Ravel no blog ARQUIVOS CRITICOS
Me desculpe quem chegou a conclusão diferente, porventura até oposta, mas de minha parte estou convencido de que o documentário Raul: o início, o fim e o meio é uma obra-prima. Não um filme “perfeito”, bem entendido – mesmo porque um filme sobre Raul não poderia ser isso (ou melhor, cultivar a ilusão de
ser isso) sem ser absolutamente infiel e desrespeitoso a seu “objeto”
–, mas um filme de uma grandeza inamovível, na força (não importa se
“única”) com que traz à tona a grandeza e a força – mas também os dramas
e contradições – do próprio Raul.
Algo como a aura de um milagre cerca esse filme, como cercou, em seus auges intermitentes (mas constantes), a vida e “o trabalho”, ou seja, o ser em curso de Raul. Em primeiro lugar, é claro, pela mera “presença” de
Raul no filme, em registros tão vivos e intensos que tornam essas aspas
quase ofensivas. Quando, quase no início, Raul surge em estado de
graça, cantando “Loteria da Babilônia” e declamando o manifesto da
Sociedade Alternativa, a energia e a vitalidade (eu quase escrevia luminosidade)
que emanam de seu corpo, sua voz e suas palavras contêm algo que não se
pode chamar senão de divino. São cenas que já circulam na internet, mas
mesmo os fãs que as conhecem, e que sabem o que foi Raul,
provavelmente se assombrarão com a imponência e altissonância dessas
imagens, como que devolvidas à grandeza de seu instante-evento na
ampliação da tela e do som da sala de cinema.
E, cá entre nós, esse episódio fantástico e já tão comentado da mosca na sopa de Paulo Coelho (sopa de Coelho é
maldade...), a aguadíssima sopa que Mr. Paul Rabbit tentava nos fazer
engolir no momento em que uma vivíssima (e, como ele mesmo parece
sugerir inconscientemente, quiçá brasileiríssima) mosca surgisse
na cena, e, como que premiando nosso espanto, se tornasse tão incômoda a
ponto de silenciar o Coelho e fazê-lo tentar eliminá-la com uma patada[1]; ou essa cena verdadeiramente incrível é uma prova de que uma espécie de chiste divino cerca a própria existência – e até ex-existência –
do artista de gênio ou é (sabe-se lá!) fruto de um tremendo embuste, de
um “planejamento” cujo imprevisível resultado, de qualquer forma, não
poderia ser mais feliz. Se não for o caso, é claro, de uma
transmigração meio à Quincas Borba, de um episódio, digamos,
budista-tropical em plenos Alpes suíços, em pleno castelo medievalista
de um dos escritores católicos mais vendidos do mundo...
E o que dizer da beleza quase transcendente do testemunho de Vivian Seixas, entrevistada pela própria mãe, Kika, e vertendo lágrimas de saudades pelo pai mas também de felicidade plena de se sentir filha dele, e poder falar dele?
E o que dizer da beleza quase transcendente do testemunho de Vivian Seixas, entrevistada pela própria mãe, Kika, e vertendo lágrimas de saudades pelo pai mas também de felicidade plena de se sentir filha dele, e poder falar dele?
Vivian Seixas |
A
força e a genialidade de Raul se espraiam de tal forma pelo filme de
Walter Carvalho – sobretudo no início – que mesmo um Pedro Bial se deixa
contaminar por ela, quando registra o privilégio de ter sido sua
testemunha no auge de sua explosão. Mas se essa genialidade pode animar
um farsante nato (ou inato) como Bial, ela também pode preocupar outro –
vide a invectiva de Paulo Coelho de que não se fale do “mito” Raul
(que, no entanto, afirmava: “não sou nenhuma ficção”) –, e ainda
constranger um talentoso mas Veloso Caetano, cujos olhos, ou muito me
engano, deixam ler, em algum momento, a velada confissão de que aquele
artista ao qual finalmente alguém resolveu fazer justiça pública é maior
do que ele.
Mas também pelos testemunhos propriamente
documentais que colhe e registra o documentário de Carvalho é um grande
filme. Por exemplo, o testemunho de críticos e produtores musicais a
respeito da novidade, qualidade e centralidade de Raul – e não de outros
baianos – na contracultura musical brasileira. Não que se trate de um
trabalho exaustivo nesse sentido: muito ainda há a ser esclarecido, por
exemplo, a respeito das parcerias e amizades de Raul, incluindo aí sua
fase realmente mais problemática, a das farras com Oscar Rasmussem. Mas o
pouco que Carvalho fez – sobretudo, é claro, no que diz respeito à mais
famosa dessas parcerias –, além da própria visibilidade que ele deu a certos fatos, a certos pingos que
há muito demandavam ser colocados nos is, já constitui um ato de
justiça à memória e à obra, para sempre vivas e indomáveis, de Raul.
O maluco e o malandro, digo, “mago”
"Ó, pousou aqui, ó." |
Mas não vou me deter muito nesse terreno delicado, talvez uma dessas histórias que, não fossem certos impedimentos, seriam mais bonitas – mas também mais dolorosas – do que foram. Também não sou partidário da tese da “perda” de Raul por Coelho, o que o filme também deixa perceber que é mais uma falácia que este sustenta implicitamente, quase se vangloriando dela. Coelho pode ter conferido – para o bem e para o mal – mais “substância underground” ao parceiro, mas quando Carvalho registra, por exemplo, a presença de Edy Star no trajeto inicial de Raul (apesar da ausência quase total, e imperdoável, de Sérgio Sampaio, que Edy apenas menciona), obriga o espectador a saber que essa substância já circulava nele; em suma, que antes da Sociedade Alternativa, Raul já havia “fundado” – e, ao lado de Star, Sampaio e Miriam Batucada, honrado com esse impagável “manifesto” sonoro – a Sociedade da Grã Ordem Kavernista.
Os kavernosíssimos Kavernistas |
O que serve pra reafirmar que boa parte das obras-primas de Raul – por exemplo, “Ouro de tolo”, “Metamorfose ambulante”, "O trem das 7", "S.O.S.", "Para Nóia" e "É fim do mês" (pra ficar apenas nos três primeiros discos) – são de autoria mais ou menos exclusiva de Raul. Digo mais ou menos porque também é verdade que o próprio Raul praticou suas malandragens autorais: para ele, como atesta outro parceiro importante, Cláudio Roberto, os empréstimos tomados a canções estrangeiras eram casos de justiça social. Só faltou assinalar que, a despeito de assassinatos como o de “You really got me” (que, por outro lado, já pertence patrimônio universal do rock) por um estrambótico “Dá-lhe que dá”, quase todos os “plágios” de Raul foram na verdade recriações musicais extremamente bem-sucedidas, repletas de originalidade. Ou alguém vai reduzir o valor, por exemplo, de “Ave Maria da Rua” só porque seu arranjo é uma imitatio de “Bridge under troubled water”?
Os dois diabos
Uma
das maiores virtudes do filme de Carvalho é abordar a relação de Raul
com o misticismo de forma clara e, sem trocadilho, desmistificadora.
Fica claro, em primeiro lugar, que Raul nunca foi submisso a quaisquer
seitas ou ideias esotéricas, como, aliás, de qualquer tipo. É outro
episódio engraçado envolvendo dom Paulete: o thelêmico Euclydes Lacerda,
ao lado do idem Toninho Buda, antes ou depois de revelar que o
catolicíssimo Coelho não havia pedido desfiliação da Ordo Templi
Orientis (o que, depois, causa profundo incômodo no mesmo), confirma que
era Mr. Rabbit, na dupla, o principal receptáculo da doutrina, sendo
aliás bastante obediente a ela... "Raul não", Euclydes completa, com um
sorriso finíssimo. Vale também o testemunho de Caetano, que, visitado
por Raulzito em sua fase mais “alternativa”, não conseguia evitar a
postura irônica, o que, ele assevera, despertava o instinto irônico do
próprio Raul...
Toninho Buda |
Mas também é importante o esclarecimento – e não há palavra melhor – a respeito do conteúdo do esoterismo de Raul. O gesto fundamental, nesse caso, pertence a Toninho Buda, que, devidamente caracterizado, lembra distinção, em "Rock do diabo", entre o diabo dos toques e o do exorcista, o demônio grego e o católico, para afirmar o disparate que é a redução de um ao outro, assim como a da imagem de Lúcifer enquanto iluminado à figura chifruda e ridícula da iconografia católica. E Euclydes ainda lembra que “faz o que tu queres” não quer dizer simplesmente “faz o que quiseres”, deixando implícito que aquele “tu” remete a uma vontade interior autêntica e profunda.
Não
que isso tenha valido o tempo todo para o próprio Raul. O fato, porém, é
que todo o filme de Carvalho – e mesmo nos momentos mais dolorosos –,
transpira o panteísmo raulseixista, ou aquilo que de bom grado eu
chamaria seu egoísmo-panteísmo. Aliás, não sei se eu devo ficar muito
grato ou muito puto com Carvalho, pois tenho a impressão de que seu
filme diz, indireta mas suficientemente, tudo o que eu gostaria de dizer
sobre Raul, e que eu arrolaria sob sua divisa, a meu ver, mais
importante: "O amor de todos os mortais".
As mulheres
Um
mérito indiscutível de Carvalho foi ter conseguido colher entrevistas
de todas as ex-mulheres mais ou menos oficiais de Raul – à exceção da
primeira delas, a sempre esquiva Edith Wisner, mas mesmo nesse caso as
cenas e fotos (sobretudo do casamento), de uma beleza tão tocante quanto
a da própria Edith, de alguma forma suprem a lacuna. Ou melhor, não
suprem, mas é até melhor que seja assim, tudo apenas tocado, em se tratando da que foi, provavelmente, a relação mais “romântica” de Raul.
Edith e Raul |
Por
outro lado, é pena que Carvalho não tenha chegado a explorar um dos
aspectos mais interessantes das relações amorosas de Raul, que é sua
imbricação com o trabalho artístico, por meio de parcerias em
obras-primas como as delicadíssimas “Sunseed” e “Mata virgem” e a
enfezadíssima "Pagando brabo", a primeira com Gloria
Vaquer e as outras duas com Tânia Menna Barreto (ambas do excelente Mata virgem), ou as, digamos, transcendentais "DDI (Discagem Direta
Interplanetária)", "O segredo da luz" e "Nuit", todas – e várias outras – com Kika Seixas; a última, com um "toque" especial de Schopenhauer.
“E quão longa é a noite...”
Outro
registro importante: a declaração de, salvo engano, Gloria Vaquer de
que foi o álcool e a cocaína, não a maconha, que esvaíram as forças – e a
beleza – do Maluco Beleza. É chocante, aliás, a percepção de como foi
abrupto o início da decadência de Raul, cujo primeiro sintoma
inequívoco, no filme, é justamente um registro de “Maluco Beleza”,
realizado, provavelmente, em estado de semiembriaguez. É comovente ver
Raul, a certa altura, tentando interpolar um pequeno discurso sobre si
mesmo no meio da canção e obrigando-se a calar, ao perceber que a pausa
da letra não era suficiente. É comovente ver as fotos e imagens do ídolo
combalido, com os olhos mortiços e o rosto inchado, em contraste com as
performances vigorosas de poucos anos antes.
Mas
é comovente constatar, também, que esse vigor nunca arrefeceu
totalmente, e nesse sentido as imagens dos derradeiros shows com Marcelo
Nova já redimem, por si sós, o que quer que eles possam ter significado
de ruim em termos de saúde para Raul. O fato fundamental a esse
respeito é muito simples, e perceptível no filme: Marcelo proporcionou a
Raul a chance de continuar vivo e ativo, além de produzir com ele sua
última obra-prima discográfica, não menos irregular mas não menos
vigorosa que a maioria delas, a caudalosa A panela do diabo.
Marcelo e Raul, + ou – novos |
Só pra terminar
Eu já disse, e repito, que Raul: o início, o fim e o meio não é filme "perfeito" – eis aí, aliás, uma bela e espúria palavra. Pelo contrário, é um filme tão irregular quanto foi a vida e a obra de Raul, e não poderia ser diferente, se Carvalho decide ser fiel à vida de Raul, não só a seus fatos mas, principalmente, seu espírito. É um tipo de “respeito pelo objeto” nos obriga a assistir e até nos saturar com cenas mais ou menos ridículas – mas sempre, também, seu quê de poesia. Como, por exemplo, Carvalho poderia ser fiel ao espírito de Raul se não concedesse o espaço reivindicado por seus amigos de infância, com suas demandas de publicidade ou suas “performances” tão risíveis quanto, às vezes, admiráveis? É verdade que às vezes o excesso de edição incrementa (ou até determina) o kitsch da situação[2], mas nem o kitsck – e, claro, o brega – era estranho a Raul nem Carvalho se furta ao outro lado, digo, um dos outros lados de Raul, a acidez irônica, permitindo-se, por exemplo, acentuar o ranço autoritário de um desses tipos impagáveis que encarrega-se, ele mesmo, de mandar cortar a cena – o que é impagavelmente mantido na edição.
Trazer à tona o espírito de Raul significa ouvir seus espíritos, os que emergiram dele e os que o rondaram, os que se comunicaram com ele, incluindo aí aqueles de onde ele adveio (por exemplo, Élvis, Gonzaga etc.). Ouvi-los e respeitá-los, menos, porém, no sentido de uma atitude formal ou servil que no de atender ao que eles demandam – de responder-lhes, de dialogar com eles.
Às vezes, talvez, de formas meio abusivas, como me parece ser pelo
menos um caso: o da inclusão da mensagem que uma das filhas de Raul lê
pela internet recusando-se a conceder entrevista sobre o pai – inclusão
algo birrenta e perfeitamente desnecessária, mesmo porque a moça acabou
concedendo a entrevista, que aliás tinha acabado de ser mostrada. Se
também uma pequena baixeza como essa pode ser tributada ao “espírito de
Raul” (por exemplo, em “Você roubou meu videocassete”), este seria um
caso, talvez, em que o diretor poderia evitar esse “contágio”...
Mas
são detalhes, embora detalhes importantes, como tudo o que diz
respeito a Raul para seus fãs inesgotáveis. Pois Raul é eterno, e
sempre vai haver um maluco para gritar, em alguma “cover night” de rock
inglês: TOCA RAUL!!! Sempre vai haver uma criança que, distraída ou atentamente, ouvirá Raul
e se encantará, no mesmo instante e para sempre, com sua verve, seu
ritmo e seu canto.
[1] Não fica claro se ele conseguiu, o que aliás é bem possível: acertar na mosca,
como mostra outra cena (também, aliás, algo impressionante), é uma
especialidade de Coelho. Mas é claro que, a despeito disso, Carvalho não
deixaria de dar a última palavra a Raul: “Porque cê mata uma e vem outra em meu lugar!”.
[2] Numa cena, um dos amigos – o, digamos, mais “maluco beleza” – de Raul canta “Blue suede shoes”, em cenas intercaladas com as de um registro ao vivo de Élvis, cenas que – é o pior de tudo – se fundem no fim.