quarta-feira, 25 de abril de 2012

A Revolução dos Cravos: “Foi bonita a festa, pá!”

Luis Alves no A VERDADE

Revolução dos Cravos - 25 de Abril 
Músicas e flores marcaram no 25 de abril de 1974 aquela que ficou conhecida como a Revolução dos Cravos.
Às 23h do dia 24, o locutor das Emissoras Associadas anunciou a canção “E depois do Adeus”. Era a senha para o décimo Grupo de Comando tomar a RádioClube Portugal (RCP). E a meia-noite e meia, a Rádio Renascença tocou “Grandola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade”! Era a senha para as demais ações militares que vieram a seguir: ocupação da Central Telefônica, dos ministérios, da Rádio e Televisão Portuguesa (RTP).
Quando o sol já brilhava, os capitães de abril tomaram o Banco de Portugal e logo chegaram ao Quartel do Carmo, onde se refugiara Marcello Caetano, primeiro-ministro que sucedeu o arquifascista general Antônio de Oliveira Salazar. Caía quase meio século (48 anos) de ferrenha ditadura.
Não houve resistência. Os tanques passearam pelas ruas até os pontos estratégicos que deveriam ser ocupados. Até paravam nos sinais vermelhos e o povo, que se aglomerou para apoiar e aplaudir, distribuía flores com os soldados, os famosos cravos que enfeitaram os fuzis e se tornaram símbolo do movimento revolucionário. O 25 de abril não entusiasmou apenas o povo português, mas as forças populares do mundo inteiro. No Brasil, por vivermos ainda uma ditadura militar do mesmo quilate da portuguesa, e pela ligação histórica Brasil-Portugal, ele foi saudado com muito entusiasmo. Chico Buarque, com sua música denunciadora e profética, escreveu: “Sei que estás em festa, pá! Fico contente e enquanto estou ausente, guarda um cravo para mim” (Tanto Mar).
Mas para entendermos o levante vitorioso de abril e os fatos que ocorreram a seguir precisamos recuar bastante no tempo. Paciência, que na história humana nada acontece por acaso.
De dominado a dominador
Portugal formou-se provavelmente na Idade do Bronze (2.000 a.C.- 8.000 a.C.), quando povos de origens diversas, em fluxo migratório, pararam diante do mar na Península Ibérica e se miscigenaram. Depois vieram as invasões, sucessivamente dos romanos, bárbaros e muçulmanos.
Não há uma data que marque a independência do território português e sua constituição enquanto nação soberana. Foi um processo que se deu a partir do século XII. Há historiadores que identificam como momento decisivo as batalhas de 1383/1385, que tiveram ampla participação popular e derrotaram definitivamente os exércitos de Castela (Espanha).
Os portugueses desenvolveram no litoral intensa atividade pesqueira e aprenderam muito bem a arte da navegação. Já em 1415, realizou-se a 1ª expedição ao norte da África, conquistando Ceuta,  porta de entrada para uma região rica em cereais. A busca de novas terras é vista como forma de solucionar os graves problemas econômicos que atingem o país: desorganização da sociedade rural, domínio da burguesia comercial, expansão da economia europeia e de seu mercado consumidor. Para o povo português, representava também a oportunidade de emigrar para conseguir riqueza em outras terras.
Em 1448, as expedições chegaram à Índia, firmando Portugal como potência naval e comercial. Portugal, entretanto ,não investiu os lucros obtidos no desenvolvimento industrial, tornando-se um entreposto comercial da Europa e constituiu-se enquanto império periférico, mantendo uma relação de dependência com o seu principal cliente, a Inglaterra. Quando se consolida a Revolução Francesa e a França passa a disputar com os ingleses a supremacia no continente europeu, Portugal está inteiramente alinhado com a Inglaterra, com quem mantém intenso comércio com base na produção agrícola brasileira.
O declínio do império
Em 1807, as tropas francesas (napoleônicas) invadem Portugal e a Corte se refugiou no Brasil, vivendo o império português a sua 1ª grande crise.
Com a derrota de Napoleão (1814), Portugal passou a ser governado por uma Junta de Governadores que recebia instruções do Rio. A Corte permaneceu no Brasil até 1820 quando se deu a revolução do Porto, que reduziu os poderes do rei, estabelecendo uma monarquia constitucional, e exigiu o retorno do Dom João VI.
A emancipação do Brasil (1822) destruiu os pilares do comércio português. Para compensar as perdas, o império volta-se para suas colônias na África.
Com escassa industrialização e extrema dependência dos mercados externos a crise se agrava a cada dia. Incapaz de solucioná-las, a monarquia abre espaço para a articulação republicana, que unia setores médios (intelectualidade, militares) e setores das massas urbanas.
A república foi proclamada em 5 de outubro de 1910, por meio de um golpe de Estado, desencadeado a partir de um atentado que vitimou o rei, D. Carlos e o príncipe Luís Felipe, herdeiro do trono.
A era republicana começa com a disseminação das greves operárias contra o alto custo de vida e os baixos salários. O novo regime respondeu com uma lei de greve patronal e com repressão ao movimento. A classe operária foi posta à margem da vida republicana, uma vez que sua proclamação fora obra das elites, fazendo apenas circular o governo entre frações das classes dominantes. A primeira república durou até 1926, quando um golpe militar pôs fim à instabilidade política.
Em 1928, o Governo do general Carmona convidou para pôr ordem na economia um professor da Universidade de Coimbra, Antônio Oliveira Salazar. Este acabou assumindo a chefia do Estado. Com a implantação de rigorosa ortodoxia econômica e implacável repressão política, o salazarismo unificou as classes dominantes e impôs uma ditadura de quase meio século (48 anos).
A relação da ditadura salazarista com as Forças Armadas nunca foi tranqüila, especialmente após a Reforma Militar de 1937, que subordinou a instituição militar ao chefe do executivo (Salazar). Várias conjuras militares aconteceram e foram derrotadas nos anos 50 e 60.
No meio popular, a luta se desenvolvia em rigorosa clandestinidade. A repressão dizimou centenas de quadros do Partido Comunista Português (PCP) e de outras organizações de esquerda.
A queda do salazarismo começou na África com a derrocada do que restava do império colonial português. A exploração econômica já não compensava mais os custos sempre crescentes que o Estado português tinha de fazer para enfrentaras guerrilhas de libertação nacional que impunham cada vez mais derrotas ao império, especialmente em Moçambique, Angola, e Guiné-Bissau. Em 24 de setembro de 1973, foi proclamada a independência da Guiné, com o reconhecimento diplomático de 86 países, fato que demonstrou o isolamento da ditadura colonialista portuguesa, a essa altura já condenada pela ONU.
A relação deficitária entre a metrópole e as colônias africanas aguçou a crise econômica interna e a insatisfação popular com o regime e o colonialismo, identificados como responsáveis pelo desemprego, os baixos salários e o esvaziamento do campo. Apesar da ditadura, os trabalhadores não deixaram de lutar e se organizar, criando as comissões clandestinas nos locais de trabalho e intervindo também nos sindicatos oficiais. No seio das Forças Armadas, o descontentamento crescia diante da redução dos gastos, a contabilização de milhares de soldados mortos no continente africano e a certeza que se instalava entre os oficiais de que seria impossível uma vitória militar.
O falecimento de Salazar em 1968, substituído por Marcello Caetano, ex-reitor da Universidade de Lisboa, não alterou o quadro.
A década de 1970 se inicia com o impulso das lutas operárias, especialmente a partir da 1ª metade de 1973. Daí, até abril de 1974, mais de cem mil trabalhadores participaram de greves nos centros industriais, nas grandes, pequenas e médias empresas e nas zonas agrícolas de Alentejo e Ribatejo. Numerosos sindicatos se libertaram de direções pelegas, havia um movimento em ascensão, que preparava um grande ato público para o 1º de maio em Lisboa e outros centros do país, marcando uma jornada de lutas por melhores salários, contra a carestia, mas também por liberdades democráticas,contra as guerras coloniais, por independência e paz. Por seu lado, o governo fascista articulava uma operação preventiva que no dia 30 de abril levaria para a prisão ativistas sindicais e populares. Não teve tempo.
Os capitães de abril
Em 9 de setembro de 1973, numa chácara nos arredores de Évora, nasceu o Movimento dos Capitães ou Movimento das Forças Armadas (MFA), que propunha o fim do colonialismo e a democratização da sociedade portuguesa.
Setores mais conservadores das Forças Armadas planejaram tomar a bandeira dos capitães. Para isso, o general Antônio Spínola lança o livro Portugal e o Futuro em que defende a independência progressiva das colônias e sua união em uma “comunidade lusíada”, com a realização de eleições democráticas.
Os dois grupos acabam se compondo. Isto garantiu, por um lado, a neutralidade do alto oficialato, permitindo uma ação incruenta, mas por outro, exigiu concessões no programa político, como explicou o major Otelo Saraiva de Carvalho: “O General (Spínola) travava o movimento de abril; os oficiais do movimento acertaram o programa com o general porque precisavam dele. Então foram feitas muitas concessões. O programa não saiu como queríamos” (JB, 11/10/74)
Avanços e Recuos
A ação militar vitoriosa de 25 de abril não foi articulada com o movimento de massas, mas incorporou em parte seus anseios. Por isso, foi defendida e apoiada, como relatamos no início, e mais ainda, no Dia do Trabalho. “Foi o maior dos maios. Só possível por causa de abril. Ali estiveram quase um milhão de portugueses, sem contar com as muitas centenas de milhares que estiveram no Porto, Braga, Aveiro, Coimbra, Santarém, Barreiro, Alentejo e outras centenas de localidades… A palavra de ordem era “O povo, unido, jamais será vencido”. As exigências eram o fim da guerra colonial, a restauração das liberdades democráticas e a justiça social”.
O primeiro Governo Provisório, pós-abril, contemplou todas as forças, sendo palco de disputas e contradições, mas tomou medidas importantes: congelamento de preços dos bens de primeira necessidade, instituição do salário mínimo nacional, reconhecimento do direito de greve e associação. Depois de uma tentativa de golpe direitista em 11 de março de 1975, Spínola renunciou à presidência e Vasco Gonçalves assumiu a chefiado Conselho de Ministros.
A esquerda assume o comando da Revolução. O novo governo toma medidas que implicam profundas mudanças econômico-sociais: estatização dos bancos e setores estratégicos da economia como energia, telecomunicações e transporte, além da construção civil, regulamentação do mercado, realização da reforma agrária no Alentejo e no Ribatejo.
O patronato promove sabotagens, desorganiza a atividade econômica, enquanto o Movimento Operário, apesar de não se desmobilizar, reduz o número de greves. Isso ocorre, segundo Álvaro Cunhal, secretário Geral do Partido Comunista Português (PCP), em razão da “elevada consciência política da classe operária e dos demais trabalhadores”.
Enquanto isso, no interior das Forças Armadas, a direita se articula. Um grupo de oficiais elabora o documento dos nove em que condena o radicalismo. Em 2 de setembro de 1975, uma assembleia do MFA define que a presença de Vasco Gonçalves no governo é incompatível com a coesão das Forças Armadas. Vasco é demitido.
Em 25 de novembro de 1975, um grupo de pára-quedistas se subleva, num episódio que nunca foi devidamente esclarecido. Adireita caracterizou-o como insurreição de esquerda para tomar o poder. Mas a esquerda define-o como manobra da direita para justificar a direitização do regime. O fato é que o 25 de novembro marcou a exclusão da esquerda do MFA. Oficiais e soldados considerados radicais foram expulsos, licenciados, presos e transferidos para a reserva.
Em 26 de fevereiro de 1976, eliminado a componente radical da revolução, novo acordo MFA- partidos políticos pôs Portugal na senda da democracia burguesa. Aos poucos, as conquistas da revolução dos Cravos foram eliminadas e o país integrou-se como sócio menor à União Europeia, sob a dependência dos monopólios capitalistas.
A ferrenha censura proibiu a música de Chico Buarque em homenagem à Revolução de Abril em 1974. Quando foi liberada na vigência da “abertura lenta, gradual e segura”, ele teve que refazer a letra que se imortalizou: “já murcharam tua festa, pá, mas certamente esqueceram uma semente nalgum canto do jardim.”


Luiz Alves
(Publicado no Jornal A Verdade, nº 60)

Os prejuízos de Toulouse: antijudaísmo ou islamofobia?



As ações dos pequenos grupos radicais islâmicos não representam a vontade da totalidades dos palestinos e da comunidade muçulmana global


Por Luciana Garcia de Oliveira, no Brasil de Fato


Antes mesmo do primeiro turno das eleições, ocorrido neste domingo (22), houve o inesperado, uma série de atentados no país com um forte impacto emocional e midiático. No dia 19 de março, um atirador então desconhecido matou a tiros um rabino professor e seus dois filhos na frente de uma escola judaica na cidade de Toulouse, na França e, em seguida assassinou uma menina. Todo o armamento utilizado nos crimes, pareciam os mesmos utilizados na data do dia 11 de março para matar um paraquedista (de origem norte-africana) e, em 15 de março, outros dois paraquedistas muçulmanos.

O responsável confesso, Mohamed Merah, nascido em Toulouse e descendentes de argelinos, teria afirmado pertencer ao grupo Al-Qaeda (o que parece ser pura bravata). Antes de morrer, teria inclusive dito que os atentados foram motivados em resposta às intervenções francesas no exterior mas, principalmente para vingar a morte das crianças palestinas.

Imediatamente após o ocorrido, a candidata (conservadora) as eleições francesas, Marine Le Pen que, até então havia cessado o discurso a qual revelava uma resistência extrema à entrada de novos imigrantes à França (reação conhecida como xenofobia), voltou à ofensiva e ainda exigiu retratação aos demais candidatos que haviam criticado o tom discriminatório de seu discurso.

Numa clara tentativa em evitar possíveis distorções com relação à grande comunidade árabe - muçulmana da França, no dia 21 de março, o primeiro ministro palestino, Salam Fayyad, afirmou (em um discurso) a necessidade de parar de usar a causa palestina como justificativa para atos terroristas. Reiterou no entanto que, “o povo palestino e seus filhos, que não podem aceitar crimes contra vidas inocentes, condenam categoricamente esses crimes terroristas”.

Apesar de tamanha ponderação, fato novo chamou a atenção, dessa vez pela violência do discurso, quando o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, criticou veemente a alta representante europeia de Política Externa, Catherine Ashton. O motivo teria sido uma comparação, feita por ela, do atentado de Toulouse com os crimes perpetrados na Faixa de Gaza, na Palestina.

O “mal-estar” gerado pelas palavras de Ashton, teria motivado Netanyahu a afirmar que “a comparação entre um massacre contra crianças e uma atividade defensiva cirúrgica do Exército para acabar com terroristas que usam menores como escudo, é um absurdo”.

Antes mesmo dessa declaração, o ministro das Relações Exteriores israelense, Avigdor Lieberman solicitou que Ashton retirasse suas declarações, sob alegação de que “as crianças com as quais Catherine deveria estar preocupada são as que vivem no sul de Israel, que vivem com medo constante dos mísseis de Gaza”. E, ainda complementou: “não há Exército mais ético que o israelense”.

Ao analisar esse tipo de reação, alguns estudiosos do tema antijudaísmo, como o professor Robert Wistrich, chefe do Centro Internacional de Estudos do Antijudaísmo da Universidade de Jerusalém afirmou, em uma recente entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo que, desde o holocausto, o sentimento antijudaico sofreu uma mudança, sobretudo na Europa (palco da II Guerra Mundial). Assim, na atual conjuntura, a principal força de discriminação judaica é atribuído, segundo ele, ao islã fundamentalista.

Num olhar mais particular ao caso francês, o professor de Jerusalém observa uma “tendência de apresentar a autodefesa de Israel contra o terrorismo como um genocídio contra o povo palestino”. O antijudaísmo, nesse sentido, seria uma expressão muito mais potente de ódio, inclusive quando comparado a quaisquer atos discriminatórios à comunidade árabe-muçulmana na Europa.

Todos esses discursos, mesmo advindo de autoridades israelenses, é comprovado não corresponder à realidade. A começar, o desequilíbrio de forças entre o exército israelense com a resistência palestina, no que tange a armamentos e tecnologia é extremamente desigual. Por isso, afirmar que a incidência de morte de todas as crianças seja tão somente em decorrência da culpa dos grupos radicais islâmicos como a Jihad Islâmica e o Hamas, serve tão somente para eximir a responsabilidade do exército de Israel que, desde a fundação do Estado no Oriente Médio tem adotado uma política de extrema truculência com relação ao povo palestino.

Muito embora os ataques com foguetes (de fabricação caseira) em Israel já tenha vitimado alguns cidadãos israelenses, quando comparado aos ataques contra a Faixa de Gaza, ou contra as bases terroristas fundamentalistas localizadas nessa região, de acordo com algumas autoridades israelenses, o número de vitimas civis é absolutamente maior, isso sem contar as inúmeras perdas materiais, como as casas, escolas e hospitais. Perdas de difícil reparação, tendo em vista a constante falta de recursos financeiros para construções e abastecimentos.

Tendo em vista esta mesma constatação, após os atentados em Toulouse e, sobretudo sendo o responsável, um francês de origem árabe-muçulmana é (naturalmente) prevista uma tendência bastante perigosa, qual seja, o acirramento do pavor da sociedade europeia com relação aos muçulmanos na Europa (denominado islamofobia). A sociedade europeia passaria assim a associar toda a comunidade muçulmana ao fanatismo e, principalmente ao terrorismo. Aliado à expansão da islamofobia (já presente em muitas sociedades europeias), a desqualificação de todas as reivindicações dos palestinos que vivem nos territórios ocupados pelo Estado de Israel não é menos preocupante.

O ato de expressar publicamente o desprezo com relação às vítimas palestinas não é tão somente uma atitude irresponsável, por parte de dirigentes estatais, como extremamente perigosa. Negar a pratica de crime de genocídio é negar a definição prevista na legislação internacional. [Baby Siqu1] Juridicamente, o crime de genocídio lesa humanidade tem por definição o cumprimento de algumas exigências, quais sejam, a presença de atos desumanos, como assassinatos, extermínios e desaparecimento; a sistematização dessas práticas; contra a população civil; durante conflito armado e deve ser correspondente a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promoveram essa política e com o conhecimento desses agentes.

Diante de todos esses elementos, somado às últimas notícias na Faixa de Gaza, mais especificamente às noticiadas desde o início do mês de março, quando havia sido publicada a morte de 15 palestinos (incluindo crianças), em um ataque mais uma vez brutal por parte do Exército de Israel em represália ao ataque com foguetes atribuídos ao grupo Jihad islâmica, todos os indícios, nesse caso, qualificam como genocídio as ações de Israel na Faixa palestina, isso sem contar a “Guerra de Independência” e a Operação Chumbo Fundido. Em Toulouse configurou-se um terrível massacre, uma vez que os assassinatos em série não foram cometidos por um agente estatal.

Todos os genocídios, massacres e assassinatos devem ser condenados, sem nenhuma exceção. O mesmo, com relação a atual ascensão do radicalismo político e religioso. Nesse mesmo sentido, as ações dos pequenos grupos radicais islâmicos não representam a vontade da totalidades dos palestinos e da comunidade muçulmana global assim como as afirmações infelizes e preconceituosas dos dirigentes israelenses não correspondem absolutamente à população de Israel como um todo, tampouco à comunidade judaica espalhada pelo mundo.

Fomentar a discórdia, realizar distorções históricas e factuais, terão como consequências principais o aumento da intolerância, desconfiança, violência e discriminação. Com reflexos na continuidade da expansão dos assentamentos judaicos no território palestino, tendente a diminuir os territórios para o tão almejado futuro Estado da Palestina.

*Luciana Garcia de Oliveira é pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP).

terça-feira, 24 de abril de 2012

A deliciosa história sobre a invenção do jogo do bicho

Luiz Antonio Simas, O Globo

O jogo do bicho surgiu no Rio de Janeiro em 1893. A criação da loteria popular mais famosa do Brasil se deve ao complicado contexto político daqueles tempos. A República, recentemente proclamada, tentava sepultar os resquícios da Monarquia derrubada — e desse quiproquó entre os adeptos dos regimes surgiu o jogo. Explico.
Nos tempos da Monarquia, o Barão de Drummond, eminência política do Império e amigo da família real, era fundador e proprietário do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro — que então funcionava em Vila Isabel.
A manutenção da bicharada era feita, evidentemente, com uma generosa subvenção mensal do governo, suficiente, diziam as línguas ferinas dos inimigos do Barão, para alimentar toda a fauna amazônica por pelo menos dez anos.
Quando a República foi proclamada, o velho Barão perdeu o prestígio que tinha. Perdeu, também, a mamata que lhe permitia, segundo o peculiar humor carioca, alimentar o elefante com caviar, dar champanhe francesa ao macaco e contratar manicure para o pavão.
Sem o auxílio do governo, o nosso Barão cogitou, em protesto, soltar os bichos na Rua do Ouvidor — o que, admitamos, seria espetacular — e fechar em definitivo o zoológico do Rio.
Foi aí que um mexicano, Manuel Ismael Zevada, que morava no Rio e era fã do zoológico, sugeriu a criação de uma loteria que permitisse a manutenção do estabelecimento. O Barão ficou entusiasmado com a ideia.
O frequentador que comprasse um ingresso de mil réis para o Zoo ganharia vinte mil réis se o animal desenhado no bilhete de entrada fosse o mesmo que seria exibido em um quadro horas depois. O Barão mandou pintar vinte e cinco animais e, a cada dia, um quadro subia com a imagem do bicho vitorioso.
Caríssimos, se bobear essa foi a ideia mais bem-sucedida da história do Brasil. Multidões iam ao zoológico com a única finalidade de comprar os ingressos e aguardar o sorteio do fim de tarde.
Em pouco tempo, o jogo do bicho tornou-se um hábito da cidade, como os passeios na Rua do Ouvidor, a parada no botequim, as regatas na Lagoa e o fim de semana em Paquetá. Coisa séria.
A República, que detestava o Barão, proibiu, depois de algum tempo, o jogo no zoológico. Era tarde demais.
Popularizado, o jogo espalhou-se pelas ruas, com centenas de apontadores vendendo ao povo os bilhetes com animais dadivosos. Daí para tornar-se uma mania nacional, foi um pulo. O jogo do bicho deu samba — com trocadilho.
Contei rapidamente a história da criação do jogo para constatar o seguinte: a situação atual do zoológico do Rio de Janeiro não parece ser muito diferente daqueles tempos bicudos do velho Barão de Drummond.
Dia destes, o próprio O GLOBO veio com uma reportagem chamando atenção para o desleixo a que o jardim está entregue em tempos recentes. Enquanto a loteria popular prosperou e virou uma espécie de instituição nacional, o zoológico não teve a mesma sorte.
O jogo, que a rigor foi criado apenas para tirar o zoológico da situação de abandono e com uma inocência digna das histórias de Polyana, a moça, chegou longe demais. Vejam, por exemplo, as atuais peripécias republicanas do bicheiro Carlinhos Cachoeira (curiosamente chamado por alguns da mídia de “empresário da contravenção”).
A inocente loteria popular ganhou asas e se transformou em uma complexa organização criminosa, com tentáculos inimagináveis que envolvem até mesmo cândidas vestais de ternos e togas do moralismo tupiniquim.
Deixo aqui a minha sugestão: já que o poder público aparentemente não dá pelota para a bicharada, confisquem as fortunas que o crime organizado amealhou em aparente conluio com os bacanas e poderosos da República.
Separem um pouquinho da grana tungada e, por justiça histórica, destinem o tutu ao carente Jardim Zoológico do Rio de Janeiro.
Uma parte do dinheiro do mafioso Cachoeira deve servir ao nobre destino de alimentar cobras, leões, passarinhos e macacos que, afinal de contas, fazem a alegria da criançada carioca em fins de semana.
A César o que é de César. Ou alguém aí sugere a criação de uma loteriazinha inocente que pode salvar o zoológico carioca desse abandono? Não recomendo.

Luiz Antonio Simas é historiador

Raul vive!!! Veja, e ouça, e viva Raul!!!

Ravel no blog ARQUIVOS CRITICOS

Me desculpe quem chegou a conclusão diferente, porventura até oposta, mas de minha parte estou convencido de que o documentário Raul: o início, o fim e o meio é uma obra-prima. Não um filme “perfeito”, bem entendido – mesmo porque um filme sobre Raul não poderia ser isso (ou melhor, cultivar a ilusão de ser isso) sem ser absolutamente infiel e desrespeitoso a seu “objeto” –, mas um filme de uma grandeza inamovível, na força (não importa se “única”) com que traz à tona a grandeza e a força – mas também os dramas e contradições – do próprio Raul.
Algo como a aura de um milagre cerca esse filme, como cercou, em seus auges intermitentes (mas constantes), a vida e “o trabalho”, ou seja, o ser em curso de Raul. Em primeiro lugar, é claro, pela mera “presença” de Raul no filme, em registros tão vivos e intensos que tornam essas aspas quase ofensivas. Quando, quase no início, Raul surge em estado de graça, cantando “Loteria da Babilônia” e declamando o manifesto da Sociedade Alternativa, a energia e a vitalidade (eu quase escrevia luminosidade) que emanam de seu corpo, sua voz e suas palavras contêm algo que não se pode chamar senão de divino. São cenas que já circulam na internet, mas mesmo os fãs que as conhecem, e que sabem o que foi Raul, provavelmente se assombrarão com a imponência e altissonância dessas imagens, como que devolvidas à grandeza de seu instante-evento na ampliação da tela e do som da sala de cinema.
E, cá entre nós, esse episódio fantástico e já tão comentado da mosca na sopa de Paulo Coelho (sopa de Coelho é maldade...), a aguadíssima sopa que Mr. Paul Rabbit tentava nos fazer engolir no momento em que uma vivíssima (e, como ele mesmo parece sugerir inconscientemente, quiçá brasileiríssima) mosca surgisse na cena, e, como que premiando nosso espanto, se tornasse tão incômoda a ponto de silenciar o Coelho e fazê-lo tentar eliminá-la com uma patada[1]; ou essa cena verdadeiramente incrível é uma prova de que uma espécie de chiste divino cerca a própria existência – e até ex-existência – do artista de gênio ou é (sabe-se lá!) fruto de um tremendo embuste, de um “planejamento” cujo imprevisível resultado, de qualquer forma, não poderia ser mais feliz. Se não for o caso, é claro, de uma transmigração meio à Quincas Borba, de um episódio, digamos, budista-tropical em plenos Alpes suíços, em pleno castelo medievalista de um dos escritores católicos mais vendidos do mundo...

E o que dizer da beleza quase transcendente do testemunho de Vivian Seixas, entrevistada pela própria mãe, Kika, e vertendo lágrimas de saudades pelo pai mas também de felicidade plena de se sentir filha dele, e 
poder falar dele?


Vivian Seixas
A força e a genialidade de Raul se espraiam de tal forma pelo filme de Walter Carvalho – sobretudo no início – que mesmo um Pedro Bial se deixa contaminar por ela, quando registra o privilégio de ter sido sua testemunha no auge de sua explosão. Mas se essa genialidade pode animar um farsante nato (ou inato) como Bial, ela também pode preocupar outro – vide a invectiva de Paulo Coelho de que não se fale do “mito” Raul (que, no entanto, afirmava: “não sou nenhuma ficção”) –, e ainda constranger um talentoso mas Veloso Caetano, cujos olhos, ou muito me engano, deixam ler, em algum momento, a velada confissão de que aquele artista ao qual finalmente alguém resolveu fazer justiça pública é maior do que ele.
Mas também pelos testemunhos propriamente documentais que colhe e registra o documentário de Carvalho é um grande filme. Por exemplo, o testemunho de críticos e produtores musicais a respeito da novidade, qualidade e centralidade de Raul – e não de outros baianos – na contracultura musical brasileira. Não que se trate de um trabalho exaustivo nesse sentido: muito ainda há a ser esclarecido, por exemplo, a respeito das parcerias e amizades de Raul, incluindo aí sua fase realmente mais problemática, a das farras com Oscar Rasmussem. Mas o pouco que Carvalho fez – sobretudo, é claro, no que diz respeito à mais famosa dessas parcerias –, além da própria visibilidade que ele deu a certos fatos, a certos pingos que há muito demandavam ser colocados nos is, já constitui um ato de justiça à memória e à obra, para sempre vivas e indomáveis, de Raul.
O maluco e o malandro, digo, “mago”

"Ó, pousou aqui, ó."
Ninguém em sã consciência pode negar a importância de Paulo Coelho na trajetória artística e pessoal (que são uma coisa só) de Raul, mas o êxito posterior do “mago escritor” parece ter confundido um pouco as coisas a esse respeito, levando muita gente a pensar que era ele o responsável pelas “super letras” (encontrei isso num blog) dos primeiros discos solo do parceiro. É grandemente constrangido, com uma humildade um tanto envergonhada (mas, enfim, corajosa), que Rabbit admite que foi Raul quem o ensinou a fazer letras de música. Que foi Raul, na prática, quem compôs Gita, ou seja, que deu acabamento ao Bhagavad-Gita do qual Coelho deve ter feito um resumão (que, no filme, ele chama de “poesia”); assim como compôs “Metamorfose Ambulante”, que dom Paulete assevera que gostaria de ter feito com Raul, meio que sabendo que isso teria feito mais diferença para si mesmo que para a canção, pois ele seria o que sempre foi: um coadjuvante na “relação” com Raul, alguém que este literalmente levava consigo, e não o contrário. Exatamente, aliás, como em “Super-heróis”: “Chamei dom Paulo Coelho e saímos lado a lado...”.

Mas não vou me deter muito nesse terreno delicado, talvez uma dessas histórias que, não fossem certos impedimentos, seriam mais bonitas – mas também mais dolorosas – do que foram. Também não sou partidário da tese da “perda” de Raul por Coelho, o que o filme também deixa perceber que é mais uma falácia que este sustenta implicitamente, quase se vangloriando dela. Coelho pode ter conferido – para o bem e para o mal – mais “substância underground” ao parceiro, mas quando Carvalho registra, por exemplo, a presença de Edy Star no trajeto inicial de Raul (apesar da ausência quase total, e imperdoável, de Sérgio Sampaio, que Edy apenas menciona), obriga o espectador a saber que essa substância já circulava nele; em suma, que antes da Sociedade Alternativa, Raul já havia “fundado” – e, ao lado de Star, Sampaio e Miriam Batucada, honrado com 
esse impagável “manifesto” sonoro – a Sociedade da Grã Ordem Kavernista.
Os kavernosíssimos Kavernistas
A importância de Paulo Coelho (mas também, anote-se, de Marcelo Motta) na vida e na obra de Raul foi ter lhe dado densidade – uma “densidade mística” que desde cedo foi também humana –, mas como parte de uma busca do próprio Raul (que foi quem o procurou, como fica muito bem registrado). O salto da circense Grã Ordem (a rigor, pouco mais que um Mutantes mais precário e “baianizado”) para o protéico – e magnífico – Krig-Ha-Bandolo! de alguma reflete esse processo. Ainda assim, como se diz, é lindo perceber que o momento de maior grandeza do “bruxo”, e que afinal o redime no filme de Carvalho, foi aquele em que, engolindo corajosamente o constrangimento, ele admite que “o maior parceiro de Raul foi ele mesmo”.

O que serve pra reafirmar que boa parte das obras-primas de Raul – por exemplo, “Ouro de tolo”, “Metamorfose ambulante”, "O trem das 7", "S.O.S.", "Para Nóia" e "É fim do mês" (pra ficar apenas nos três primeiros discos) – são de autoria mais ou menos exclusiva de Raul. Digo mais ou menos porque também é verdade que o próprio Raul praticou suas malandragens autorais: para ele, como atesta outro parceiro importante, Cláudio Roberto, os empréstimos tomados a canções estrangeiras eram casos de justiça social. Só faltou assinalar que, a despeito de assassinatos como o de “You really got me” (que, por outro lado, já pertence patrimônio universal do rock) por um estrambótico “Dá-lhe que dá”, quase todos os “plágios” de Raul foram na verdade recriações musicais extremamente bem-sucedidas, repletas de originalidade. Ou alguém vai reduzir o valor, por exemplo, de “Ave Maria da Rua” só porque seu arranjo é uma imitatio de “Bridge under troubled water”?
Os dois diabos

Uma das maiores virtudes do filme de Carvalho é abordar a relação de Raul com o misticismo de forma clara e, sem trocadilho, desmistificadora. Fica claro, em primeiro lugar, que Raul nunca foi submisso a quaisquer seitas ou ideias esotéricas, como, aliás, de qualquer tipo. É outro episódio engraçado envolvendo dom Paulete: o thelêmico Euclydes Lacerda, ao lado do idem Toninho Buda, antes ou depois de revelar que o catolicíssimo Coelho não havia pedido desfiliação da Ordo Templi Orientis (o que, depois, causa profundo incômodo no mesmo), confirma que era Mr. Rabbit, na dupla, o principal receptáculo da doutrina, sendo aliás bastante obediente a ela... "Raul não", Euclydes completa, com um sorriso finíssimo. Vale também o testemunho de Caetano, que, visitado por Raulzito em sua fase mais “alternativa”, não conseguia evitar a postura irônica, o que, ele assevera, despertava o instinto irônico do próprio Raul...
Toninho Buda

Mas também é importante o esclarecimento – e não há palavra melhor – a respeito do conteúdo do esoterismo de Raul. O gesto fundamental, nesse caso, pertence a Toninho Buda, que, devidamente caracterizado, lembra distinção, em "Rock do diabo", entre o diabo dos toques e o do exorcista, o demônio grego e o católico, para afirmar o disparate que é a redução de um ao outro, assim como a da imagem de Lúcifer enquanto iluminado à figura chifruda e ridícula da iconografia católica. E Euclydes ainda lembra que “faz o que tu queres” não quer dizer simplesmente “faz o que quiseres”, deixando implícito que aquele “tu” remete a uma vontade interior autêntica e profunda.
Não que isso tenha valido o tempo todo para o próprio Raul. O fato, porém, é que todo o filme de Carvalho – e mesmo nos momentos mais dolorosos –, transpira o panteísmo raulseixista, ou aquilo que de bom grado eu chamaria seu egoísmo-panteísmo. Aliás, não sei se eu devo ficar muito grato ou muito puto com Carvalho, pois tenho a impressão de que seu filme diz, indireta mas suficientemente, tudo o que eu gostaria de dizer sobre Raul, e que eu arrolaria sob sua divisa, a meu ver, mais importante: "O amor de todos os mortais".
As mulheres

Um mérito indiscutível de Carvalho foi ter conseguido colher entrevistas de todas as ex-mulheres mais ou menos oficiais de Raul – à exceção da primeira delas, a sempre esquiva Edith Wisner, mas mesmo nesse caso as cenas e fotos (sobretudo do casamento), de uma beleza tão tocante quanto a da própria Edith, de alguma forma suprem a lacuna. Ou melhor, não suprem, mas é até melhor que seja assim, tudo apenas tocado, em se tratando da que foi, provavelmente, a relação mais “romântica” de Raul.
Edith e Raul
Nos outros casos, principalmente de Kika e Gloria Vaquer, fica o testemunho do quão apaixonante foi Raul, o que transpira na orgulhosa reivindicação dessas mulheres belas e fortes de terem sido amadas por ele; e também, no caso de Gloria, no abatimento, ainda presente mas não reduzido à mágoa, de ter sido preterida em algum momento. A certa altura, aliás, Gloria explica o fato de Raul ter tido amantes como um fato relacionado à cultura brasileira, na qual a fidelidade conjugal geraria a suspeita de homossexualismo – o que naturalmente faz pouca justiça à filosofia libertária do próprio Raul, esta sim, à qual ele nunca deixou de ser fiel.
Por outro lado, é pena que Carvalho não tenha chegado a explorar um dos aspectos mais interessantes das relações amorosas de Raul, que é sua imbricação com o trabalho artístico, por meio de parcerias em obras-primas como as delicadíssimas “Sunseed” e “Mata virgem” e a enfezadíssima "Pagando brabo", a primeira com Gloria Vaquer e as outras duas com Tânia Menna Barreto (ambas do excelente Mata virgem), ou as, digamos, transcendentais "DDI (Discagem Direta Interplanetária)", "O segredo da luz" e "Nuit", todas  e várias outras  com Kika Seixas; a última, com um "toque" especial de Schopenhauer.

“E quão longa é a noite...”

Outro registro importante: a declaração de, salvo engano, Gloria Vaquer de que foi o álcool e a cocaína, não a maconha, que esvaíram as forças – e a beleza – do Maluco Beleza. É chocante, aliás, a percepção de como foi abrupto o início da decadência de Raul, cujo primeiro sintoma inequívoco, no filme, é justamente um registro de “Maluco Beleza”, realizado, provavelmente, em estado de semiembriaguez. É comovente ver Raul, a certa altura, tentando interpolar um pequeno discurso sobre si mesmo no meio da canção e obrigando-se a calar, ao perceber que a pausa da letra não era suficiente. É comovente ver as fotos e imagens do ídolo combalido, com os olhos mortiços e o rosto inchado, em contraste com as performances vigorosas de poucos anos antes.
Mas é comovente constatar, também, que esse vigor nunca arrefeceu totalmente, e nesse sentido as imagens dos derradeiros shows com Marcelo Nova já redimem, por si sós, o que quer que eles possam ter significado de ruim em termos de saúde para Raul. O fato fundamental a esse respeito é muito simples, e perceptível no filme: Marcelo proporcionou a Raul a chance de continuar vivo e ativo, além de produzir com ele sua última obra-prima discográfica, não menos irregular mas não menos vigorosa que a maioria delas, a caudalosa A panela do diabo.
Marcelo e Raul, + ou novos
Só pra terminar

Eu já disse, e repito, que Raul: o início, o fim e o meio não é filme "perfeito" – eis aí, aliás, uma bela e espúria palavra. Pelo contrário, é um filme tão irregular quanto foi a vida e a obra de Raul, e não poderia ser diferente, se Carvalho decide ser fiel à vida de Raul, não só a seus fatos mas, principalmente, seu espírito. É um tipo de “respeito pelo objeto” nos obriga a assistir e até nos saturar com cenas mais ou menos ridículas – mas sempre, também, seu quê de poesia. Como, por exemplo, Carvalho poderia ser fiel ao espírito de Raul se não concedesse o espaço reivindicado por seus amigos de infância, com suas demandas de publicidade ou suas “performances” tão risíveis quanto, às vezes, admiráveis? É verdade que às vezes o excesso de edição incrementa (ou até determina) o kitsch da situação[2], mas nem o kitsck – e, claro, o brega – era estranho a Raul nem Carvalho se furta ao outro lado, digo, um dos outros lados de Raul, a acidez irônica, permitindo-se, por exemplo, acentuar o ranço autoritário de um desses tipos impagáveis que encarrega-se, ele mesmo, de mandar cortar a cena – o que é impagavelmente mantido na edição.
Trazer à tona o espírito de Raul significa ouvir seus espíritos, os que emergiram dele e os que o rondaram, os que se comunicaram com ele, incluindo aí aqueles de onde ele adveio (por exemplo, Élvis, Gonzaga etc.). Ouvi-los e respeitá-los, menos, porém, no sentido de uma atitude formal ou servil que no de atender ao que eles demandam – de responder-lhes, de dialogar com eles. Às vezes, talvez, de formas meio abusivas, como me parece ser pelo menos um caso: o da inclusão da mensagem que uma das filhas de Raul lê pela internet recusando-se a conceder entrevista sobre o pai – inclusão algo birrenta e perfeitamente desnecessária, mesmo porque a moça acabou concedendo a entrevista, que aliás tinha acabado de ser mostrada. Se também uma pequena baixeza como essa pode ser tributada ao “espírito de Raul” (por exemplo, em “Você roubou meu videocassete”), este seria um caso, talvez, em que o diretor poderia evitar esse “contágio”...
Mas são detalhes, embora detalhes importantes, como tudo o que diz respeito a Raul para seus fãs inesgotáveis. Pois Raul é eterno, e sempre vai haver um maluco para gritar, em alguma “cover night” de rock inglês: TOCA RAUL!!! Sempre vai haver uma criança que, distraída ou atentamente, ouvirá Raul e se encantará, no mesmo instante e para sempre, com sua verve, seu ritmo e seu canto.

[1] Não fica claro se ele conseguiu, o que aliás é bem possível: acertar na mosca, como mostra outra cena (também, aliás, algo impressionante), é uma especialidade de Coelho. Mas é claro que, a despeito disso, Carvalho não deixaria de dar a última palavra a Raul: “Porque cê mata uma e vem outra em meu lugar!”.

[2] Numa cena, um dos amigos – o, digamos, mais “maluco beleza” – de Raul canta “Blue suede shoes”, em cenas intercaladas com as de um registro ao vivo de Élvis, cenas que – é o pior de tudo – se fundem no fim.

Extrema-direita cresce na França, mas socialista deve derrotar Sarkozy


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Pesquisas de domingo (22) e segunda-feira (23) apontam socialista François Hollande com percentuais entre 53% e 56% para segundo turno | Foto: Divulgação

Felipe Prestes no SUL21

Em sua primeira eleição presidencial, Marine Le Pen já superou o pai. Em cinco eleições disputadas pela Frente Nacional, Jean-Marie Le Pen nunca havia chegado aos mais de 6,4 milhões de votos – ou 17,9% — conquistados pela filha mo último domingo (22), resultado que a colocou na terceira colocação, atrás do socialista François Hollande e do atual presidente Nicolas Sarkozy, da União por um Movimento Popular, de direita. Nem em 2002, quando alcançou o 2º turno, o Le Pen pai alcançou o feito da filha. Naquela ocasião, fez 4,8 milhões de votos no 1º turno e apenas 5,25 milhões no 2º, chegando a 17,79% do eleitorado francês.
Com discurso xenófobo e contra a União Europeia, Marine assusta os países vizinhos e o mundo. Sua votação expressiva, entretanto, não deve pautar o próximo governo da França, porque as pesquisas indicam a vitória do socialista François Hollande, mesmo com a demonstração de força da direita.
Ao contrário do Brasil, o 2º turno na França ocorre apenas duas semanas após o 1º. Há pouco tempo, portanto, para reviravoltas. Pesquisas de quatro diferentes institutos feitas neste domingo (22) ou nesta segunda (23) mostram Hollande tendo entre 53 e 56% dos votos válidos. O atual presidente Nicolas Sarkozy teria entre 44 e 47%. É bem verdade que há tendência de crescimento de Sarkozy. Na semana que antecedeu o 1º turno, as projeções de diversos institutos mostravam Hollande com 54 a 57%.
A votação de Sarkozy no primeiro escrutínio chegou a ser maior do que apontavam as pesquisas. O presidente obteve 27,18%, mas havia chegado a estar abaixo de 20% em alguns levantamentos. Mas Hollande ficou mesmo na frente, conforme apontavam os institutos. E isto tem forte significado. É a primeira vez que um presidente não vence o 1º turno desde a fundação da 5ª República, em 1958. A desaprovação do francês a Sarkozy levou-o, portanto, a um feito negativo único, histórico.
Os socialistas, por sua vez, não venciam um 1º turno desde que Lionel Jospin venceu Jacques Chirac, em 1997, mas acabou perdendo no 2º turno. Hollande obteve a primeira vitória dos socialistas em Paris na história e abocanhou 35 departamentos em que Sarkozy havia vencido em 2007 (ao todo são 100 departamentos). Após a confirmação dos resultados, Hollande afirmou que o resultado era um “castigo” para Sarkozy.
Nicolas Sarkozy precisaria puxar para si cerca de 80% dos votos da extrema direita para vencer segundo turno na França | Foto: World Economic Forum/Flickr

Como ficará o voto dos eleitores derrotados no 1º turno

Com a enorme desaprovação, não surpreende, portanto, que Sarkozy não esteja conseguindo capitalizar boa parte dos votos da extrema-direita. Em quatro diferentes pesquisas feitas no último domingo, Hollande oscila entre 18 e 31% dos votos dos eleitores de Marine Le Pen para o 2º turno. Sarkozy tem entre 48 e 60% dos votos da candidata da Frente Nacional e calcula-se que precisaria chegar a 80% dos eleitores dela para vencer.
Além disto, o número de pessoas que saíram de casa para votar foi considerado bastante alto, aproximadamente 80%. Assim, é difícil capitalizar em cima dos que não votaram. E uma pesquisa do instituto CSA mostra que Hollande teria 28% dos votos dos que não compareceram, brancos e nulos contra 13% de Sarkozy.
O atual presidente também deve lutar pelos votos do centrista François Bayrou, que ficou na quinta colocação, com 9,13% dos votos. Segundo quatro institutos de pesquisa, Sarkozy tem entre 25 e 38% das intenções de voto dos eleitores de Bayrou; Hollande tem entre 32 e 40%.
À esquerda, as chances de abocanhar votos para Sarkozy são quase nulas. Entre 83 e 91% dos eleitores do quarto colocado, o comunista Jean-Luc Mélenchon, que teve 11,1% dos votos, devem votar em François Hollande. Sarkozy deve ter entre 3 e 6% dos votos dos comunistas. Proporção semelhante entre os que votaram na candidata verde Eva Joly, que teve 2,31% dos votos.
Ainda no domingo eleitoral, Mélenchon e Joly conclamaram seus eleitores a derrotar Sarkozy. Mélenchon pediu que no dia 6 de maio seus eleitores votem “para vencer Sarkozy, como se estivessem votando em mim”. Joly pediu a “todos que compartilham dos meus valores republicanos a vencer Sarkozy e reunir-se em torno de Hollande”. O centrista Bayrou, por sua vez, manifestou sua preocupação com o crescimento da extrema-direita, mas disse que quer ouvir Sarkozy e Hollande sobre pontos fundamentais de seu programa para então definir-se por uma das candidaturas.

Sarkozy deve acenar ainda mais para a direita

Analistas apontam que em 2007, ano em que a votação de Jean-Marie Le Pen caíra muito em relação a 2002, Nicolas Sarkozy havia conseguido já no 1º turno abocanhar os votos da extrema-direita. Agora, ela o rejeitou na primeira votação. Mesmo correndo o risco de perder os votos do centro, Sarkozy acenou que deve correr atrás dos extremistas.
Guillaume Paumier
Tentando atrair voto da extrema direita, Sarkozy afirma que "respeito às fronteiras" e "luta contra a imigração" são temas prioritários para 2º turno na França | Foto: Guillaume Paumier

Em seu discurso após a divulgação dos resultados, ele afirmou que o “respeito às fronteiras” e a “luta contra a imigração”, além da “família e do trabalho” deveriam ser temas prioritários do debate político do 2º turno. Ele também mostrou-se compreensivo com o eleitor de extrema-direita. “Vejo esta votação (em Le Pen) como um grito de dor. Meu dever é ouvir os franceses”.
Surpreendentemente, Marine Le Pen não deve se definir por nenhum dos candidatos. Segundo um porta-voz, a Frente Nacional considera que Hollande e Sarkozy têm “programas semelhantes”. Ela deve fazer uma manifestação sobre o 2º turno no dia 1º de Maio, quando tradicionalmente a Frente Nacional faz ato em memória a Joana D’Arc, mas dificilmente irá abrir voto a alguém e, com um discurso contra a “política tradicional”, é provável que ela peça o voto em branco.
No xadrez político, diz-se que Le Pen, que se considera a única oposição possível à esquerda, torce por uma vitória socialista. Assim, ela, que tem apenas 43 anos, contaria com a derrota de Sarkozy para arrebanhar aliados em seu partido e se credenciar como grande liderança da direita no país.
Buscando votos à extrema-direita, Sarkozy pode não conquistar o apoio do centro. Com François Bayrou, a estratégia do atual presidente é diferente, buscando apoio político, mas não necessariamente ideológico. Nos bastidores, diz-se que o candidato à reeleição irá prometer a indicação de Bayrou para primeiro-ministro. Ao mesmo tempo, Sarkozy também tenta um discurso quase esquizofrênico, buscando acenar timidamente para a esquerda. Após o pleito deste domingo, ele afirmou que foi alvo de mentiras, criticou a cobertura da imprensa, e acusou os socialistas de não irem onde estão os trabalhadores, mas em “jantares caros”. Sarkozy também disse que sua campanha é voltada aos aposentados e aos trabalhadores rurais “que não querem morrer”.

Crise empurra a Europa para os extremos

A ascensão da extrema-direita na França preocupa a União Europeia e até governos de direita em países vizinhos. Segundo reportagem do El Pais, um porta-voz da UE disse que estes ideais se chocam com os ideais promovidos pelas instituições europeias. O ministro das Relações Exteriores da Espanha, que é governada pela direita, também mostrou preocupação, ressaltando que as duas grandes guerras foram precedidas por “este tipo de ideologias, o que se acentua com as crises econômicas”.
Rémy Noyon
Marine Le Pen não deve recomendar voto nem a Sarkozy, nem a Hollande; segundo Frente Nacional, ambos têm "discursos semelhantes" | Foto: Rémy Noyon

O jornal espanhol aponta que há crescimento da extrema-direita não só na França, mas na Holanda, Áustria, Suécia, Dinamarca, Hungria, Itália e no próprio Parlamento europeu. No país onde a crise financeira é mais latente, a Grécia, houve crescimento dos dois extremos, esquerda e direita. Fenômeno semelhante ocorre na França. É impossível ignorar o enorme crescimento dos comunistas. Em 2007, eles haviam tido 2% dos votos para presidente contra 11% no pleito atual, resultado mais de cinco vezes superior.
O discurso da Frente de Esquerda capitaneada por Mélenchon era também flagrantemente contra o status quo – o que não deixa de ser verdade, mas 180 graus oposto, para o discurso de Le Pen. Até ao pedir voto para Hollande, o comunista foi claro: era para votar contra uma Europa sequestrada pelo sistema financeiro, ou, nas palavras do candidato derrotado, “acabar com o diktat de Merkel e Sarkozy”.

Socialistas prometem não fazer concessões à extrema-direita

Para os socialistas, em uma análise que é corroborada por analistas, Sarkozy é culpado pelo crescimento da ultra-direita. Ao fazer um governo dúbio, que ora joga para a extrema-direita, ora joga contra ela, ele acabou alimentando o monstro, por assim dizer. Já que o presidente alimenta a extrema-direita, mas não chega a se assumir como tal, a própria Frente Nacional foi quem mais ganhou com isto.
“Estou ciente de que há uma parte de nossos cidadãos que têm sido tentados a ir para a extrema-direita, porque não sabem como traduzir as suas decepções e desilusões. O chefe da ascensão da extrema direita é aquele que, por vezes, usou as palavras da extrema-direita para tentar impedir o seu progresso”, disse Hollande, no domingo à noite, apontando o dedo para o adversário.
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"O chefe da ascensão da extrema direita é aquele que, por vezes, usou as palavras da extrema-direita para tentar impedir o seu progresso”, diz Hollande, em recado direto a Sarkozy | Foto: Divulgação

A estratégia de campanha do socialista não será a de alimentar a extrema-direita. Ao contrário, será a de mostrar ao eleitor descontente com o status quo, com o desemprego e a crise econômica, o voto na esquerda pode ser a melhor opção. “Temos que provar que nós somos uma resposta a esta raiva, não Sarkozy”, disse o dirigente socialista Stephane Le Foll.
O dirigente afirmou ainda que Hollande não irá retroceder em nenhum dos 60 compromissos de seu programa de governo. Não é um programa de mudanças radicais, mas difere muito da agenda de Sarkozy e nem de longe tangencia as ideias da extrema-direita.
No campo econômico, Hollande se propõe a ter um Estado muito maior do que pregam Merkel, Sarkozy e o sistema financeiro. Um dos pontos centrais é o aumento da carga tributária, com a recuperação de 29 bilhões de euros, eliminando “brechas fiscais”. Há também um aumento de 15% na taxação do lucro de bancos. Com os recursos, o socialista promete a criação de um banco público de investimento para pequenas e micro empresas, aumento dos subsídios à educação e à habitação. Outra medida do programa de governo de Hollande vai totalmente na contramão das reformas trabalhistas que estão sendo feitas em países europeus: o socialista promete dificultar as demissões.
Quanto a questões ligadas à moral e os bons costumes, Hollande promete opor-se totalmente à extrema-direita. Seu programa de governo inclui o direito de casamento e adoção por casais homossexuais e a permissão da eutanásia em alguns casos. No que diz respeito à imigração, o socialista propõe aumentar os direitos dos estrangeiros, permitindo que aqueles que vivem legalmente há cinco anos possam votar.
Com informações de Le Monde, Le Fígaro, RFI, El Pais, BBC, Carta Maior e PolicyMic

segunda-feira, 23 de abril de 2012

A CPI e o fim do jornalismo investigativo de araque


  • Leandro Fortes
    PorLeandro Fortes na CARTA CAPITAL
     
    Jornalista, professor e escritor, autor dos livros 'Jornalismo Investigativo', 'Cayman: o dossiê do medo' e 'Fragmentos da Grande Guerra', entre outros. Sua mais recente obra é 'Os segredos das redações'. É criador do curso de jornalismo on line do Senac-DF e professor da Escola Livre de Jornalismo.

Há oito anos, escrevi um livrete chamado “Jornalismo Investigativo”, como parte do esforço da Editora Contexto em popularizar o conhecimento básico sobre a atividade jornalística no Brasil. Digo “livrete” sem nenhum desmerecimento, muito menos falsa modéstia, mas para reforçar sua aparência miúda e funcional, um livro curto e conceitual onde plantei uma semente de discussão necessária ao tema, apesar das naturais deficiências de linguagem acadêmica de quem jamais foi além do bacharelado. Quis, ainda assim, formular uma conjuntura de ordem prática para, de início, neutralizar a lengalenga de que todo jornalismo é investigativo, um clichê baseado numa meia verdade que serve para esconder uma mentira inteira. Primeiro, é preciso que se diga, nem todo jornalismo é investigativo, embora seja fato que tanto a estrutura da entrevista jornalística como a mais singela das apurações não deixam de ser, no fim das contas, um tipo de investigação. Como é fato que, pelo prisma dessa lógica reducionista, qualquer atividade ligada à produção de conhecimento também é investigativa.
A consideração a que quero chegar é fruto de minha observação profissional, sobretudo ao longo da última década, período em que a imprensa tornou-se, no Brasil, um bloco quase que monolítico de oposição não somente ao governo federal, a partir da eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, mas a tudo e a todos vinculados a agendas da esquerda progressista, aí incluídos, principalmente, os movimentos sociais, os grupos de apoio a minorias e os defensores de cotas raciais. Em todos esses casos, a velha mídia nacional age com atuação estrutural de um partido, empenhada em fazer um discurso conservador quase sempre descolado da realidade, escoltado por um discurso moralista disperso em núcleos de noticiários solidificados, aqui e ali, em matérias, reportagens e editoriais de indignação seletiva.
A solidez – e a eficácia – desse modelo se retroalimenta da defesa permanente do grande capital em detrimento das questões sociais, o que tanto tem garantido um alto grau de financiamento desta estrutura midiática, como tem servido para formar gerações de jornalistas francamente alinhados ao que se convencionou chamar de “economia de mercado”, sem que para tal lhes tenha sido apresentado nenhum mecanismo de crítica ou reflexão. Essa circunstância tem ditado, por exemplo, o comportamento da imprensa em relação a marchas, atos públicos e manifestações de rua, tratados, no todo, como questões relacionadas a trânsito e segurança pública. Interditados, portanto, em seu fundamento social básico e fundamental, sobre o qual o jornalismo comercial dos oligopólios de comunicação do Brasil só se debruça para descer o pau.
O resultado mais perverso dessa estrutura midiática rica e reacionária é a perpetuação de uma política potencialmente criminosa de assassinato de reputações e intimidação de agentes públicos e privados contrários às linhas editoriais desses veículos. Ou, talvez pior ainda, a capacidade destes em atrair esses mesmos agentes para seu ventre, sob a velha promessa de conciliação, para depois, novamente, estrangulá-los sob a vista do público.
“Jornalismo Investigativo”, porém, foi escrito anteriormente ao chamado “escândalo do mensalão”, antes, portanto, de a mídia brasileira formar o bloco partidário ora em progresso, tristemente conservador, que se anuncia diuturnamente como guardião das liberdades de expressão e imprensa – conceitos que mistura de forma deliberada para, justamente, esconder sua real indiferença, tanto por um quanto pelo outro. Distante, por um breve instante de tempo, da guerra ideológica deflagrada a partir do mensalão, me foi possível escrever um livro essencialmente simples sobre o verdadeiro conceito de jornalismo investigativo, ao qual reputo a condição de elemento de influência transversal, e não um gênero capaz de ser enclausurado em editorias, como o são os jornalismos político, econômico, esportivo, cultural, etc.
Jornalismo investigativo é a sistematização de técnicas e conceitos de apuração para a produção de reportagens de fôlego, não necessariamente medidas pelo tamanho, mas pela profundidade de seus temas e, principalmente, pela relevância da notícia que ela, obrigatoriamente, terá que encerrar. Este conceito, portanto, baseado na investigação jornalística, existe para se utilizado em todos os gêneros de reportagem, em maior ou menor grau, por qualquer repórter. Daí minha implicância com o termo “jornalista investigativo”, ostentado por muitos repórteres brasileiros como uma espécie de distintivo de xerife, quando na verdade a investigação jornalística é determinada pela pauta, não pela vaidade de quem a toca. O mesmo vale para o título de “repórter especial”, normalmente uma maneira de o jornalista contar ao mundo que ganha mais que seus colegas de redação, ou que ficou velho demais para estar no mesmo posto de focas recém-formados.
Para compor o livro editado pela Contexto, chamei alguns jornalistas para colaborar com artigos de fundo, como se dizia antigamente, os quais foram publicados nas últimas páginas do livro. Fui o mais plural possível, em muitos sentidos, inclusive ideológico, embora essa ainda não fosse uma discussão relevante, ou pelo menos estimulante, dentro da imprensa brasileira, à época. O mais experiente deles, o jornalista Ricardo Noblat, hoje visceralmente identificado ao bloco de oposição conservadora montado na mídia, havia também escrito um livro para a Contexto sobre sua experiência como editor-chefe do Correio Braziliense, principal diário de Brasília que, por um breve período de oito anos (1994-2002), ele transformou de um pasquim provinciano e corrupto em um jornal respeitado em todo o país. Curiosamente, coube a Noblat assinar um artigo intitulado “Todo jornalismo é investigativo” e, assim, reforçar a lengalenga que o livro esforça-se, da primeira à última página, em desmistificar.
Tivesse hoje que escrever o mesmo livro, eu teria aberto o leque desses artigos e buscaria opiniões menos fechadas na grande imprensa. Em 2004, quando o livro foi escrito (embora lançado no primeiro semestre de 2005), o fenômeno da blogosfera progressista era ainda incipiente, nem tampouco estava em voga a sanha reacionária dos blogs corporativos da velha mídia. No mais, minha intenção era a de fazer um livro didático o bastante para servir de guia inicial para estudantes de jornalismo. Nesse sentido, o livro teve relativo sucesso. Ao longo desses anos, são raras as palestras e debates dos quais participo, Brasil afora, em que não me apareça ao menos um estudante para comentar a obra ou para me pedir que autografe um exemplar.
Faz-se necessário, agora, voltar ao tema para trazer o mínimo equilíbrio ao recrudescimento dessa discussão na mídia, agora às voltas com uma CPI, dita do Cachoeira, mas que poderá lhe revolver as vísceras, finalmente. Contra a comissão se levantaram os suspeitos de sempre, agora, mais do que nunca, prontos a sacar da algibeira o argumento surrado e cafajeste dos atentados às liberdades de imprensa e expressão. A alcova de onde brota essa confusão deliberada entre dois conceitos distintos está prestes a tomar a função antes tão cara a certo patriotismo: o de ser o último refúgio dos canalhas.
Veio da revista Veja, semanal da Editora Abril, a reação mais exaltada da velha mídia, a se autodenominar “imprensa livre” sob ataque de fantasmas do autoritarismo, em previsível – e risível – ataque de pânico, às vésperas de um processo no qual terá que explicar as ligações de um quadro orgânico da empresa, o jornalista Policarpo Jr., com a quadrilha do bicheiro Carlinhos Cachoeira. Primeiro, com novos estudos do Santo Sudário, depois, com revelações sobre a superioridade dos seres altos sobre as baixas criaturas, a revista entrou numa espiral escapista pela qual pretende convencer seus leitores de que a CPI que se avizinha é parte de uma vingança do governo cuja consequência maligna será a de embaçar o julgamento do “mensalão”. Pobres leitores da Veja.
Não há, obviamente, nenhum risco à liberdade de imprensa ou de expressão, nem à democracia e ao bem estar social por causa da CPI do Cachoeira. Há, isso sim, um claro constrangimento de setores da mídia com a possibilidade de serem investigados por autoridades às quais dedicou, na última década, tratamento persecutório, preconceituoso e de desqualificação sumária. Sem falar, é claro, nas 200 ligações do diretor da Veja em Brasília para Cachoeira, mentor confesso de todos os furos jornalísticos da revista neste período. Em recente panfletagem editorial, Veja tentou montar uma defesa prévia a partir de uma tese obtusa pela qual jornalistas e promotores de Justiça obedecem à mesma prática ao visitar o submundo do crime. Daí, a CPI da Cachoeira, ao investigar a associação delituosa entre a Veja e o bicheiro goiano, estaria colocando sob suspeita não os repórteres da semanal da Abril, mas o trabalho de todos os chamados “jornalistas investigativos” do país.
A tese é primária, mas há muita gente no topo da pirâmide social brasileira disposta a acreditar em absurdos, de modo a poder continuar a acreditar nas próprias convicções políticas conservadoras. Caso emblemático é o do atentado da bolinha de papel sofrido pelo tucano José Serra, na campanha eleitoral de 2010. Na época, coube ao Jornal Nacional da TV Globo montar um inesquecível teatro com um perito particular, Ricardo Molina, a fim de dar ao eleitor de Serra um motivo para entrar na fila da urna eleitoral sem a certeza de estar cometendo um ato de desonestidade política. Para tal, fartou-se com a fantasia do rolo-fantasma de fita crepe, gravíssimo pedregulho de plástico e cola a entorpecer as idéias do candidato do PSDB.
Todos nós, jornalistas, já nos deparamos, em menor ou maior escala, com fontes do submundo. Esta é a verdade que a Veja usa para tentar se safar da CPI. Há, contudo, uma diferença importante entre buscar informação e fazer uso de um crime (no caso, o esquema de espionagem da quadrilha de Cachoeira) como elemento de pauta – até porque, do ponto de vista da ética jornalística, o crime em si, este sim, é que deve ser a pauta. A confissão do bicheiro, captada por um grampo da PF, de que “todos os furos” recentes da Veja se originaram dos afazeres de uma confraria de criminosos, nos deixa diante da complexidade desse terrível zeitgeist, o espírito de um tempo determinado pelos espetáculos de vale tudo nas redações brasileiras.
Foi Cachoeira que deu à Veja, a Policarpo Jr., a fita na qual um ex-diretor dos Correios recebe propina. O material foi produzido pela quadrilha de Cachoeira e serviu para criar o escândalo do mensalão. Sob o comando de Policarpo, um jovem repórter de apenas 24 anos, Gustavo Ribeiro, foi instado a invadir o apartamento do ex-ministro José Dirceu, em um hotel de Brasília. Flagrado por uma camareira, o jornalista acabou investigado pela Polícia Civil do Distrito Federal, mas escapou ileso. Não se sabe, até hoje, o que ele pretendia fazer: plantar ou roubar coisas. A matéria de Ribeiro, capa da Veja, era em cima de imagens roubadas do sistema interno de segurança do hotel, onde apareciam políticos e autoridades que freqüentavam o apartamento de Dirceu. A PF desconfia que o roubo (atenção: entre jornalistas de verdade, o roubo seria a pauta) foi levado a cabo pela turma de Cachoeira. A Veja, seria, portanto, receptadora do produto de um crime. Isso se não tiver, ela mesmo, o encomendado.
Por isso, além da podridão política que naturalmente irá vir à tona com a CPI do Cachoeira, o Brasil terá a ótima e rara oportunidade de discutir a ética e os limites do jornalismo a partir de casos concretos. Veremos como irão se comportar, desta feita, os arautos da moralidade da velha mídia, os mesmos que tinham no senador Demóstenes Torres o espelho de suas vontades.

A Revolução Nacional Boliviana, 60 anos depois

Atilio Boron   no CORREIO DA CIDADANIA

A imprensa, inclusive a de inclinações esquerdistas, parece não ter reparado que num 9 de abril como o que passou, mas em 1952, triunfava a Revolução Nacional Boliviana, a mais radical depois da Revolução Mexicana (1910-1917) e, em outro sentido, precursora da Revolução Cubana. Foi uma jornada heróica, que culminou quando o exército, cão de guarda da oligarquia mineradora e proprietária de terras, foi derrotado, desarmado e dissolvido pelos mineiros, após dois dias de combates ferozes. Como no México antes, e Cuba depois, a derrota do exército é a marca decisiva de toda revolução. Como veremos mais abaixo, os acontecimentos na Bolívia impactaram enormemente o jovem Ernesto Guevara, anos antes de se transformar no Che.

Assim como impactou outro jovem, brilhante como ele, Fidel Castro, que em sua célebre defesa “A história me absolverá” (16 de outubro de 1953) dizia a juízes que “se quis estabelecer o mito das armas modernas como pressuposto de toda impossibilidade de luta aberta e frontal do povo contra a tirania. Os desfiles militares e as exibições aparatosas dos equipamentos bélicos têm por objetivo fomentar esse mito e criar na cidadania um complexo de absoluta impotência. Nenhuma arma, nenhuma força é capaz de vencer o povo que se decide a lutar pelos seus direitos. Os exemplos históricos, passados e presentes, são incontáveis. Está bem recente o caso da Bolívia, no qual os mineiros, com cartuchos de dinamite, derrotaram e massacram os regimentos do exército regular” (1).

A história da Revolução Boliviana oferece numerosos ensinamentos de grande utilidade para as lutas emancipatórias que travam nossos povos. Suas conquistas iniciais foram imensas, impossíveis de subestimar. Mas careceram de sustentação política, econômica e ideológica, necessárias para a garantia de sua irreversibilidade. A revolução começou a ser gestada poucos meses antes, em 1951, quando o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), liderado por Victor Paz Estenssoro, triunfa nas eleições presidenciais deste ano. Pouco depois, se produz um golpe de Estado, promovido pela oligarquia mineradora, que instala uma Junta Militar com o objetivo de impedir o acesso ao poder do chefe do MNR, que acaba se exilando na Argentina.

O que se segue é uma crescente inquietude social e política que se traduz primeiro em uma impetuosa mobilização de mineiros e camponeses, e pouco depois ao que a teoria marxista denomina uma “dualidade de poderes”. Quer dizer, uma profunda brecha no Estado burguês, que debilitado pela rebelião “dos de baixo” perde sua capacidade de reclamar e obter a subordinação a suas ordens, portanto, não pode impedir o surgimento de um formidável antagonista, um poder real, efetivo, não formal nem constitucional, mas um poder constituinte baseado no imenso apoio popular do bloco formado pelos camponeses e mineiros em armas.

Tal como advertiu Lênin, situações deste tipo são altamente instáveis e rapidamente se definem em uma ou outra direção. Isso foi precisamente o que ocorreu em 9 de abril de 1952, na massiva insurreição popular que teve como epicentros La Paz e Oruro. Ali, o exército foi derrotado e desmantelado, substituído por milícias populares de mineiros e camponeses, ao melhor estilo Comuna de Paris. Essas jornadas, banhadas pelo sangue de pelo menos 500 mortos, abriram o caminho para a conformação de um governo provisório sob mando de Hernan Siles Suazo, outro dirigente do MNR, e o mais importante dirigente sindical da época, o mineiro Juan Lechín Oquendo, que foram literalmente instalados no Palácio Quemado pelas massas à espera do retorno ao país de quem consideravam seu legítimo presidente, Victor Paz Estenssoro.

A derrota e dissolução do exército foi uma das grandes conquistas revolucionárias dos acontecimentos de abril de 1952. Mas houve outros: pouco depois, em julho do mesmo ano, aprovou-se uma nova legislação, concedendo o sufrágio universal às mulheres, aos analfabetos e aos indígenas. Em outubro, se nacionalizaram as minas, principalmente as de estanho, tradicionalmente em mãos de uma tríade de grandes proprietários conhecida como os “barões do estanho”: Simon Iturri Patinõ, Carlos Victor Aramayo e Mauricio Hochschild. Com a nacionalização, tais empresas passaram a fazer parte de uma nova corporação estatal mineradora, a COMIBOL, ao passo que o governo assumia o monopólio da exportação de estanho. Ao mesmo tempo, se lançam programas para promover a industrialização do estanho na Bolívia, fomentar as atividades petrolíferas no oriente boliviano e no sul, de maneira mais geral, e afirmar a soberania nacional sobre os recursos naturais do país, construindo caminhos que permitissem unir o ocidente do altiplano com as planícies orientais.

De enorme importância é a divisão agrária, que se institucionalizou com a Lei de Reforma Agrária de agosto de 1953, que permitiu a destituição do latifúndio, concentrado nas regiões andinas, e a distribuição de terras aos indígenas, ao mesmo tempo em que favoreceu a sindicalização dos camponeses. A criação da COB (Central Operária Boliviana) teve lugar dias depois do triunfo da insurreição. A COB foi um dos pilares fundamentais de apoio ao novo governo por sua ativa participação em todos os níveis do aparato estatal. Seu líder histórico, Juan Lechín Oquendo, foi eleito Secretário Geral da COB e nomeado ministro das Minas e Petróleo do novo governo. Foi um dos líderes populares mais conscientes de que sem armar adequadamente as milícias populares a estabilidade do novo governo se veria comprometida. Lamentavelmente, suas palavras caíram no vazio.
Dizíamos no início que apesar de suas conquistas a Revolução Boliviana não conseguiu evitar uma curva descendente, que a conduziu a uma derrota definitiva em 4 de novembro de 1964 com o golpe de Estado de René Barrientos Ortuño, sinistro personagem que como presidente da Bolívia orquestraria, junto à CIA e o Pentágono, a caça e posterior assassinato de Che em território boliviano. Mas a derrota da revolução já pulsava em seu seio muito antes.

Em primeiro lugar, pela política de alianças, porque mesmo que em sua fase inicial o poder real estivesse nas mãos dos operários e camponeses armados, a representação política da revolução foi confiada ao MNR e seus líderes, expoentes de um setor social que apesar de seu discurso anti-oligárquico conservava estreitos laços com essa classe e a burguesia boliviana. Pior ainda, tanto Paz Estenssoro como Siles Suazo demonstraram ser facilmente cooptáveis pela astuta diplomacia estadunidense. Contrariamente ao habitual, essa não demorou a reconhecer o novo governo surgido dos feitos revolucionários de abril, em que pese que neste mesmo momento preparava uma invasão de mercenários para depor o governo de Jacobo Arbenz na Guatemala.

A importância que o estanho tinha para a indústria militar dos Estados Unidos e sua acumulação de reservas minerais, estratégica nos marcos da Guerra da Coréia e do perigo de uma Terceira Guerra Mundial, é sem dúvida um dos fatores que explica atitudes diferentes em um e outro caso. Enquanto Washington tinha muitos países que lhe podiam vender café ou as bananas que a Guatemala exportava, não havia tantos que pudessem oferecer o estanho que necessitava seu aparato industrial e militar. De fato, pouco mais da metade das exportações deste mineral foram adquiridas pelos Estados Unidos, o que colocava o império nas melhores condições possíveis de negociação para impor suas políticas. Além do mais, a fragilidade estrutural da economia boliviana, sem saída ao mar e lastreada por séculos de opressão e exploração, a tornava muito dependente dos programas de “ajuda” disponibilizados por Washington.

E as fraquezas ideológicas da pequena burguesia do MNR, sob pretexto da necessidade de ser “realistas” e não contrapor os interesses imperiais, permitiram encerrar o círculo de submissão ao imperialismo. Um dos elementos cruciais que os Estados Unidos controlou com muita sagacidade foi a necessidade “técnica” de reconstituir o derrotado exército. Efetivamente, dois anos depois do triunfo da revolução se reabria a Escola Militar e começava o processo de liquidação das milícias populares. Seria o exército quem, em 1964, dispararia o tiro de misericórdia na revolução. Em todo caso foi essa necessidade de manter as “boas relações” com o império que marcou o início do Termidor revolucionário. A Revolução Nacional não só foi uma revolução traída como também interrompida.

Conta um de seus biógrafos que enquanto Ernesto Guevara, de passagem pela Bolívia em sua segunda viagem pela América Latina, esperava para ser recebido por um alto funcionário do recentemente estabelecido Ministério dos Assuntos Camponeses, se encontrou com um grupo de índios que tinham chegado ao lugar para recolher os títulos de propriedade prometidos pela repartição agrária. Mas antes de chegarem ao escritório do funcionário a cargo do expediente, ele os enfileirou e lhes aspergiu inseticida. Guevara comentaria, em uma de suas cartas, que “o MNR faz a revolução com DDT” (2).

O drama de 1952 poderia se resumir assim: uma revolução feita por operários mineiros e camponeses, que juntos empunham as armas e destroem o sustentáculo fundamental da decrépita ordem oligárquica, o exército, para depois ceder o controle do Estado aos aliados pequeno-burgueses do campo popular e aceitar que fossem eles, e não quem até então tinha o poder real em mãos, isto é, as armas, os que determinariam o rumo do governo surgido de uma revolução, cujo destino seria, doze anos depois, vítima de uma contra-revolução.

Outros fatores que também operaram foram os seguintes: a) a divisão agrária que ao não estar acompanhada de intenso trabalho de organização e educação políticas terminou por acuar os camponeses a seu pequeno quinhão, abandonando a cena política. Ocorreu aqui algo similar ao acontecido com os camponeses arrendatários franceses analisados por Marx em seu18> de Brumário de Luis Bonaparte: o fetichismo que cria a propriedade privada sobre uma ínfima – a rigor, misérrima! – porção de terra, que os desmobilizou e, pior ainda, durante algum tempo os converteu em bases de apoio de diversos governos anti-revolucionários, como o do já mencionado René Barrientos Ortuño;

b) por outro lado, os setores mineiros não conseguiram uma sólida e duradoura aliança com os camponeses e o progressivo isolamento dos primeiros facilitou, poucas décadas depois, sua debilitação organizacional, até terminar em sua desaparição como atores econômicos ou políticos de relevância na Bolívia contemporânea;

c) O ativismo estadunidense para frustrar processos revolucionários, tanto de fora – com pressões econômicas e políticas, mentirosas promessas de colaboração, ou ameaças veladas ou abertas de intervenção – como de dentro, atraindo para a sua hegemonia setores de um certo nacionalismo popular que, em sua ilusão, sonhavam com um projeto nacional que ao mesmo tempo não fosse socialista e fosse radicalmente anti-imperialista, coisa que algumas vezes se demonstrou impossível.

d) por último, a violação na Bolívia do MNR de uma espécie de “cláusula pétrea” de todas as revoluções e/ou processos de reformismo radical: ou se avança resolutamente em direção a novas metas que aprofundem a estabilidade e irreversibilidade das conquistas iniciais ou o processo estanca, decai e morre.

Mas apesar desse breve balanço de vitórias e derrotas, é justo e necessário render homenagem ao heroísmo e abnegação demonstrados pelo povo boliviano nas épicas batalhas travadas há sessenta anos. Os méritos dos revolucionários de abril não se mancham pela capitulação do fracassado governo instaurado pela revolução. O trabalho da insurreição não foi tão metódico e radical como deveria, apesar das óbvias perguntas contra-fáticas sobre se as coisas poderiam ou não ter ocorrido de outra maneira. Em todo caso, o certo é que com o fim do ciclo revolucionário aberto naquela ocasião teriam de transcorrer 50 longos anos – anos de sofrimento, miséria e morte para o povo boliviano – para que no início deste século se pusesse fim a tanta decadência nas grandes mobilizações populares que, em 2005, culminaram na eleição de Evo Morales à presidência da Bolívia, abrindo assim um novo e luminoso capítulo na história deste país irmão.

Notas:

1) Fidel Castro Ruz, A História me absolverá - edição definitiva e anotada.
2) Ver Frank Niess, >Che Guevara. Essa história também narra o Che em >América Latina, despertar de um continente, uma compilação de suas notas de viagem. Em uma dessas cartas, Che dizia que uma revolução que age desse modo com os camponeses “não pode ser uma revolução verdadeira”.

Atilio Borón é doutor em Ciência Política pela Harvard University, professor titular de Filosofia da Política da Universidade de Buenos Aires e ex-secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO).
Tradução: Gabriel Brito, jornalista do Correio da Cidadania.