IHU Online
“Temos
um mundo a construir”. Portanto, “ousem ouvir as vozes hereges, ousem
criar grupos de estudo, ousem navegar nos livros velhos escondidos nas
prateleiras”. É com esse conselho, que a jornalista Elaine Tavares
incentiva os estudantes de Comunicação e colegas de profissão a
compreenderem “que há mais coisas no jornalismo do que aquilo que é
repetido nas salas de aula”.
Com uma longa experiência em
diversos veículos de comunicação, Elaine enfatiza que os jornalistas
devem caminhar em busca da boa utopia e isso significa ultrapassar as
barreiras de manipulação à direita e à esquerda, e praticar jornalismo
“como uma forma de conhecimento”. Autora do livro recém lançado, Em
busca da Utopia – os caminhos da reportagem no Brasil, dos anos 50 aos
anos 90 (Florianópolis: Ed. Instituto de Estudos
Latinoamericano-Americanos, 2012), ela ressalta que a prática
jornalística pode levar o “leitor/espectador a pensar, a se desalojar do
mundo tal qual ele é – injusto, opressor, excludente”. Nesse sentido,
assegura: “O jornalismo pode ser transformador, pode embalar a utopia”.
Para
que os jornalistas não deixem morrer as suas utopias e as levem adiante
na prática do dia a dia, os cursos de jornalismo “precisam ensinar a
pensar”, pois o “o jornalista que pensa tem mais chance de caminhar na
direção da utopia”, assinala à IHU On-Line. Na entrevista a seguir,
concedida por e-mail, Elaine reflete sobre a prática jornalística e o
desafio das universidades de formarem profissionais críticos. “Um aluno
do jornalismo deveria ter uma sólida formação humanística, política e
econômica, deveria entender os grandes problemas estruturais de seu país
e de seu continente”, diz. Para isso, assegura, “primeiro há que mudar a
universidade, subverter esse ensino que domestica. Há que se produzir
um pensamento autóctone sobre o jornalismo, conhecer nossos pensadores
do passado, avançar com eles, superá-los. Há que conhecer a história do
nosso povo, há que estudar filosofia, reaprender a pensar. Depois disso,
há que voltar a narrar a vida com um texto que descreve, que narra, que
contextualiza”.
Elaine Tavares é jornalista do Instituto de
Estudos Latino-Americanos – IELA, da Universidade Federal de Santa
Catarina e escreve no blog Palavras Insurgentes, no endereço eletrônico
http://eteia.blogspot.com.br/.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que caracteriza o jornalismo utópico?
Elaine Tavares –
Na verdade, não há um jornalismo utópico. O que busquei foi ver se,
como e onde aparecia a utopia no jornalismo (que era e é o meu fazer
cotidiano) já que esse desejo de um lá-na-frente melhor parece ser algo
que faz parte da consciência humana. E por que eu decidi fazer essa
busca? Porque naqueles dias do final dos anos 1990 havia uma espécie de
histeria na mídia e nas esferas intelectuais sobre o fim de todas as
utopias. Falava-se do fim da história, fim do socialismo, fim das
grandes narrativas. Eu não acreditava nisso, porque via a utopia
aparecer explícita no Equador, onde os indígenas ocupavam as igrejas e
exigiam seus direitos, e principalmente no México, onde os novos
zapatistas faziam um enfrentamento armado ao Estado, usando a internet
como um elemento de potencialização dessa resistência. Então, se a
realidade me dizia que a utopia vivia, não dava para crer no que
apregoavam alguns filósofos, notadamente europeus. Então fui buscar na
narrativa jornalística, o sinal dessa utopia. E encontrei. A vida real,
quando narrada, escancara a utopia humana. E também percebi que as
utopias podiam estar claudicando lá na Europa, mas não aqui na América
Latina. Ao contrário, aqui vivíamos um alvorecer de novas e belas
utopias.
Como a utopia aparece nas reportagens
brasileiras produzidas entre os anos de 1950 e 1990, nas revistas O
Cruzeiro, Realidade, Veja e Época?
Há um teórico
brasileiro chamado Teixeira Coelho que fez um trabalho muito
interessante sobre a utopia. E ele vai além da ideia de que a utopia é
só um lá-na-frente esperado. Ele divide a utopia em duas vias: a
eutopia, que seria a construção de um lá-na-frente bom, e a distopia,
que seria um lá-na-frente ruim (ele coloca nesse patamar o nazismo, por
exemplo, que era o sonho de um homem, e acabou sendo o de parte de uma
nação). Então, com base na ideia de Ernest Bloch – que fala da utopia
como a negação de um real que não é bom e a busca de um lá-na-frente
possível – junto da proposta de Teixeira Coelho, fui analisar as
revistas. O que descobri foi que a utopia aparece em todas essas
revistas, mesmo na Veja e na Época – que fazem um péssimo jornalismo. E
como? Na Cruzeiro, a utopia assoma na forma de narrar. É quando a
reportagem começa a se constituir como texto descritivo, interpretativo,
para além da opinião. Esse tipo de narrativa consegue também trazer
para o texto a utopia da época, anos 1960, tempos de grandes mudanças
culturais e políticas, nova temperatura no mundo. Na revista Realidade a
utopia se mostra plena, com a reportagem – texto e foto – sendo capaz
de expressar o espírito da época, que era de revoluções. Mesmo sendo
feita dentro de um regime militar, como o vivido no Brasil, a Realidade
trazia temas instigantes e reportagens descritivas que pareciam roteiros
cinematográficos, tamanha a sua capacidade de transportar o leitor para
dentro da história. Ali, a forma de narrar impressionista chegava ao
seu auge. Expunha as chagas abertas da vida brasileira em histórias
reais e o jornalismo adquiria o sentido da arte. A revista Veja
atravessa os anos 1980 e 1990 como um fenômeno editorial e, por incrível
que pareça, também apresenta a marca da utopia, nesse caso como
distopia (lugar ruim). Busca, na nova narrativa hegemonizada e
impessoal, sem marca de autor, consolidar uma sociedade submetida à
indústria cultural. E aí, o jornalismo deixa de ser uma narrativa
impressionista, descritiva e interpretativa e passa a ser uma espécie de
“gosma“, sem forma e sem sabor. Ainda assim, mesmo nela, de vez em
quando aparece um texto de autor, no qual o jornalista ousa narrar a
vida mesma, e aí aparece de novo a utopia como eutopia. É muito bonito
de ver. Por fim, a Época, que aparece para “arrebentar“ nos anos 1990,
com seus drops informativos e infográficos, chega ao ápice da distopia,
com o jornalismo perdendo todas as suas características como narrativa
da vida. Os textos são horríveis, retalhos de vários olhos, sem
identidade. A maioria das reportagens são autopropaganda da Globo, ou
seja, a revista servindo como espaço para vender ainda mais a
programação da TV. E ali, no auge da gosma, um ou outro jornalista-autor
também aparece e faz aparecer a utopia como um raio de luz.
Sob quais influências se construiu o pensamento teórico acerca do jornalismo e da reportagem no Brasil?
Essa
foi outra curiosidade minha. Durante meu tempo na faculdade era comum a
gente estudar autores estrangeiros, falar do jornalismo que se fazia
nos Estados Unidos e muito pouco se falava dos autores brasileiros.
Então fui procurar quem tinha sido o “guru“ de cada época. Foi um
trabalho muito legal porque acabei encontrando autores incríveis, com
pensamentos muito originais sobre o jornalismo, como, por exemplo, Celso
Kelly, que chegou a escrever uma teoria estética para o jornalismo, e
Antônio Olinto, que é uma preciosidade. Ele diz: o jornalista tem que
ser como o artista, que mantem intacta em si a capacidade de sentir e
transmitir sentimentos estranhamente verdadeiros. Não é bárbaro? Agora, é
claro, o jornalismo brasileiro pós-1950 se constituiu hegemonicamente
como cópia do jornalismo estadunidense. Os autores mais originais
ficaram à margem e não é sem razão que são praticamente desconhecidos
nos cursos de jornalismo hoje. Por exemplo, o chamado “novo jornalismo“,
incensado como um jeito de narrar nascido nos EUA, já era uma prática
aqui no Brasil bem antes de surgir por lá. Pode-se ver esses textos
intimistas e impressionistas na revista O Cruzeiro. São as coisas do
nosso colonialismo mental. Infelizmente o jornalismo que se pratica no
Brasil – na maioria dos veículos – segue sendo uma cópia mal aparada do
jornalismo estadunidense. Uma pena. Temos uma linda história e bons
teóricos, como é o caso do Adelmo Genro, que, a meu ver, é o que há de
mais original na discussão do fazer jornalístico. Um autor para ser
estudado à exaustão.
No caso específico da revista Veja, que mudanças editoriais e utópicas percebe ao longo do tempo?
A
Veja é um caso de autofagia (de uma empresa) em nome de um modelo de
mundo. Explico. Ela nasce nos anos 1970 dentro da mesma editora que
fazia a Realidade, que era uma beleza de revista, com reportagens
incríveis. E ela vem para implantar no Brasil um estilo de jornalismo
que assomava nos Estados Unidos. Essa coisa insossa de informação sem
contexto, e que não é uma ação sem sentido. Ela é parte de um modo de
ser e estar no mundo. Escrever como se estivesse informando, mas sem na
verdade informar. A Veja entrou no mercado e matou a Realidade, que era o
jornalismo de profundidade, que levava ao pensamento, ao
questionamento. A mesma empresa mata uma revista boa para que a revista
ruim pudesse começar a atuar como a usina ideológica de um modelo que se
queria para o Brasil. Foi um projeto utópico (distópico) da classe
dominante. Trazer a “modernidade“ e emburrecer as pessoas. Encurtam os
textos, tiram o contexto, passam a doutrinar. Já não era mais
jornalismo. Basta ver o que é a Veja hoje: uma máquina de propaganda da
distopia da direita brasileira. Jornalismo ali é coisa rara. Quando
aparece é obra solitária de algum jornalista.
Partindo
do pressuposto de que a utopia é parte da consciência do ser humano,
como o jornalista lida com sua utopia pessoal em veículos que têm visões
de mundo divergentes, especialmente no caso dos oligopólios que dominam
a informação?
Penso que o jornalista tem algumas opções
na vida. Uma delas é a de ser fiel às suas utopias, aos seus sonhos, e
aí, se ele está trabalhando numa empresa grande, que não tem compromisso
nenhum com o jornalismo ou com a mudança do mundo, o seu compromisso é
abrir brechas na parede. Muitas vezes os jornalistas são obrigados, por
força da necessidade, de estar nesses lugares. Mas isso não significa
que ele tenha de abortar suas utopias, sua vontade de narrar o mundo.
Ele ou ela vai ter de pelear, lutar pelas suas matérias. Eu creio
firmemente que um texto bom, bem elaborado, tem lugar mesmo nas
“gosmas“. Pude comprovar isso na pesquisa. Belos textos aparecem na Veja
e na Época. Porque certamente ali estavam jornalistas que transcenderam
à mediocridade, à autocensura, e produziram belezas. E assim é no
cotidiano dos grandes jornais ou revistas. Faz-se muita porcaria, mas
vez ou outra a gente pode subverter, “oferecer a mais fina iguaria“,
como dizia o Marcos Faerman. Tem uma professora da FURB, Universidade de
Blumenau, Rosiméri Laurindo, que escreveu um livro muito interessante
(com base em Adelmo Genro), no qual ela mostra bem como um jornalista
pode virar um jornalista-marca, sem identidade, cativo dos desejos
patronais, e como pode ser um jornalista-autor, capaz de voos solos, de
textos eternos e de expressar a utopia da raça.
Agora, é claro
que também existem aqueles jornalistas que têm como utopia a construção
do seu próprio mundo e aí viram serviçais do sistema, dos patrões, de um
modo de vida que exclui a maioria. Com esses há pouco a fazer; temos de
combater. Mas a maioria sonha com um mundo melhor e pode usar esse
desejo para narrar a vida em movimento, narrar descrevendo, que é a
melhor forma de transformar o mundo. Como dizia Bloch, é na visão do que
não pode ser verdade que a gente caminha para o lá-na-frente onde todos
possam bem-viver. Ou, nas palavras do Antônio Olinto: é na descrição
que o jornalista formula a mais poderosa das opiniões.
O jornalismo tem de ser utópico? Qual a importância da utopia para o jornalismo?
Quem
tem de ser utópico é o jornalista. Por exemplo, não dá para ver o
despejo das famílias de Pinheirinho e não pensar que algo está muito
errado. Na narrativa dessa violência deixar aberto para o leitor ou
espectador a possibilidade de ele dizer: “isso não pode ser“. Essa é a
utopia da qual o jornalismo é capaz. Levar o leitor espectador a pensar.
Isso é praticamente uma revolução.
Historicamente,
o jornalista foi abandonando a sua utopia por conta da empregabilidade,
ou a utopia ainda faz parte da prática jornalística?
Faz,
eu trabalho dioturnamente com jornalistas que utopicamente narram a
vida. Estão aí nos sindicatos, nos movimentos sociais e até nas grandes
empresas, nas pequenas cidades, na internet. São aqueles dos quais falei
acima. Não se rendem, não se autocensuram, fazem as matérias, narram a
vida em movimento. Se alguém os censura, o ônus não é deles. Eles fazem o
que tem de fazer, descrevem a realidade, cumprem a sua utopia. A
empregabilidade não pode servir de escudo para a gente se anular. Eu
sempre dou meu próprio exemplo. Trabalhei em todas as áreas do
jornalismo, TV, rádio, jornal, grandes empresas, sindicatos,
instituições públicas e nunca deixei de ser quem sou ou de escrever,
desvelando o que fica encoberto. Nem por isso morri de fome. A gente é
demitido, passa aperto, mas a gente segue em frente. Temos outro projeto
de vida.
Que utopias caracterizam as reportagens e, especificamente, o jornalismo do século XXI praticado no Brasil?
O
jornalismo praticado hoje é muito ruim, se é que ainda é jornalismo.
Chomsky diz que é mera propaganda. E isso vai da domesticação que uma
boa parte dos cursos de jornalismo ajuda a fazer. Para se ter uma ideia,
aqui em Santa Catarina o curso de Jornalismo tem uma “Cátedra RBS“,
acredita? Ou seja, em vez de termos uma Cátedra América Latina, ou
Cátedra Marcos Faerman, enfim, fatos e pessoas que acrescentam na
formação do jornalista, o que existe é uma formação direcionada para o
mercado que mais explora, que mais desinforma. Uma tristeza.
De
qualquer sorte, temos um mundo a construir. A utopia do socialismo – por
mais que digam que se acabou – segue viva, tremendamente viva. Na
América Latina assoma hoje a luta dos povos originários por um modelo
diferente de desenvolvimento, que eles chamam de bem-viver (sumac
kausay). É uma inversão total da lógica, a negação do modelo capitalista
que tanta miséria, dor e opressão traz ao mundo. Essa é uma boa utopia
na direção da qual muitos de nós caminhamos. Socialismo, sumac kausay,
terra sem males são eutopias (utopia que leva a um lugar bom) que
merecem ser consideradas e conhecidas. Com isso em mente, podemos
praticar o jornalismo como uma forma de conhecimento – tal qual ensinou
Adelmo Genro. Não como manipulação à direita ou à esquerda, mas como uma
singularidade que caminha para o universal, que leva o
leitor/espectador a pensar, a se desalojar do mundo tal qual ele é –
injusto, opressor, excludente. O jornalismo pode ser transformador, pode
embalar a utopia. Mas, para isso, nos cursos de jornalismo, precisamos
ensinar a pensar. O jornalista que pensa tem mais chance de caminhar na
direção da utopia.
O que dificulta hoje a produção de um jornalismo crítico?
Justamente
a má formação. Hoje aposta-se muito mais na técnica. Prefere-se usar um
curso de jornalismo para ensinar a gurizada a fazer web páginas, a usar
o Premiere, o Ilustrator e tantos outros programas. Isso é muito bom,
mas se não houver a prática do pensamento crítico, não vai servir de
nada. Que adianta saber fazer uma página e não saber o quê escrever
nela? O Marcos Faerman, que foi um grande repórter, dizia que esse papo
de fazer texto curto é bobagem. Leitor só não lê texto ruim. Se for bom,
se tiver contexto, impressão, descrição, se contar uma história, o
texto carrega o leitor por páginas e páginas. Essa coisa de dizer que as
pessoas não têm tempo para ler é mantra de quem ou não tem capacidade
de escrever textos belos, ou está mancomunado com o sistema que quer
fazer do público uma massa informe.
Eu ando por aí falando com os
estudantes de jornalismo e vejo os olhinhos deles brilhando quando a
gente fala em textos descritivos, impressionistas, cheios de histórias. É
o que eles querem fazer. Para isso é preciso antes aprender a pensar, a
perguntar, a investigar. É para tal finalidade que deveria servir a
universidade. Para apresentar aos alunos os pensadores da nossa terra,
os pensadores latino-americanos, tanta gente fantástica que produziu e
produz um pensamento original, alavancado na experiência histórica e
geográfica. E é uma gente desconhecida.
No livro
você resgata teóricos como Danton Jobim, Alceu Amoroso Lima, Antônio
Olinto e Celso Kelly, que não são muito utilizados nas universidades.
Qual a contribuição deles para refletirmos sobre a prática jornalística?
Fundamental.
Navegar pelas páginas desses autores nos ajuda a entender a história de
uma época, nos leva a perceber os interesses envolvidos, os sonhos, as
utopias de cada um e do tempo que eles representam. Jobim, por exemplo, é
um dos primeiros a pensar uma filosofia do jornalismo. Ele é um
liberal, apaixonado pelo modo de fazer jornalismo dos estadunidenses,
mas se lido no contexto histórico, adquire uma beleza incrível. É
fabulosa a defesa que ele faz da informação, contra o jornalismo
opinativo que existia nos anos 1950. Claro que ele defende o modo
capitalista de produção, a informação como produto, mas ele pensa um
momento de mudança de temperatura do mundo. Nós precisamos conhecer
isso, ver como o pensamento vai se formando e hegemonizando todo um
fazer. Celso Kelly também tem suas complicações políticas, mas a teoria
estética do jornalismo é uma beleza. A gente lê e a cabeça fica cheia de
ideias, de pensamentos pulando, querendo sair. É instingante e
perturbador. Alceu Amoroso Lima discute o uso das técnicas literárias no
jornalismo, o que o “novo jornalismo“ vai fazer nos anos 1960 e 1970, e
Antônio Olinto liga o jornalismo com a arte e tem um pensamento tão
fecundo e inspirador que nos põe em ebulição. E não são apenas esses. Há
outros, como Adelmo Genro Filho, que apresenta uma teoria do
jornalismo, olha só. Isso é fabuloso. É um pensamento tão rico que chega
a doer. Essa gente não é estudada.
Atualmente,
os cursos de jornalismo das universidades brasileiras têm um foco amplo
na produção prática. A falta de um debate teórico acerca da conjuntura
política, econômica, ambiental e de uma reflexão atenta da história do
nosso país dificultam, de certa maneira, a proliferação do jornalismo
utópico? Nesse sentido, que avaliação faz da formação jornalística
propiciada pelas universidades?
Sim, dificultam a
formação de alunos críticos, impedem que seus horizontem se abram, que
conheçam em profundidade o seu espaço geográfico. Porque é diferente ser
jornalista no Brasil, na América Latina. Há outros problemas, outras
questões a serem pensadas, outros temas a serem abordados. As escolas
seguem prisioneiras dos teóricos europeus ou estadunidenses. Gente boa, é
certo, mas preocupada com outras coisas.
Penso que um aluno do
jornalismo deveria ter uma sólida formação humanística, política e
econômica; deveria entender os grandes problemas estruturais de seu país
e de seu continente. Olha, eu tive a sorte de ter um professor –
chamado Sérgio Weigert – que nos dava aula de problemas brasileiros. Ele
nos colocava tontos com tanta informação acerca do nosso país. E tanto
que o nosso trabalho final foi construir um projeto anti-hegemônico para
o Brasil. Olha isso! Esse cara é um marco na minha vida porque ele nos
ensinou que sem um mergulho profundo na filosofia, no pensamento
germinal dos teóricos clássicos, a gente não vai a lugar nenhum. Com ele
eu desembestei para o campo da filosofia e isso deixou o meu texto
muito mais forte e muito mais denso.
A universidade é um lugar
mágico. E os alunos podem escolher. Mesmo que os cursos sejam ruins, que
os professores sejam medíocres, que direcionem suas mentes para a
técnica ou para domesticação. Os alunos podem escolher não aceitar.
Podem formar grupos de estudos, morar dentro da biblioteca, fomentar
debates. A universidade dá muita liberdade. O que ocorre é que as gentes
estão tão acostumadas ao cabresto que esquecem que podem mudar as
coisas. Eu conclamo os alunos à rebelião. Eles podem.
Quais os principais desafios do jornalismo brasileiro hoje?
Primeiramente,
há que mudar a universidade, subverter esse ensino que domestica. Há
que se produzir um pensamento autóctone sobre o jornalismo, conhecer
nossos pensadores do passado, avançar com eles, superá-los. Há que
conhecer a história do nosso povo, há que estudar filosofia, reaprender a
pensar. Depois disso, há que voltar a narrar a vida com um texto que
descreve, que narra, que contextualiza.
Não há desculpas para mau
jornalismo. Nem o tempo, nem as cinco pautas por dia, tampouco a
multifunção. O bom jornalista encontra sua forma de burlar tudo isso.
Seu compromisso deve ser com a informação que forma, não apenas o ritual
informativo que informa sem estabelecer nexos. O jornalista é um
feiticeiro que junta as letrinhas no caldeirão do texto. Dele tem de
sair uma mensagem que incomode, que desaloje, que perturbe, que encha o
leitor de aflição, que o mova para frente, que o faça pensar.
Há
quem diga que o jornalismo morreu e que só exista propaganda. Eu não me
curvo a essa assertiva, embora ela pareça arrasadora. O jornalismo
resiste. Tem uma revista que se chama Retratos do Brasil, que faz bom
jornalismo. Tem a publicação aqui de Santa Catarina, a Pobres e
Nojentas, que faz bom jornalismo, têm uma infinidade de experiências por
essa América Latina inteira. Os jornalistas estão aí, rompendo as
barreiras, quebrando as regras do jornalismo domesticado. Basta que a
gente tenha a delicadeza de saber ver. E utopicamente eu afirmo: isso
haverá de ser maioria. Quando, não sei... mas, virá...
Deseja acrescentar algo?
Rebelião,
rebelião, rebelião... Que os estudantes de todos os cursos de
jornalismo do Brasil possam compreender que há mais coisas no jornalismo
do que aquilo que é repetido em salas de aula. Ousem ouvir as vozes
hereges, ousem criar grupos de estudo, ousem navegar nos livros velhos
escondidos nas prateleiras. Esses não estão na internet, porque são
perigosos demais.