Após uma semana em que os apoiadores do golpe civil de 1964 serem alvos de protestos, o Sul21
publica uma entrevista com o promotor militar Otávio Bravo que obteve
reabrir, em fevereiro de 2010, 29 casos de desaparecimentos forçados
praticados no Rio de Janeiro e Espírito Santo durante a ditadura.
Vivian Virissimo no SUL21
“Eu tenho curiosidade de saber como o STF vai julgar a tese que
define desaparecimentos políticos na ditadura brasileira como
sequestros. Essa tese o Supremo não avaliou ainda”. A declaração é do
promotor militar Otávio Bravo. Equiparando o crime de desaparecimento
forçado ao crime de sequestro, o promotor encontrou
um novo caminho para investigar estes crimes cometidos durante a
ditadura e reanimou o debate sobre a validade da Lei da Anistia.
Nesta entrevista exclusiva concedida ao Sul21, ele
explica em detalhes a tese jurídica utilizada para retomada das
investigação e faz interessantes avaliações sobre os desafios que a
Comissão da Verdade terá para trazer à tona informações relevantes sobre
o período de exceção. Sobre a instalação da comissão, Bravo destacou
um dos principais entraves para investigar os anos de chumbo: a
dificuldade de ter acesso a documentos dentro e fora das Forças Armadas.
O promotor conhece bem as barreiras impostas não só pelos militares
para ter acesso a arquivos que demonstrem o que ocorreu nos porões da
ditadura. Ele revelou que a seccional da OAB do Rio de Janeiro também
está criando empecilhos para encaminhar documentos solicitados.
Mesmo sabendo das inúmeras dificuldades e ainda com sérias dúvidas do
potencial da Comissão da Verdade, Bravo disse que apoia a iniciativa.
“Qualquer investigação sobre ditadura militar é válida”, lembrou.
Sul21 – Vinte e nove casos de desaparecimentos forçados foram
reabertos pela Procuradoria da Justiça Militar. Quero que o senhor
comece explicando a tese utilizada para reabrir esses casos.
Otávio Bravo - Foram três fatos determinantes. O
primeiro foi a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) sobre o caso Araguaia, a qual determinou que o Brasil tem
obrigação genérica de investigar os casos de desaparecimentos forçados,
não só os que ocorreram no Araguaia, mas em geral. O segundo foi o fato
do Brasil ter ratificado no final de 2010 a “Convenção Internacional
contra o Desaparecimento Forçado” da Organização das Nações Unidas
(ONU). E a tese jurídica que permitiu a abertura dos processos veio do
próprio Supremo Tribunal Federal (STF), de dois casos de extradição
julgados em 2009 e 2011 de pessoas que teriam participado de crimes
durante o estado de exceção na Argentina. Existe uma figura jurídica
que só permite ao Estado a extradição de uma pessoa quando o crime não
está prescrito no país da extradição, ou seja, o Brasil só pode
extraditar pessoas se o crime não está prescrito na lei brasileira. Ao
tratar das várias acusações contra essa duas pessoas, o STF até negou a
extradição para uma série de atos que eram imputados a estes militares,
mas entendeu que os desaparecimentos forçados equivaliam ao crime de
sequestro que é considerado no Brasil um crime permanente.
Sul21 – O que é exatamente um crime permanente? Que mudança
esse entendimento trouxe para a investigação de desaparecimentos
forçados?
Otávio Bravo - É crime permanente aquele crime cujo
final não se comprova. Portanto, presume-se que ele ainda está
acontecendo até que se tenha certeza que acabou. De modo que o prazo de
prescrição destes crimes permanentes é quando o sequestro chega ao
final. A minha iniciativa foi apenas transportar essa tese utilizada nas
extradições para os casos de desaparecimentos forçados no Brasil que
também equivaleriam a sequestro pois não se sabe quando terminaram, não
estão prescritos e logo não são cobertos pela Lei da Anistia que vai até
1979. Isso tudo deu embasamento jurídico para iniciar as
investigações. Não significa dizer que todos os casos levarão militares
ao banco dos réus já que as investigações podem levar a conclusão de que
desaparecidos podem ter morrido antes de 1979 e os casos estarão
prescritos e anistiados. A ocultação de cadáver também é permanente é só
é consideração prescrito quando o cadáver aparece. Aí eu teria uma
opinião para remeter para o Ministério Público Federal (MPF), a
Procuradoria da República, porque o crime de ocultação de cadáver não é
de competência da Justiça Militar, é da Justiça Federal. A base
jurídica, em resumo, é essa.
Sul21 – Por que estes crimes permanentes são de competência da Justiça Militar?
Otávio Bravo - Esses casos particulares são de
competência da Justiça Militar porque envolvem sequestros ocorridos
dentro de unidades militares, pessoas desapareceram dentro de unidades
militares com militares exercendo função. Isso faz, pela legislação
brasileira, que seja competência da Justiça Militar. É verdade que em
determinado momento eu pretendo abrir mão dessa investigação com base na
recomendação expressa da Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH) de que casos de desaparecimentos forçados não devem ser julgados
pela Justiça Militar.
Sul21 – Qual é a alegação da Corte?
Otávio Bravo - Seria um contra-senso usar o
argumento de uma decisão da corte e no final levar um caso desses para a
Justiça militar. Embora eu seja da Justiça militar, eu sou um promotor
civil. Eu entendo a posição da corte, eu milito na área dos direitos
humanos, eu entendo, mas eu acho até um pouco injusta essa recomendação
da corte porque a Justiça militar que nós temos no Brasil faz parte do
Judiciário e ela não tem uma série de vícios que a Justiça militar de
outros países tem. O fato é que a corte determinou isso: que casos de
desaparecimentos forçados praticado por agentes militares não sejam
julgados pela justiça militar. Então eu devo encaminhar para o MPF.
Sul21 – Essa tese de desaparecimento forçado por agentes
públicos foi utilizada em outros países que tiveram ditaduras militares
como a Argentina, Uruguai e Chile?
Otávio Bravo - Na verdade, nesses países as teses
foram mais amplas, decretaram na Argentina, por exemplo, uma abrangência
muito maior, são os chamados crimes contra humanidade, crimes de
genocídios que são crimes imprescritíveis por causa de convenções
internacionais. No Brasil, o STF não aceitou essa tese e declarou válida
a Lei da Anistia. O que se fez na Argentina, Uruguai e Chile foi muito
mais amplo do que se fez no Brasil. No Brasil, se está discutindo ainda,
na primeira manifestação o Supremo declarou que a Lei da Anistia
continua de pé. Isso que está se falando de sequestro é uma tese única
para investigar o crime de sequestro. Mas, por exemplo, se chegar a
conclusão que houve um homicídio ou o crime de tortura não se pode fazer
nada enquanto a decisão do Supremo não mudar. O Supremo já julgou, mas
agora vai reavaliar um embargo de declaração. Eu sinceramente não
acredito que o Supremo mude de posição, para mim vai continuar deixando a
Lei da Anistia válida. Mas eu tenho curiosidade de saber como o supremo
vai lidar com essa tese de sequestro, já que essa tese o Supremo não
avaliou ainda.
Sul21 – Quem foram os relatores do STF que abriram essa
brecha para que pelo menos os crimes de sequestro fossem investigados? E
que dia foram reabertos os casos?
Otávio Bravo - Foram reabertos em fevereiro de 2010.
A extradição de 2009 foi relatada pelo ministro Ricardo Lewandowki e a
outra foi relatada pela ministra Carmem Lúcia. As duas extradições foram
pedidas pela Argentina. Eu tenho curiosidades de como o STF vai dizer
que isso não se aplica a desaparecimentos forçados no Brasil.
Sul21 – O senhor está investigando o caso do ex-deputado
Rubens Paiva que desapareceu em 1971 nas dependências do Doi-Codi no
Rio. Como está sendo essa apuração?
Otávio Bravo - Na apuração do caso do ex-deputado
Rubens Paiva já cheguei a algumas coisas interessantes: a filha dele —
que nunca tinha sido ouvida e que tinha quinze anos na época do
desaparecimento — prestou depoimento. A verdade é que não havia
investigação até agora do caso, houve um inquérito que acabou arquivado.
A copia deste inquérito está desaparecida, uma coisa meio estranha.
Está em algum lugar incerto.
Sul21 – Outro caso emblemático dos anos de exceção é o caso
do Stuart Angel, filho de Zuzu Angel, que teria sido espancado e
arrastado por um carro com a boca no cano de escape. O senhor poderia
contar como está sendo a investigação?
Otávio Bravo - Ainda não iniciei esta investigação. 29 casos foram abertos mas apenas 3 investigações estão em curso.
Sul21 – Qual sua opinião sobre as investigações que serão
realizadas pela Comissão da Verdade? Que impacto os relatórios
produzidos pela comissão poderão ter?
Otávio Bravo - Eu não sei. Depende muito da extensão
que a Comissão da Verdade possa ter. Eu ainda não tenho nada que possa
me assegurar qual será o impacto político da comissão. Necessariamente
acho que uma comissao que tenha amplos poderes para investigar o que
passou, acesso a documentos poderá ser ótima. Mas não sei se será mais
de um palco político do que propriamente um espaço de investigação. Mas
qualquer iniciativa para apurar o que aconteceu naquele período eu acho
importante. Agora não tenho realmente como fazer juízo de valor porque
ainda não está funcionando.
Sul21 – Mas o senhor conhece bem a dificuldade de acesso a dados sobre este período da história brasileira.
Otávio Bravo - Eu tentei várias vezes ter acesso a
dados nas Forças Armadas mas foram negados, dizem que todos foram
destruídos. Criam situações até meio ridículas, situações burocráticas
que não têm sentido. Por exemplo, uma vez encaminhei uma requisição e
eles alegaram que teria que ser encaminhada pelo procurador geral. Criam
dificuldades, falta vontade de contribuir. Ao mesmo tempo há umas
surpresas desagradáveis, a seccional da OAB no Rio de Janeiro, por
exemplo, é uma vergonha. Diversas vezes mandei ofício pedindo
informações e nunca me responderam. Eles tem uma campanha contra tortura
e pelos desaparecidos políticos que, para mim, não tem valor nenhum. Se
existe um órgão que está investigando o assunto e eles não encaminham
informações é bastante estranho. Mas também tenho que ressaltar o apoio
que tive da Secretaria de Direitos Humanos que não tenho do que me
queixar.