Na segunda década deste século, em que pesem as dificuldades enfrentadas desde 2011, o Brasil entrou definitivamente na moda. Em meio a um mundo em que a crise dá o tom, a economia brasileira paira altaneira, dizendo-se sobre ela, até mesmo, que estaria inventando uma nova forma, “mais criativa”, de garantir o sucesso econômico. Como entender o que está se passando? Estaria o país, depois de mais de duas décadas de estagnação e crescimento pífio, retomando uma trajetória sustentada de crescimento? Mas, mais importante, estaria nossa economia finalmente resgatando a autonomia e o poder soberano que chegou a vislumbrar em meados do século passado? Estaríamos finalmente deixando para trás a situação de dependência e submissão que secularmente nos caracteriza? E como combinar essa interpretação auspiciosa com os claros sinais de desindustrialização, de recusa do investimento em decolar, de retrocesso para uma posição periférica clássica de país produtor de commodities? E quais são as causas e qual é o papel, nesse contexto, da redução da desigualdade distributiva e do surgimento da assim chamada “nova classe média”? Para responder a todas essas questões é preciso, em primeiro lugar, qualificar o crescimento apresentado por nossa economia na primeira década do presente século, o que implica entender de que forma o país foi se inserindo no plano mais geral da acumulação mundial, em meio a um profundo processo de transformação do próprio capitalismo. É bastante conhecida a história do espetacular sucesso capitalista no Brasil até o final dos anos 1970, bem como da igualmente retumbante derrocada nas décadas seguintes. O sucesso ficou visível nas elevadas taxas médias de crescimento alcançadas ao longo do século passado. Entre 1930 e 1980, o Brasil cresceu 6,4% ao ano. Nesse período, as taxas médias anuais de crescimento por década nunca foram inferiores a 4,3%, tendo alcançado 8,7% nos anos 1970, um ritmo verdadeiramente chinês. Diante desses números espetaculares, o fracasso das duas décadas finais torna-se ainda mais impressionante. Nos anos 1980, a taxa média anual de crescimento despencou para 2,9%, menos da metade de sua marca histórica nos cinquenta anos anteriores, e, nos anos 1990, caiu mais uma vez para 1,6%, quase a metade da taxa já muito magra obtida na década anterior. É perante esses pífios resultados que a performance dos anos 2000 parece um sucesso. A taxa média anual de crescimento nessa primeira década do século XXI alcançou os 3,3% (4% no período Lula), bem melhor que 1,6%, evidentemente, mas um resultado muito modesto, que nem sequer recupera a taxa média anual da pior das décadas do período 1930-1980, que foram os 4,3% obtidos nos “depressivos” anos 1930. Mas, para além das frias estatísticas numéricas, importa saber o que aconteceu nas entranhas desse processo de ascensão, queda e tímida recuperação, e não é possível fazer isso sem colocar em cena o contexto mundial em que ele se desenvolveu. Não é o caso aqui de recuperar toda a história da economia brasileira nos últimos oitenta anos, mas cabe recordar alguns fatores importantes para entender a posição em que hoje nos encontramos. É fato sabido que no início dos anos 1980, em razão dos pesados investimentos nos setores de bens de capital e insumos básicos constantes do II PND – o plano de desenvolvimento adotado pelo governo Geisel em resposta à primeira crise do petróleo –, o Brasil acertou o passo com a Segunda Revolução Industrial, completando, ainda que extemporaneamente, sua matriz tecnológica. É verdade que já estava aí em curso a Terceira Revolução Industrial, mas ainda assim o feito não foi de pouca monta. O Brasil foi o único país da América Latina a internalizar toda essa matriz, o que poderia ter lhe dado o grau de autonomia que tentara sem sucesso obter na primeira metade dos anos 1950, com os projetos do segundo governo Vargas. Em meados da década de 1970, apesar de todo o crescimento industrial pretérito, a economia brasileira ainda sofria com a existência de várias lacunas importantes nos setores de base da indústria, sendo total ou parcialmente dependente das importações de insumos essenciais como petróleo, aço, papel e cimento, além de bens de capital de modo geral. Essa fragilidade ficara escancarada com o advento da crise do petróleo, que, em sua esteira de elevação, carregara consigo também os preços de vários dos insumos industriais essenciais. Assim, apesar do atraso no desenvolvimento de vários projetos e de alguns elefantes brancos como a ferrovia do aço e o projeto nuclear, o II PND foi bem-sucedido em completar as caselas que faltavam em nossa matriz interindustrial, tornando a economia brasileira mais forte e menos dependente. Mas o país não foi capaz de saltar daí para uma posição verdadeiramente soberana, tornando fato a autonomia potencial que a nova situação permitia vislumbrar. Ocorre que, para além da nova revolução tecnológica já em curso, o capitalismo começava também, nessa mesma época, a transitar para outra etapa em sua história, etapa essa cujas características não são estranhas, antes o contrário, à incapacidade de nossa economia ter dado o referido salto. Marcada por aquilo que vários economistas houveram por bem denominar “financeirização”, a dinâmica econômica passou a se dar, cada vez mais, sob os auspícios e os imperativos do capital financeiro. Isso significou uma profunda alteração quanto à forma como até então se relacionavam produção e finança, pois agora era esta última que dominava o processo de acumulação como um todo, submetendo a primeira. Por trás desse processo estava o espetacular crescimento da riqueza financeira, que começou com os depósitos das multinacionais norte-americanas no mercado offshoreda City londrina no final dos anos 1960 e ganhou definitivo impulso com a engorda produzida pelos petrodólares e pelos excedentes ainda maiores de capital que não encontravam aplicação lucrativa depois do aprofundamento da recessão mundial trazido pela crise do petróleo. Foram os interesses produzidos por essa “base material” que alentaram o discurso neoliberal e fomentaram a grita em torno da necessária liberalização das finanças, dos fluxos internacionais de capital e dos mercados em geral. Ora, o Brasil tornou-se uma das maiores vítimas da primeira fase do processo de financeirização, quando as finanças foram primordialmente intermediadas e o capital financeiro foi majoritariamente o capital bancário. Como os investimentos do II PND tinham se tornado possíveis graças ao endividamento externo em contratos estabelecidos a taxas flutuantes, a brutal elevação dos juros internacionais ao final dos anos 1970, patrocinada pelo banco central norte-americano num golpe destinado a resgatar a posição hegemônica do dólar, atingiu em cheio a economia brasileira, minando qualquer possibilidade de uma definitiva ascensão do país ao grupo das nações desenvolvidas. O Brasil constituíra parte substantiva da demanda que faltava a um copioso volume de riqueza financeira em busca de aplicação num mundo em recessão aberta, e agora pagava por isso um elevado preço. Naquele momento, o início dos anos 1980, apesar da renitência da inflação, o Brasil era o retrato de uma economia plenamente industrializada e relativamente sofisticada, mas vitimada pela marcha acelerada do processo mundial de financeirização. Essa forma passiva de inserção da economia brasileira no capitalismo financeirizado foi substituída por uma forma ativa de inserção, quando a partir dos anos 1990 começaram a ser tomadas as medidas para transformar o país em potência financeira emergente: além da própria estabilização monetária, a abertura financeira desbragada, a internacionalização do mercado de títulos de dívida, a adoção de políticas monetária e fiscal extremamente rígidas e o estabelecimento de taxas de juros descabidamente elevadas. Isso sem falar nas “reformas estruturais”, que alteraram o sistema previdenciário, com espaço cada vez maior para o regime de capitalização, colocaram os direitos dos credores, não importa se públicos ou privados, à frente de quaisquer outros, e estabeleceram um sem-número de benefícios e concessões tributárias ao capital financeiro de não residentes. Consolidada essa inserção ativa no processo de financeirização, o Brasil transformou-se em plataforma internacional de valorização financeira, o mercado onde se tornaram possíveis os maiores ganhos do mundo em moeda forte, por força da combinação entre taxas de juros elevadas e um persistente processo de apreciação cambial, num contexto em que as finanças eram agora primordialmente diretas, em vez de intermediadas, e onde tinham importância crescente os mercados secundários de papéis e os investimentos em derivativos. Nesse contexto, nossa crônica dependência de poupança externa mudou de cara, saltando dos empréstimos convencionais para os recursos destinados aos investimentos de portfólio, enquanto os investimentos externos diretos ganharam fôlego adicional por força do processo de privatização. Evidentemente, isso não ocorreu sem consequências do ponto de vista de nossa inserção produtiva. Como afirmou acertadamente em entrevista recente o professor Gabriel Palma, da Universidade de Cambridge, ao optar pela dupla juro alto/câmbio apreciado, o governo brasileiro escolheu as finanças, as commodities e os serviços e desdenhou e prejudicou a indústria, que seria beneficiada pela política oposta. O boom experimentado no preço de várias das commodities em função do efeito China já seria por si só suficiente para forçar uma mudança nessa direção, empurrando de volta a economia brasileira para a indesejada posição de país produtor de bens primários e de baixo valor agregado. Ao optar conscientemente pela política econômica que atendia primordialmente aos interesses do capital financeiro, os governos que se sucederam desde os anos 1990 jogaram mais água nesse moinho e promoveram um grande retrocesso no perfil produtivo de nossa economia. O resultado é que a desindustrialização e a reprimarização da pauta de exportações do país constituem hoje uma dura realidade. A começar pelo próprio setor automotivo, cadeias produtivas inteiras foram esvaziadas, fazendo nossa indústria trabalhar atualmente mais ao estilo das maquiladoras mexicanas, que simplesmente montam um sem-número de peças e componentes importados, do que como uma verdadeira indústria, capaz de produzir valor agregado e andar em linha com o desenvolvimento tecnológico mundial. Os setores mais dinâmicos desse último ponto de vista, como os de bens de capital, equipamentos eletrônicos e química e farmacêutica, foram justamente os que mais sofreram. Quanto à reprimarização da pauta de exportações, os dados falam por si. Em meados dos anos 1970, a participação dos produtos industriais e bens de capital nas exportações brasileiras era de 38%, tendo atingido quase 70% no início dos anos 1990, para alcançar 2010 com 47%. De outro lado, a participação dos produtos básicos, que era de cerca de 60% em meados dos anos 1970, reduziu-se a 25% no início dos anos 1990, para alcançar 2010 com 45%. Está claro, portanto, que a tênue retomada dos anos 2000 é ainda menos auspiciosa quando se atenta para seu conteúdo. Um sinal de que o suposto sucesso da economia brasileira é praticamente uma miragem quando visto mais de perto é a razão formação bruta de capital fixo/PIB, que, mesmo com a pequena retomada do final dessa década, continua literalmente no chão, não tendo recuperado nem sequer o nível, já muito reduzido, atingido nos anos 1980 (17% contra 19%). Esse último elemento está diretamente ligado a mais um dos fatores agravantes de nossa precária situação. A dinâmica macroeconômica que produziu o crescimento um pouco mais alvissareiro a partir de 2006 esteve inteiramente assentada no consumo, e não, como deveria ser para que fosse algo sustentável, no investimento, e mais ainda, esse consumo esteve assentado na expansão do crédito, que, se traz ganhos a curto prazo, deprime a demanda a médio e longo prazos. Ancorar a dinâmica macroeconômica no consumo e o consumo no crédito é tentar fazer a economia capitalista andar com o motor girando ao contrário. Há, porém, além da difusão do crédito para faixas da população antes dele excluídas, um fator que explica esse boom de consumo. Trata-se do surgimento da assim chamada “nova classe média”, os celebrados 30 milhões de brasileiros que ascenderam à classe C. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o fenômeno não é resultado das políticas de renda compensatória (tipo Bolsa Família), as quais beneficiam os extremamente pobres, mas sim de um sustentado processo de aumento do salário mínimo real (que eleva a renda de cerca de 30 milhões de beneficiários da seguridade social), bem como da retomada do emprego trazida pelo próprio crescimento. Para além de seu impacto econômico, esse processo tem importância em si, já que é evidente a diferença que tais mutações produzem num país secularmente marcado por uma desigualdade ímpar. Mas, ao contrário do que sustentam algumas das interpretações sobre esse fenômeno, ele está, a meu ver, longe de ser estrutural. Sua manutenção depende fundamentalmente do andamento da conjuntura. Se a economia não decola, o crescimento do emprego dá marcha a ré, problematizando um dos fatores que estão na base da “nova classe média”. Com a economia em banho-maria, as receitas do governo podem não se elevar o suficiente para que continue a ser bancado o segundo dos sustentáculos da nova classe, o crescimento real do salário mínimo, que, ao contrário do Bolsa Família, tem custo muito elevado para o governo. Resta saber quais são as perspectivas de materialização de tal cenário. A resposta a essa pergunta já está de certa forma dada pelo resultado pífio obtido em 2011 (crescimento de 2,7%) e pelas expectativas para 2012, que, a depender da fonte, já andam abaixo dos 2%. As causas que primeiramente se levantam para explicar essa situação estão sempre relacionadas ao agravamento da cena internacional, o que tem lá sua razão de ser, já que a crise europeia está se mostrando mais profunda do que se imaginava. Mas elas não podem de modo nenhum se reduzir a isso. Com duas décadas de políticas anti-indústria, não é à toa que a crise internacional superdeprima as expectativas e impeça o investimento de decolar, por maiores que sejam os esforços do governo para estimular o consumo e, por essa via, tentar reerguê-las. As escolhas de política econômica efetuadas pelos últimos governos fizeram o país retroceder a uma posição na divisão internacional do trabalho que já se julgava ter sido ultrapassada. Se associarmos a isso seu papel de plataforma internacional de valorização financeira que a economia brasileira ainda desempenha, muito embora as taxas de juros tenham declinado substantivamente nos últimos meses, teremos uma espécie de dependência redobrada, um cenário, portanto, muito distante da imagem de autonomia e independência que os discursos sobre a “economia blindada” e o suposto “desenvolvimentismo” querem fazer crer. Nesse contexto, a possibilidade de transformar em estruturais as saudáveis mudanças no plano distributivo recentemente ocorridas torna-se diminuta, jogando por terra, mais uma vez, a oportunidade que nos deu a favorável conjuntura internacional dos anos 2000 até antes da crise de 2008 de saltarmos para uma posição altiva, em que os destinos do país pudessem ser conduzidos com soberania.
Leda Maria Paulani
Professora titular do Departamento de Economia da FEA-USP e da pós-graduação em Economia da IPE-USP. Pesquisadora do CNPq e da FAPESP, foi entre 2004 e 2008, presidente da Socidedade Brasileira de Economia Política (SEP). É autora, entre outros livros, de Modernidade e discurso econômico e Brasil Delivery, ambos publicados pela Boitempo.
Ilustração: Orlando
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