Por Pedro Antônio Dourado de Rezende no OBSERVATORIO DA IMPRENSA
Em 18 de janeiro de 2012 um gigante adormecido despertou, e não foi o Brasil. Foi a internet. Quando internautas e empresas do Vale do Silício uniram-se em protesto contra dois projetos de lei que o Congresso dos EUA estava prestes a aprovar: o SOPA (Stop Online Piracy Act) e o PIPA (Protect Intellectual Property Act). Sentindo a “colherada” quente demais, o gigante assustou e na sopa cuspiu de volta.
Porém, quem viu nisso uma vitória dos 99%, com a retirada de propostas legislativas que ameaçam a liberdade e a privacidade num mundo informatizado, deve se acautelar. Os tais projetos foram apenas engavetados nos EUA. E coisa pior, mais difícil de engolir, os segue por toda parte. Normas sobre Propriedade Imaterial (PI), segundo Alexander Furnas do The Atlantic, formam um torniquete que só aperta, nunca afrouxa.
A próxima volta do torniquete da PI, no forno desde 2007, já está pronta para ser servida. Ela não vem de nenhum legislativo nacional específico, mas no forma de um tratado internacional de comércio, recentemente assinado por representantes de 30 países, incluindo os Estados Unidos e 22 membros da União Europeia. Esse tratado – o ACTA – prevê sua entrada em vigor depois que apenas seis desses signatários o tiverem ratificado.
Apesar da quase certeza da sua ratificação, há quase total incerteza de como ele afetará os direitos civis, de expressão e de comunicação dos cidadãos em todo o mundo. Para entender como e porque o ACTA representa ameaça à liberdade humanaem nome da proteção à PI, pronto a revelar-se mais intragável que o SOPA-PIPA, é preciso conhecer o contexto da evolução e tendências relativas à regulação internacional nessa área.
Neutralidade regulatória
Só uma visão em perspectiva desse contexto, cobrindo ao menos os últimos vinte anos, permite avaliar racionalmente o significado prático das incertezas na linguagem desse acordo, propositalmente vaga como admite o The Economist. E perceber como o suposto “alarmismo” dos críticos, acerca de possíveis interpretações extremas da mesma, sinaliza antes de tudo uma encruzilhada para o futuro de nossa civilização informatizada.
Um bom resumo desse contexto encontra-se no citado artigo do The Alantic, e uma retrospectiva, na série “sapos piramidais“. E uma amostra de interpretações extremas, não precisa aguardar ratificações do ACTA: estão expostas num artigo que o maior lobista do SOPA publicou no New York Times, desancando a reação popular contra a colherada de janeiro. Da tradução publicada pelo Estado de S.Paulo (ver “O que não dirá a Wikipédia“,9/2/12), tiramos algumas.
Com subtítulo “democracia ou demagogia?”, o chefe do cartel de gravadoras RIAA opina: desinformados e manipulados estão os que protestam por acreditar que “músicas, livros e filmes online deveriam ser gratuitos.” Deveriam, não: podem, a critério do autor. Penso que, aí, a questão de fundo é: por que um direito (de vender obra alheia) deveria, imperativamente, atropelar outro (de dispor da própria) online? Ela emoldura mais opiniões.
“A verdadeira censura”, para ele, seria a de hackers anônimos que tentam calar quem deles discorda, em represália ao “estouro do Megaupload, uma operação internacional de pirataria digital”. Mas a censura que as empresas financeiras fizeram contra o WikilLeaks, asfixiando sua operação, enquanto faturavam com o Megaupload sem por isso serem incomodadas, será mesmo falsa? E os anônimos, que por algumas horas derrubaram alguns sites dessas empresas, será que censuraram mesmo suas faturas?
Se a jurisdição que embasou aquele “estouro” ainda abarca o DMCA, com seu dispositivo safe harbor, condenar antecipadamente o Megaupload como “operação de pirataria digital” não seria difamação e injúria,esta contra quem lá sobe seu próprio conteúdo? Se essa lógica ficar offline, vamos então estourar fábricas de armas, de celulares e de automóveis porque elas sabem que bandidos usam suas “ferramentas” para assaltar?
Se a Wikipedia é que é hipócrita, por ter aderido ao protesto com autoapagão enquanto defende a neutralidade regulatória para plataformas na rede, o que é que seus administradores deveriam então ter feito com a demanda manifesta por seus colaboradores, 99% dela por tal forma de adesão? Deveriam tratar esses colaboradores como as gravadoras da RIAA tratam 99% dos seus artistas? Democracia ou demagogia, ei-las.
Contra o ACTA
Os fanáticos do controle, para vencer, também precisam conhecer esse contexto. E há sinais de que nisso ainda tateiam vesgos, ali num queixume quase infantil: segundo o chefe da RIAA, o que o apagão teria mostrado “é que são as [novas] plataformas que exercem o verdadeiro poder.” E as velhas, que apostam sua sobrevida no torniquete da PI, acaso exercem poder falso? O ACTA seria miragem? Essa patética histeria mais parece reação visceral a um batismo de fogo no front comercial da ciberguerra. Bem-vindos a ela, RIAA e aliados.
Quanto aos 99%, tampouco devem dormir no ponto. Quem guardou a sopa, entende de poder, nele está e dele não se arreda. É certo que os 1%, com seus fanáticos que se autointitulam “maximalistas” da PI, aprenderão com o batismo. As primeiras linhas da lição estão legíveis na própria histeria da RIAA: quem protestou, indaga o chefe, sabia que assim estavam “apoiando criminosos estrangeiros a vender remédios falsificados”?
Como decifrar tão rica hipérbole? Tentando: a tropa de choque dos 1% – a indústria do copyright (RIAA, MPAA e demais impérios das velhas mídias) – sente o golpe no front psicológico, em baixas na opinião pública, e pede reforço à retaguarda – com seus setores viciados em monopolismohigh tech, sustentado por radicalização patentária. A chave, é a profusão de termos como verdade, confiança e seus antônimos no queixume.
Para quem ainda está voando de uma hipérbole a outra, cabe enfim a pergunta: o que vem a ser o ACTA? Nos três anos em que venho estudando o assunto, e tentando alertar quem me dê atenção sobre o que aprendo, as tentativas geralmente começam por aí. Na última tentativa, para uma reportagem na revista Ciência e Cultura da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, resumi a resposta como segue.
Literalmente, o ACTA é uma proposta de tratado internacional de combate à contrafação. Na prática, abaixo desse verniz, é uma iniciativa de grandes cartéis do capitalismo pós-industrial, em aliança com o Departamento de Comércio dos EUA e com o braço executivo de outros governos ideologicamente alinhados, para demarcar, no teatro político global, por meio de uma progressiva radicalização normativa, fronteiras institucionais para uma nova forma de colonialismo, baseada em controle utilitário do conhecimento pelo capital, principalmente do fluxo de bens simbólicos.
Geopoliticamente, o ACTA é uma armadilha jurídica para esvaziar a eficácia do braço legislativo de governos que atuam nesse teatro, no que tange às ações e interesses neocoloniais, construída com ambiguidades sobre as divisões entre os três poderes no Estado democrático de direito. E que serve também para estabelecer, a partir desse esvaziamento político, e em conjunto com iniciativas similares noutros fronts da ciberguerra, bases funcionais para o braço armado de um governo supranacional, inicialmente subterrâneo mas totalitário e global, a emergir da convergência de interesses entre esses cartéis e a inclinação natural dos Estados à tirania, impulsionadas pela hiperconectividade propiciada pelas TIC.
A sociedade brasileira pode encontrar dificuldades em entender este cenário, pela forma como nosso legado cultural acolhe os conceitos de soberania e de nação. Minha opinião pessoal, nele pareceria devaneio. Mas como o Brasil está, com a iniciativa do ACTA, encurralado junto com os demais países do bloco chamado BRIC, convém observar como o governo talvez menos fraco, hoje entre os desse bloco, encara publicamente a questão. Remeto então o leitor a um artigo escritopor um colega da área nos EUA, do qual destaco trechos da opinião publicada por dois professores da Academia Militar do Exército Chinês.
“...Assim como a guerra nuclear era a guerra estratégica da era industrial, a ciberguerra é a guerra estratégica da era da informação, e esta se tornou uma forma de batalha massivamente destrutiva, que diz respeito à vida e morte de nações... A ciberguerra é uma forma inteiramente nova que é invisível e silenciosa, e está ativa não apenas em conflitos e guerras convencionais, como também se deflagra em atividades diárias de natureza política, econômica, militar, cultural e científica... Recentemente, um furacão varreu a internet pelo mundo ... Os alvos da guerra psicológica na internet se expandiram da esfera militar para a esfera pública... Confrontadas com esse aquecimento para a ciberguerra na internet, nenhuma nação ou força armada pode ficar passiva e está se preparando para lutar a guerra da internet.”
Atualmente, a maior tensão para consolidação do ACTA ocorre na União Europeia. No Parlamento Europeu o relator da matéria renunciou, denunciando “de maneira mais enérgica possível” as manobras de bastidores que levaram à assinatura do tratado. Demonstrações de rua contra adesão ao ACTA, que começaram na Suécia e Polônia antes da sopa azedar, ocorrem em mais de duzentas cidades da Europaenquanto escrevo.
Polícia ideológica
Devido a ambiguidades no tratado, a Comissão Europeia e o Conselho da Europa divergem a respeito do recuo da Polônia impedir ou não sua ratificaçãopela União Europeia. Documentos dos bastidores das dez rodadas de negociação secreta, vazados pelo WikiLeaks, revelam, como se poderia imaginar, que a parte do tratado que apresentou maiores dificuldades e entraves para a consolidação foi justamente sobre a internet.
Os vazamentos também revelam um plano de ação: colocar logo em execução dispositivos menos controversos do tratado, no âmbito de um núcleo de países mais alinhados com seus objetivos ulteriores, para depois, progressivamente, cooptar outros países a aderirem, valendo-se do fato desse núcleo inicial concentrar o grosso do comércio internacional, alavancado por uma escassez seletiva de bens simbólicos artificialmente induzida por tais dispositivos, e por medidas similares em outros fronts. Assim se produziria mais uma escalada difusa de radicalização normativa, esvaziando salvaguardas da OMC, para uma redivisão global de trabalho e produção pós-industriais, mais alinhada à ideologia subjacente à lógica do capital.
Com a ciberguerra ostensivamente declarada, a indústria do copyright se sente por um lado pressionada, e por outro com a oportunidade, propiciada por seu posicionamento no front psicológico (no chamado “quarto poder”), a unir seu cartel em alianças mais abrangentes e espúrias, formadas com outros cartéis e interesses hegemônicos. Como mostram detalhes de bastidores da negociação revelados pelo Wikileaks.
Agora, com a sopa cuspida e respingos no ACTA, temos um recrudescimento da batalha por corações e mentes no front psicológico da ciberguerra, travada sobre a internet. Nessa batalha, a indústria do copyright pode se transmutar em polícia ideológica, a exemplo do papel que ocupou em regimes totalitários passados. Rumo à concretização das profecias bíblicas sobre o fim desses tempos.
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[Pedro Antônio Dourado de Rezende é professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasília]