Felipe Prestes no SUL21
Subsídios aos grandes produtores de soja, manutenção de terras nas mãos de grileiros, acordo com uma multinacional do alumínio e privatizações. Assim, Ricardo Canese resumiu os primeiros passos do governo de Federico Franco. Secretário-geral da Frente Guasú, que reúne mais de dez partidos de esquerda do Paraguai, Canese não mediu as palavras para qualificar os liberais e colorados oviedistas que hoje estão no poder: “É uma quadrilha que está prestes a assaltar o povo paraguaio”, disparou.
O dirigente partidário atendeu o Sul21, por telefone, na última quinta-feira (12). Revelou que a atual ação de inconstitucionalidade da destituição de Lugo, que tramita na Justiça paraguaia, é mera formalidade para que se possa recorrer a organismos internacionais. “A Corte está comprometida com os golpistas”.
Canese conversou por mais de meia hora com a reportagem e também falou sobre as estratégias da esquerda para as eleições presidenciais do ano que vem, bem como as ações de resistência. O secretário-geral da Frente Guasú (guasú, em guarani, quer dizer “ampla”) também rechaçou que houvesse má relação entre o Governo Lugo e os brasiguaios e disparou contra o latifundiário catarinense, naturalizado paraguaio, Tranquilo Favero, a quem definiu como “amigo de Stroessner”.
Sul21 – Como o senhor avalia o informe do secretário-geral da OEA (José Miguel Insulza), que considerou constitucional a destituição de Lugo?
Ricardo Canese – Na prática, o informe do senhor Insulza foi rechaçado pela assembleia da OEA. A organização não aprovou este informe. Ao contrário, a assembleia disse que as chancelarias vão aprofundar os estudos sobre o Paraguai. Então, diplomaticamente se entende que há um rechaço do informe de Insulza, por ser absolutamente insuficiente, por não refletir o que Mercosul, Unasul e SICA (Sistema de Integração Centro-Americana) assinalaram como uma quebra do Estado de Direito, um atentado contra a Constituição, uma destruição da democracia. São três blocos da América Latina que se manifestaram muito claramente. A OEA deixou de lado o informe de Insulza e instou as chancelarias analisem com mais profundidade o tema.
Sul21 – O senhor ainda crê que é possível reverter a destituição de Lugo?
Ricardo Canese – É o mais sensato revertê-la. A democracia se constrói com democracia, não com golpes de estado. Por isto é que é chamativo que alguns setores da OEA e, particularmente, Estados Unidos e Canadá, que têm interesses muito fortes pela América Latina, estejam tratando de minimizar o golpe de estado. É lamentável que alguns países que se dizem democráticos queiram avalizar um golpe de estado. Não houve apresentação de provas. Os próprios parlamentares que acusaram disseram que não apresentariam provas. Eu não sei como se pode julgar alguém sem apresentar provas. Como se pode julgar alguém se não há um devido processo? Se elaborou o regulamento do julgamento depois da acusação. Nossa Constituição é muito clara: a lei tem que ser prévia à acusação, não se pode acusar uma pessoa e fazer uma lei especial para a pessoa acusada. Isto é gravíssimo, é um atentado contra os direitos humanos e aos direitos constitucionais. Ademais, não se permitiu direito à defesa. Enfim, tudo foi ilegal e inconstitucional.
Sul21 – O senhor tem esperança de que a Corte Constitucional reverta a destituição?
Ricardo Canese – A Corte está comprometida com os golpistas, não temos nenhuma esperança. Mas apresentamos a ação de inconstitucionalidade para que, se rechaçarem, como é previsível, possamos recorrer a instâncias internacionais. É uma Corte que não apenas avalizou o golpe de estado, mas avalizou o roubo de terras mal havidas. Quando nosso governo e governos anteriores, inclusive, quiseram recuperar as terras roubadas do Estado, roubadas do povo paraguaio, disseram que o Estado deveria receber apenas as custas judiciais. Esta é a Corte Suprema que temos. Uma Corte que protege os ladrões de terras públicos, os grandes narcotraficantes, os grandes sonegadores de impostos. O Governo Lugo tentou mudar esta situação e o golpe de estado vem justamente para, como disse o presidente uruguaio José Mujica, que o narco-coloradismo volte a imperar como imperou durante setenta anos. Esta é a essência deste golpe de estado que foi gestado pelo Partido Colorado com a participação dos liberais.
Sul21 – O stronismo ainda está muito arraigado nas estruturas do Estado paraguaio?
Ricardo Canese – Está na sociedade paraguaia. Os grandes negócios seguem nas mãos de stronistas. Quase a totalidade dos meios de imprensa é propriedade de pessoas que roubaram com Stroessner, que enriqueceram com Stroessner. Por isto, não é casualidade que a imprensa esteja a favor deste golpe de estado. Ademais, as grandes fortunas do Paraguai são de amigos e cúmplices do Alfredo Stroessner. Obviamente há algumas exceções, mas em sua grande maioria o grande empresariado paraguaio não é honesto, forjado com seu esforço, com negócios limpos como há em outros países da América Latina. Aqui, o grande empresariado roubou ao Estado, roubou ao povo paraguaio, faz negócios ilícitos, narcotráfico, roubo de terras. O Governo Lugo buscou democratizar, dar participação ao povo, potencializar empresários honestos. Este grupo golpista não quer justamente ceder estes privilégios.
Sul21 – Como o senhor analisa os primeiros passos de Governo Franco?
Ricardo Canese – Uma de suas primeiras medidas é dizer que não vai haver imposto para a soja. Há uma pessoa que fatura US$ 1,5 bilhão: o senhor Tranquilo Favero, que é um brasiguaio, amigo do ditador Alfredo Stroessner, que possui um milhão de hectares. Uma das primeiras medidas do Governo Franco é não cobrar imposto a estes grandes produtores de soja. Os sojeiros também querem subsídios que viam nos governos anteriores, colorados, para não somente deixar de pagar impostos, mas também receber do governo. Outra medida tomada por Franco é a de permitir as sementes transgênicas, algo a que nos opúnhamos. Imediatamente, o Governo Franco deu luz verde às sementes transgênicas. Uma terceira medida é abrir negociação — dizem que há já um decreto em elaboração e um contrato que vai ser aprovado pelo Congresso golpista em 90 dias – para dar à Rio Tinto Alcan (empresa canadense, líder mundial em produção de alumínio) US$ 14 bilhões em subsídios de energia elétrica que vão sair do consumidor paraguaio. A ditadura militar do Brasil também fez concessões de subsídios a empresas eletro-intensivas, como as de alumínio, o que faz com que hoje as tarifas de energia elétrica sejam muito caras, porque alguém tem que pagar por este subsídio. Nós, como governo, nunca abrimos negociação com Rio Tinto Alcan, apesar de três anos de pressão. Agora, Franco abriu negociação imediatamente e vai concretizar tudo em menos de 90 dias. Está anunciando também que vai fazer uma privatização massiva de nada menos que o sistema elétrico paraguaio. Também telefonia, água corrente, cimentos, todas as empresas públicas (na semana passada o ministro da Fazenda, Manuel Brusquetti, anunciou que será elaborado um marco regulatório de concessões públicas). É uma quadrilha que está prestes a assaltar o povo paraguaio.
Sul21 – Se pode dizer que, para o senhor, o novo governo atende aos interesses dos latifundiários e de multinacionais, ou há outros grupos interessados?
Ricardo Canese – Fundamentalmente, são latifundiários e transnacionais, além das cúpulas corruptas dos partidos tradicionais, que vão receber enormes benefícios. Para ter sustentação política estão começando uma campanha de ataque massivo a todo aquele que não seja golpista. Se acusa de ser esquerdista, subversivo, todo este tipo de coisa, como na época de Stroessner, quando todo aquele que não estava com o ditador era um antipatriota, um comunista. Já temos na administração pública centenas de despedidos pelo fato de serem simpatizantes de Fernando Lugo, ou não serem golpistas. Estamos apresentando estas denúncias a organizações internacionais: violações de direitos trabalhistas, constitucionais e, inclusive, direitos humanos.
Sul21 – Que papel tiveram os brasiguaios na deposição de Lugo?
Ricardo Canese – Os brasiguaios que estão em um nível popular, que têm alguns poucos hectares de terra, estão integrados com a população paraguaia. Estes apoiam a democracia e o governo constitucional de Fernando Lugo. Com eles não há problema, mas sim com brasiguaios como o senhor Favero, amigos do ditador Alfredo Stroessner, que roubaram com ele, que possuem grandes quantidades de terra, que expulsam não só o camponês paraguaio, mas o pequeno agricultor brasiguaio. Não é uma questão entre brasiguaios e camponeses paraguaios. É uma questão entre os latifundiários, como o senhor Favero e como o senhor (Blas) Riquelme (em cujas terras houve morte de camponeses e policiais que foi o estopim do golpe de estado), que é muito paraguaio, e os camponeses pobres, que são tanto paraguaios como brasiguaios, que são os que estão sofrendo as consequências deste modelo excludente.
Sul21 – Costuma-se dizer na imprensa brasileira que o Governo Lugo perseguia os brasiguaios. Como o senhor vê isto?
Ricardo Canese – Totalmente falso. O senhor Favero dizia que o perseguiam. Ele é um conhecido stronista e é ele um dos que levantava isto com outros latifundiários brasiguaios, não são muitos. Favero disse que é preciso que tratar o camponês como “mulher de malandro”, fazendo apologia à violência contra o camponês e contra a mulher. Nenhum juiz da República lhe condenou por esta apologia à violência que está publicada extensamente na imprensa há uns meses. Eles são impunes. Não só não havia perseguição, como conta com toda a proteção do Judiciário e da imprensa. Fernando Lugo não expropriou um só hectare do senhor Favero ou de outro latifundiário. É de inteira falsidade que tenha havido a mais mínima perseguição aos brasiguaios, nem sequer aos proprietários de terra, porque não houve nenhuma expropriação ou confisco de terras.
Sul21 – Por que, então, os latifundiários se incomodavam com o Governo Lugo?
Ricardo Canese – Porque queriam seguir ostentando suas terras mal havidas, roubadas; queriam seguir sem pagar imposto, como eu assinalei. O Governo Lugo apresentou uma proposta para que os grandes produtores de soja paguem imposto. Aqui em nosso país, um industrial, um comerciante, uma empresa que presta serviços paga 100 mil vezes mais imposto que um produtor de soja. Então, este foi um dos focos principais. Também o movimento campesino exigiu durante muito tempo a recuperação de terras mal havidas e o Governo Lugo acionou várias vezes a Justiça para que estas terras voltem ao Estado. Os proprietários de terra se opuseram e obtiveram a cumplicidade do Poder Judiciário. Agora, os proprietários de terra tinham o profundo temor de que finalmente pudesse haver uma decisão diferente do Judiciário, ou uma maioria no Congresso que pudesse fazer com que estas terras voltem ao Estado e que a produção de soja tenha que pagar imposto. A nove meses das eleições, a popularidade de Fernando Lugo era alta. Havia uma grande possibilidade de que triunfássemos nas eleições. Então, estas foram as motivações, para justamente manipular, impedir eleições livres e limpas.
Sul21 – O senhor, então, não crê que serão livres as próximas eleições.
Ricardo Canese – Estamos preocupados, porque os golpistas estão buscando, por um lado, inabilitar algumas candidaturas, como a própria candidatura de Fernando Lugo, que tem uma popularidade enorme. Também querem inabilitar outras personalidades, como o governador de San Pedro, José Gregório Ledesma, e os senadores Sixto Pereira e Carlos Filizzola. Tudo isto aponta que buscam eliminar como candidatos nossas principais figuras. Buscam ter eleições condicionadas, porque sabem que com eleições livres vão perder. Por isto, denunciamos à opinião pública internacional que é importante que, se não se quer prolongar este golpe de estado, haja garantias para que as eleições se desenvolvam com inteira normalidade e que não haja um cerceamento às liberdades públicas.
Sul21 – Qual deve ser a estratégia da esquerda nas eleições?
Ricardo Canese – Não é uma questão de esquerda e direita, mas de democracia versus ditadura, democracia versus golpe de estado. Estamos tendo o apoio neste momento de setores democráticos do Partido Colorado e do Partido Liberal. Então, pensamos em não somente unir as forças de esquerda, que já estão reunidas na Frente Guasu, mas uma frente muito mais ampla, a Frente em Defesa da Democracia – ainda se analisará se este nome será mantido. Será uma frente abarcando partidos de centro, ou até de direita, mas democráticos.
Sul21 – É surpreende que Lugo tenha sido eleito e, ao mesmo tempo, o Congresso tenha tão poucos parlamentares de esquerda. Por que isto ocorreu?
Ricardo Canese – Todos os partidos progressistas foram em distintas listas. Toda a esquerda e centro-esquerda teve 12% dos votos, o que poderia ter permitido uma bancada interessante. Lugo foi eleito pela Aliança Patriótica, que era formada também pelos liberais, que tiveram 28%. Já nas eleições municipais tivemos mais de 15%. As pesquisas antes do golpe davam a esquerda e centro-esquerda com20 a 25%. Por isto veio o golpe, porque a esquerda estava crescendo muito forte e unida. Ademais, setores democráticos e populares do Partido Liberal e do Partido Colorado estavam coincidindo com os partidos que estão na Frente Guasu. Isto é o que está acontecendo agora também. Domingo Laino, que é praticamente o fundador do Partido Liberal, várias vezes candidato à presidência, está conosco. Também estão o governador de San Pedro, um dos departamentos mais populares do país; e o deputado Victor Rios (ambos liberais). Dentro do Partido Colorado também ocorre o mesmo. Estamos ampliando enormemente as perspectivas da esquerda e da centro-esquerda. Neste momento, estamos com possibilidade de ganhar as eleições de 2013, se forem limpas e democráticas, com um espectro democrático amplo. Volto a dizer: a alternativa é golpe x democracia. Acreditamos que as forças democráticas do país vão fazer maioria aplastante nas eleições.
Sul21 – Como está a resistência popular agora? Que ações estão sendo realizadas?
Ricardo Canese – Começamos com 25 mil pessoas na rua em uns 40 lugares nas primeiras semanas. Agora estamos planificando uma campanha de resistência de 20 de julho a 15 de agosto, que termine neste dia com um grande ato de resistência, de repúdio ao golpe, nacional e internacional, mobilizando os paraguaios que estão em todo o mundo. Hoje (quinta-feira, 12), havia um ato em Londres, por exemplo. Diariamente, temos tido manifestações em Assunção e distintos pontos da República. No sábado, temos uma grande conversação do presidente Lugo com o povo no Bañado Sur, uma zona popular de Assunção, na próxima semana teremos outros acontecimentos mais. Mas, como te disse, vamos ter um plano bastante bem estruturado de mobilização, de difusão, de intervenção em distintos âmbitos. Incluirá um julgamento ético ao juicio político, ao golpe de estado. Vamos julgar os golpistas. Inclusive, queremos fazer na sala bicameral do Congresso. Depois de 15 de agosto, provavelmente vamos dar ênfase à preparação para as eleições.