lambendo-lhe as mãos como um cachorrinho amestrado. Tudo é tão sutil que não há quem não se sinta encantado pelo personagem. Ele provoca o riso e a condescendência, até porque ainda é retratado de forma caricata como um homossexual cheio de maneios, trejeitos e extremamente servil.

Mas, se o servilismo de Crô pode ser questionado pela profunda afetação, outros há que aparecem ainda mais sutis. É o caso da turma da praia que, na pobreza, hostilizava Griselda e, agora, depois que ela ficou rica, passou para o seu lado, vindo inclusive trabalhar com a faz-tudo, assumindo de imediato a postura de defensores e amigos fiéis. Ou ainda a relação dos demais trabalhadores com os patrões “bonzinhos”, como é o caso do Paulo, o Juan, o homem da barraquinha de sucos, e o Renê. Todos são “amigos” e fazem os maiores sacrifícios pelos patrões, reforçando a ideia de que é possível existir essa linda conciliação de classe na vida real. O grupo que atua com o cozinheiro Renê, por exemplo, foi demitido pela vilã, não recebeu os salários, viveu de brisa por um tempo e retomou o trabalho com o antigo chefe por pura bem-querença. Coisa de chorar.

Nesses folhetins também os preconceitos que interessam aos dominantes acabam reforçados sob a faceta de “promoção da democracia”. O negro já não aparece apenas como bandido, mas segue sendo subalterno. No geral faz parte do núcleo pobre, mas é generoso e sabe qual é o “seu lugar”. É o caso do ético funcionário da loja de motos. Um bom rapaz, que, no máximo, pode chegar a gerente da loja. As pessoas que discutem uma forma alternativa de viver aparecem como gente “sem-noção”, no mais das vezes caricaturada, como é o caso da garota que prevê o futuro, a mulher negra que era bruxa, o rapaz que brinca com fogo ou os donos da pousada que em nada se diferem de empresários comuns, a não ser nas roupas exotéricas. Ou o personagem do Zé Mayer, numa antiga novela, que via discos voadores, não aceitava vender suas terras e, no final, “fica bom”, entregando sua propriedade para a empresária boazinha que era dona de uma papeleira. Os homossexuais também encontram espaço nas novelas, dentro da lógica da “democratização”, mas continuam sendo retratados de forma folclórica, como é o caso do Crô, na novela das oito, ou do transexual da novela das sete. Já o índio, como é invisível na vida real, tampouco tem vez nas tramas novelistas e quando tem, como a novela protagonizada por Cléo Pires, vem de forma folclórica e desconectada da vida real. E assim vai...

Gente há que fica indignada com os modelos que as telenovelas reproduzem ano após ano, mas essa é realidade real. Os folhetins nada mais fazem do que reforçar as relações de produção consolidadas pelo sistema capitalista. Até porque são financiados pelo capital, fazendo acontecer aquilo que Ludovico Silva chama de “mais-valia ideológica”. Ou seja, a pessoa que está em casa a desfrutar de uma novela, na verdade segue muito bem atada ao sistema de produção dessa sociedade, consumindo não só os produtos que desfilam sob seu olhar atento, enquanto aguardam o programa favorito, mas também os valores que confirmam e afirmam a sociedade atual. Prisioneira, a pessoa permanece em estado de “produção”, sempre a serviço da classe dominante. Assim, diante da TV – e sem um olhar crítico - as pessoas não descansam, nem desfrutam.

É certo que a televisão e os grandes meios não definem as coisas de forma automática. Como bem já explicou Adelmo Genro, na sua teoria marxista do jornalismo, os meios de comunicação também carregam dentro deles a contradição e vez ou outra isso se explicita, abrindo chance para a visão crítica. Momentos há em que os estereótipos aparecem de maneira tão ridícula que provocam o contrário do que se pretendia ou personagens adquirem tanta força que provocam um explodir da consciência. E, nesses lampejos, as pessoas vão fazendo as análises e podem refletir criticamente. Mas, de qualquer forma, esses momentos não são frequentes nem sistemáticos, o que só confirma a função de fabricação de consenso que é reservada aos meios. Um caso interessante é o do transexual que está sendo retratado na novela da Record, que passa às dez horas. “Dona Augusta” é nascida homem e se faz mulher, sem a folclorização do que é retratado na Globo. É “descoberta” pelo filho que a interna como louca. Toda a discussão do tema é muito bem feita pelos autores, sem estereótipos, sem falsa moral. Mas, é a TV dos bispos evangélicos, que, por sua vez, na vida real pregam a homossexualidade como “doença”. São as contradições.


De qualquer sorte, a teledramaturgia brasileira deveria ser bem melhor acompanhada pelos sindicatos e movimentos sociais. E cada um dos personagens deveria ser analisado naquilo que carrega de ideologia. Não para ensinar aos que “não sabem”, mas para dialogar com aqueles que acabam capturados pelo véu do engano. Assim como se deve falar do que silencia nos meios, o que não aparece, o que não se explicita, também é necessário discutir sobre o que é inculcado, dia após dia, como a melhor maneira de se viver. Pois é nesse entremeio de coisas ditas, malditas e não ditas, que o sistema segue fabricando o consenso, sempre a favor da classe dominante.

Barão de Itararé, ALAI e ALER realizam debate sobre comunicação no FSM:


Resistência à crise, novos meios e alternativas de comunicação

Renata Mielli

O cenário de crise econômica mundial, que abala países da Europa e os Estados Unidos, tem contribuído para o surgimento de uma nova correlação de forças internacional. Emergem protestos contra o mercado financeiro e governos que adotam medidas restritivas e de desmantelamento dos direitos sociais e dos trabalhadores. Ocupe Wall Street, os Indignados, revoltas contra governos como na Primavera Árabe, tiveram nas redes sociais ponto essencial de apoio e disseminação das mobilizações.
 
Na América Latina, uma agenda de mudanças políticas está em curso em diversos países, fruto da luta anti-neoliberal que ocorreu na década de 1990. Nesta pauta de mudanças, o tema da democratização da comunicação e da integração regional tem tido caráter estratégico.
 
Os movimentos sociais têm impulsionado a luta pelo direito à comunicação como fator indissociável do aprofundamento das democracias. Nesta luta, a universalização do acesso à internet, o incentivo às novas mídias como blogs, redes sociais e instrumentos de comunicação alternativa compõem um desafio para atingir cada vez mais pessoas e constituir contraponto ao poder midiático exercido pelos meios de comunicação hegemônicos.
 
Neste cenário de resistência social, impulsionado pelos movimentos sociais e novas mídias é o tema da mesa de diálogo Resistência à crise, novos meios e alternativas de comunicação, organizado pelo Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, em parceria com a ALAI – Agência Latinoamericana de Informação e ALER – Associação Latinoamericana de Educação Radiofônica, durante o FSM temático 2012, em Porto Alegre (24-29 de Janeiro).
 
Farão as intervenções inicias da mesa, a coordenadora geral do FNDC (Fórum Nacional pelo Democratização da Comunicação) Rosane Bertoti, Oswaldo León (ALAI) e Judith Gerbaldo (ALER).
 
- Renata Mielli, Barão de Itararé.
 
* O debate acontecerá no dia 25 de janeiro, às 13 horas.  UFRGS  - Faculdade de Direito (Av. Paulo Gama 110, Bairro Farroupilha, Porto Alegre).


http://www.alainet.org/active/52205

Internet, o novo front da resistência palestina contra o sionismo


As páginas da bolsa de valores e do governo de Israel foram os alvos


Baby Siqueira Abrão, para o BRASILdeFATO
Correspondente no Oriente Médio

Eram 10 horas da manhã de segunda-feira, 16 de janeiro, quando dois portais importantes de Israel saíram do ar: o da bolsa de valores de Tel Aviv (Tel Aviv Stock Exchange, TASE) funcionava apenas parcialmente, antes de fechar de vez, e o da companhia aérea El Al, israelense, estava inacessível. Não foi por falta de aviso. No domingo, um grupo de hackers autodenominado “Pesadelo” ameaçou atacar ambos os portais. Dito e feito.
Um porta-voz da bolsa de valores israelense declarou que as operações financeiras não foram afetadas, uma vez que não estão conectadas ao portal. Já a El Al disse que esse tipo de ataque “já era esperado” e anunciou a tomada de medidas de segurança nas operações do site, segundo informou o jornalista Oded Yaron, do diário israelense Haaretz.
O ataque ocorre um dia depois de o Hamas, partido palestino que governa Gaza, parabenizar os piratas que andam invadindo sites israelenses e incentivar a prática. Em comunicado oficial, o porta-voz Sami Abu Zuhri declarou, numa coletiva de imprensa na faixa costeira palestina, que as invasões são “a abertura de um novo campo de resistência, a eletrônica, e o início de uma guerra virtual contra a ocupação que Israel impõe à Palestina".
Zuhri fez um apelo "aos povos palestino e árabe para que continuem com a guerra eletrônica, buscando maneiras de estimulá-la e desenvolvê-la".
O comunicado foi feito três dias depois de um grupo de ativistas de Gaza ter conseguido entrar no sistema eletrônico do serviço de resgate e combate ao fogo de Israel. Eles substituíram a página oficial por uma foto de Danny Ayalon, vice-ministro israelense das Relações Exteriores, cobriram seu rosto com pegadas e acrescentaram a frase “Morte a Israel”.
Depois que o grupo Anonymous invadiu o site do exército israelense, no final de 2011 – notícia pouco divulgada e não confirmada por fontes oficiais, que alegaram “problemas técnicos” para justificar o fato de o portal ter saído do ar –, outros hackers parecem ter se animado com a ideia. Desde o início de 2012, sites de bancos e instituições financeiras de Israel vêm sendo visitados por piratas eletrônicos que se identificam como moradores de países árabes.
No início do ano, hackers autodenominados Group XP invadiram um portal israelense de venda de produtos esportivos, www.one.co.il, capturando e divulgando os dados dos cartões de crédito de milhares de clientes. Nome, endereço, telefone e número da carteira de identidade dos titulares dos cartões foram publicados na internet, em dias intercalados, por dois hackers, que usam o codinome “Ox-Omar” e “X”, declaram-se sauditas e garantem ter informações pessoais de 1 milhão de usuários de cartões de crédito em Israel.
Enquanto bancos e operadoras procuravam minimizar o problema e suspender as operações com os cartões pirateados, o vice-ministro Danny Ayalon vinha a público dizer que os ataques constituíam “uma violação à soberania israelense”, que eram comparáveis a “atos terroristas” e que seriam tratados como tais.
A resposta veio de imediato: o Group XP tirou do ar a página eletrônica do vice-ministro e prometeu intensificar a ciberguerra contra Israel, “pelos crimes cometidos contra o povo palestino”. Os hackers X e Ox-Omar desafiaram Ayalon em público: “Vocês nunca vão nos encontrar”.
Danny Ayalon é o segundo homem do ministério comandado por Avigdor Lieberman, um dos líderes da extrema-direita israelense e fundador do partido ultranacionalista Yisrael Beitenu. Lieberman, cuja posição contra a constituição do Estado da Palestina é bem conhecida, mora numa colônia ilegal construída por Israel em terras confiscadas ao povo palestino.

E a força-tarefa?

Os ataques tornam patente uma verdade que o governo israelense não quer assumir: a força-tarefa contra ciberataques, anunciada em maio de 2011 pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, e que devia ter começado a operar na primeira semana de 2012, não existe. Oficialmente, o governo declara que cuidar de cartões de crédito e de interesses privados não é o objetivo do grupo, e que Eviatar Matanya, o diretor de operações, já iniciou o trabalho de “criar e estruturar” a força-tarefa. Mas recusa-se, “por razões de segurança”, a revelar a verba destinada a estruturá-la.
Na verdade, de acordo com uma fonte não oficial ligada às forças de segurança israelenses, essa verba também não existe. A força-tarefa não conta com “verba, pessoal, jurisdição nem com seu diretor de operações predileto [o general da reserva Yair Cohen, ex-chefe da central militar de inteligência], que se recusou a aceitar o posto ao saber que não teria recursos para o trabalho”, escreveu Anshel Pfeffer, jornalista do Haaretz, em 4 de janeiro, dia em que o grupo deveria ter iniciado suas atividades.
No lançamento do programa, há oito meses, Netanyhau declarou, numa entrevista coletiva à mídia, que aceitara as recomendações de uma equipe de oito especialistas, capitaneados pelo general da reserva Isaac Ben-Israel, para formar um grupo de defesa contra ciberataques “que podem paralisar os sistemas que mantêm o país em funcionamento. Eletricidade, cartões de crédito, água, transportes, semáforos, tudo é computadorizado e portanto suscetível a ataques”. Repare o leitor que o primeiro-ministro incluiu os cartões de crédito na relação de sistemas a receber atenção da força-tarefa.
A mesma fonte não oficial afirma que, embora a necessidade da criação do cibergrupo exista, “há órgãos que não desejam ajudá-lo, e ninguém realmente apoiou o projeto ou se esforçou para viabilizá-lo”.
O pessoal do exército treinado para lidar com o cibermundo dedica-se somente à inteligência militar. “A segurança das redes de infraestrutura vital, como eletricidade e água, está nas mãos da Autoridade Nacional de Informação em Segurança [NISA], uma unidade do Shin Bet”, informa Pfeffer. “O Conselho Nacional de Segurança decide quais sistemas de companhias civis devem ser protegidos pela NISA, mas, como algumas delas, incluindo bancos, operadoras de telefone celular e de internet se opõem a isso, a legislação concernente à segurança dessas empresas foi posta de lado.”