“Tudo que nos parecia sólido sumiu ao vento como nossos anelos”
(Macbeth – William Shakespeare)
por Arnóbio Rocha
Escrevi recentemente um artigo( Grampos nos EUA, Bem-vindos ao Estado Gotham City) sobre a questão do Senhor Edward Snowden e o tremendo embaraço que ele causa aos burocratas dos EUA, pois expôs ao mundo como o novo Estado, que denomino de Estado Gotham City, funciona, os interesses das corporações privadas e sua fusão com a burocracia estatal, agora sem o menor pudor ou algo que possa ocultar esta realidade.
O Estado Gotham City é a síntese da Crise 2.0, ele é, ao mesmo tempo, causa e resultado da maior crise do Capital desde 1929, uma crise que denomino de paradigmática, aquela que muda e aprofunda os controles do sistema. Do ponto de vista do Estado ele começa a ser forjado no final dos ano de 1970, com a Crise do Petróleo e das Dívidas externas no início dos anos de 1980. Precisamente com Reagan e Volcker(FED) o Goldman Sachs captura o Estado para sí e começa a determinar a ordem do capital financeiro.
Os 25 anos de longo domínio desta lógica de funcionar do Capital encontrou limites na Crise 2.0 e na resistência do velho Estado de Bem Estar Social, que trava a “liberdade” total de movimentos mundiais do Capital. A Crise é o problema-solução, toda uma nova ordem pode advir dela, inclusive a Revolução. Mas, descartada a Revolução de ruptura, o Capital faz a sua própria revolução, ou melhor, impõe uma dura mudança dentro do sistema que lhe mais favorece, em detrimento dos trabalhadores e da sociedade. A face mais visível é a repressão aberta, ou a sutil, a do controle de tudo que acontece na sociedade para melhor dominá-la.
A democracia passa a ser um “estorvo”, os velhos políticos ou as velhas formas de representação são tragados ao caos, esta aparente desordem esconde o “Novo”, um estado controlador, espião, policial que consegue galvanizar as revoltas não contra si, mas contra a própria democracia, vide Egito, Turquia e agora no Brasil. As massas perdidas gritando contra as instituições, contra os políticos, mas não contra o Estado. Aliás, este ganha força com as propostas de intervenções das “forças da Ordem” ou o surgimento de um Batman, de um herói que ajude a criar mais uma “máscara” e proteja o Estado Gotham City.
No meu livro, Crise Dois Ponto Zero – A Taxa de Lucro Reloaded, no Capítulo VI, trato da questão, além da crise em si, aponto os caminhos desta nova ordem Estatal, que busca esconder a ação do Estado com o ultraliberalismo, quase um semi-estado, mas na verdade é um Estado muito mais forte, de exceção, sem democracia, povo e representação. A horizontalidade exigida pelas multidões casa em essência com os desejos da burocracia, numa dominação de massas de forma eficaz, pois se suprime a representação e seus intermediários( Partidos, Sindicatos, Organizações) tidos como desmoralizados, tudo se diluí em “movimento” em “Redes”(M15, 5 S, Sustentável,Tea Party) e “Indignados”, facilitando enormemente a cooptação e o combate de ideias.
A inteligência se dispersa, os núcleos se dissolvem, pois o Estado parece que não é mais uma ação concreta, algo que se pensou antes, agora se materializa. A ilusão de que a informação era para todos, livre, na verdade ela é extremamente controlada, dosada, permitida, mas principalmente VIGIADA. A utopia de movimento horizontal é um mito tolo, os “chefes” , os ”anonymus” são a ponta de lança da garantia deste novo Estado. Quando um agente sai da ordem, causa um razoável estrago, mas poucos se dão conta do que realmente Snowden nos disse e o que é a essência de sua mensagem, estamos todos DOMINADOS. Alguns brincam de “guerra fria”, como se fosse possível volta a roda da história.
O mundo está cada vez mais próximo de uma ordem neofascista, não nos moldes dos anos de 1930, mas num Estado forte, repressor, controlador de todas as atividades humanas, num aparente consenso autoritário, com as massas pedindo fim dos partidos, da democracia representativa e ao mesmo tempo da “ordem”. Abaixo republico o Capítulo VI do Livro, sendo a minha contribuição para a reflexão, para separar bem os que indignação positiva de coloboração direta, mesmo que involuntária.
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Crise Dois Ponto Zero – A Taxa de Lucro Reloaded
PARTE VI
O Estado Gotham City
Desde o início da série Crise 2.0, no blog, procurei levar ao espaço virtual os principais debates sobre as ações dos vários atores envolvidos no processo, suas visões de solução para a economia mundial. Acompanhei de forma sistemática declarações e discursos dos principais líderes políticos, dos economistas, assim como busquei ouvir o que diziam líderes oposicionistas, procurando entender a dinâmica da luta de classes neste momento agudo em que se abrem tantas possibilidades de saídas não clássicas – inclusive, a revolução.
Com este método, a série não apenas elenca os eventos, mas também rascunha teses sobre os diversos cenários que foram surgindo nestes 20 meses de trabalho. Umas das conclusões centrais a que cheguei foi a da mutação do Estado. Parte dela foi um insight conjunto com o companheiro Sergio Rauber. Identificamos que, no limite, alguns elementos desta mutação vieram com a Perestroica, que varreu os regimes do Leste europeu. A partir dos eventos da crise de 2005/2007 e a queda do “Muro de Wall Street”, o novo “Estado” se estabeleceu nos Estados Unidos e na União Europeia. A América Latina já havia passado por este ajuste nos anos 80/90.
Afinal, a Perestroica era uma construção do regime autoritário para se manter, o que era impossível à antiga URSS pelo baixo desenvolvimento tecnológico, pela economia estagnada, voltada para o setor de defesa. O Estado Perestroica era a “saída” que na China até se provou eficaz, pois os chineses fizeram a transição sem a Glasnost – que, efetivamente, derrubou politicamente o regime soviético. Do ponto de vista do Estado, a Perestroica se materializou com as privatizações selvagens, a redução do Estado de Bem-Estar Social da antiga URSS e do Leste europeu. Na própria burocracia, parte virou máfia, parte assumiu o controle das estatais.
Analisemos então a caminhada das democracias rumo a este Estado Gotham City, no qual os burocratas, via agências fundidas ao capital, não querem mais qualquer lembrança do Velho Estado do Bem-Estar Social.
A BURGUESIA REVOLUCIONÁRIA
No Século XVIII a burguesia revolucionária fez a Revolução Francesa para enterrar de vez o Estado Feudal, absolutista, centrado na figura do rei. Não que ela não quisesse um poder centralizado, apenas que não mais defendesse os antigos interesses feudais. A Inglaterra já fizera sua Revolução Burguesa bem antes, preservando o trono, tirando deste o poder determinante. A colônia inglesa também promovera sua revolução. O que havia de comum? A busca de um novo Estado, mais ainda, de um novo sistema econômico que suplantasse as formas feudais de economia.
Feita a revolução nos principais centros do mundo, o Século XIX nasceu sob a égide do capital, com a conquista do Poder Político, consequência do Poder Econômico já predominante. A burguesia então se dedicou a moldar seu Estado, a definir suas fronteiras, a construir nações e um novo mundo.
Internamente, o novo sistema já trazia a dualidade intrínseca da luta de classes: Capital vs Trabalho. A incipiente classe operária ainda imatura sofria sob a força bruta dos patrões burgueses. Submetidos a longas jornadas, com salários que mal davam para se reproduzir, os trabalhadores não tinham leis ou organizações sindicais fortes para defendê-los e organizá-los. Nem assim as crises deixavam de acontecer. Vinham com periodicidade bem definida, tendo seu maior vetor nas crises de escassez, em particular as de produção agrícola, o que levou Malthus a elaborar a famosa fórmula de que o capitalismo poderia ruir por escassez.
Marx rejeitou essa “crise de subconsumo” ou de “escassez” – a de 1846, por exemplo, na verdade era fruto de praga nas plantações –, demonstrando que as crises são associadas à superprodução de capital. A primeira grande depressão do capitalismo se deu entre 1873 e 1895. Violenta, a crise atingira em cheio Europa e Estados Unidos, com causas na Guerra Franco-Prussiana, como contam Martins e Coggiola:
“A crise originou-se na Áustria e Alemanha, países que experimentavam um intenso desenvolvimento industrial devido, em parte, às indenizações pagas pela França em virtude da guerra de 1871. Também o Estados Unidos sofreram mais violentamente seu impacto. Os altos dividendos da indústria alemã incrementaram a especulação, que se alastrou para as ferrovias e imóveis beneficiadas pela grande oferta de crédito. Subitamente, porém, os custos aumentaram e a rentabilidade começou a cair. Inicialmente a crise foi financeira e estourou em Viena, com a quebra da bolsa de valores, seguida de falências de bancos de financiamento austríacos, alemães e norte-americanos. Nos Estados Unidos, a depressão esteve ligada à crise da especulação ferroviária. A simultaneidade na aparição de dificuldades, tanto de um lado como de outro da Mancha e do Atlântico, ilustra a integração das economias industriais em matéria comercial e mais ainda em matéria de movimentos de capitais”.(…) “A crise abriu espaço para a crescente monopolização das economias nacionais e permitiu a intensificação da expansão imperialista, acirrando a tensão entre as grandes potências capitalistas”.
IMPERIALISMO E REVOLUÇÃO
Ali se preparava um Novo Estado, que Lênin analisou em seu “Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo”. O Estado se fortificava não apenas militarmente, mas no conjunto de instituições montadas para dar suporte à nova realidade do capital. A classe operária já era madura e forte, tendo enfrentado o capital com greves, a construção de sindicatos e de partidos de classe.
A guerra imperialista de 1914 eclodiu na Europa numa feroz disputa por mercado e territórios – a guerra é a expressão última do imperialismo. As forças estatais se concentram na indústria de guerra – uma nova indústria ou uma nova revolução industrial, impulsionada pela metalurgia, máquinas, carvão, petróleo, o que mudou radicalmente o mundo.
A revolução na Rússia, o elo mais frágil do imperialismo, abriu uma possibilidade histórica num país cheio de contradições: no campo, relações econômicas feudais e nas cidades uma classe operária minoritária, em parte dizimada na guerra e, depois, na defesa da revolução. Em meio ao caos econômico e social, em 1921 Lênin propôs a NEP, a Nova Política Econômica, em essência o Capitalismo de Estado sem burguesia – a chave da burocracia, que até explica a China atual.
No “mundo livre”, o Pós-Guerra trouxe profunda desagregação. A Alemanha foi praticamente destruída, pagando preço altíssimo pela guerra, mas sua ideia de domínio do mundo continuava no ar. A segunda grande depressão do capital aconteceu em 1929 nos EUA, que já despontavam como a maior economia mundial: violenta queda da bolsa e quebra geral de empresas. Durante quatro longos anos a economia mundial ficou à deriva. A solução encontrada? Seguir as teses de Keynes, que apostava na intervenção do Estado como regulador das crises. URSS e EUA gestaram estados de bem-estar social, com profunda intervenção na economia.
CRÉDITO, O MOTOR DA GUERRA FRIA
Muitos economistas consideram os anos 60 e parte dos 70 os anos dourados da economia mundial, com larga expansão da economia, crescimento e mundialização do comércio. Estes anos apagaram em parte a maior catástrofe da humanidade, a Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945. Os EUA lideravam a oferta de crédito, dinamizando o crescimento: garantiam o crédito e compravam a produção, mesmo que isso significasse enorme déficit comercial. Mas seguravam as rédeas econômicas e combatiam o “comunismo”.
A famosa Crise do Petróleo, de 1974, já se gestava desde 1968/69, o ápice da superprodução. Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, suspendera unilateralmente o sistema de Bretton Woods, cancelando a conversibilidade direta do dólar em ouro. Vieram abaixo todos os sistemas de planificação monetária e conversibilidade do Pós-Guerra, que impulsionaram a integração das economias ocidentais.
O repique da crise deu-se em 1981/82, com o início do governo Reagan, e se expressou na questão das dívidas dos países então chamados de “Terceiro Mundo”, que haviam recebido grandes investimentos de capital desde o fim dos anos 60/70. A “conta” foi cobrada por FMI e Clube de Paris no início dos anos 80. Um novo ciclo efetivamente se abriria em 1983, com a maior revolução do capital, a da microeletrônica, e uma virada política que derrubou o Muro de Berlim e a URSS.
O NEOLIBERALISMO
Essa virada política começou com as vitórias de Reagan e Thatcher, que impuseram ao mundo ajuste econômico duríssimo, com privatizações e restrição do crédito “fácil”, resultando na grave crise das dívidas de Brasil, México e Argentina. A ofensiva ideológica neoliberal foi tamanha que não houve ação possível fora desta ordem. Rebeliões latino-americanas foram combatidas sangrentamente, como em El Salvador e Nicarágua, revoluções e governos de esquerda foram sufocados. URSS e países do Leste europeu acabaram impiedosamente derrotados.
Nunca uma ideologia capitalista perdurou tanto como a neoliberal: foram 30 anos seguidos de vitórias, sendo a primeira delas a da premiê Margaret Thatcher contra 200 mil mineiros britânicos de 130 minas de carvão: após 16 meses em greve, entre 1984 e 1985, acabaram reduzidos a pó (hoje são pouco mais de 1.500 em seis minas). Da queda do Muro de Berlim, em 1989, a 2008, nem sequer houve combate ideológico global: a esquerda ideológica resumia-se a pequenos círculos, a tal ponto que Francis Fukuyama decretou “o fim da história”.
SENHOR DO MUNDO E DAS GUERRAS
Como diz Macbeth após as revelações das bruxas: “Tudo que nos parecia sólido sumiu ao vento como nossos anelos”. Vitorioso no combate ao comunismo, Reagan conseguiu eleger seu vice, Bush Pai. A base da economia americana era a indústria bélica, bilhões do orçamento público eram gastos para deter o “inimigo vermelho”. Destruído o inimigo, para que manter a máquina de guerra? A pretexto de proteger suas posições no Golfo Pérsico, Bush Pai invadiu o Iraque em 1991. Mal sucedida militarmente, pois não derrubou Saddam Hussein, a incursão reanimou, contudo, a economia.
Uma surpresa foi a vitória de Bill Clinton, ex-governador de Arkansas, estado pequeno e secundário. Com trajetória de militância política em causas sociais, Clinton liderou por oito anos um dos maiores crescimentos da economia americana – e sem grandes conflitos externos. Favorecido por sua liderança no cenário mundial, impôs política de expansão de empresas e da influência americana baseada no dólar e no mercado financeiro.
Os ataques de 11 de setembro de 2001 mudaram o cenário: Bush Filho governou com seus belicosos “falcões”, que deram início à famigerada guerra ao terror, impondo ao mundo sua doutrina da “guerra preventiva”. Na economia, um novo “inimigo” crescia silenciosamente, a China, que passou a financiar o crescente déficit fiscal americano. Barack Obama chegou à Casa Branca já sob os efeitos do mais profundo dos baques, a quebra do sistema financeiro americano, da qual tratamos anteriormente. No front externo, a secretária de Estado, Hillary Clinton, elegia com seus falcões da guerra um novo inimigo, o Irã.
A sombria Gotham City, paradigma do “Novo Estado“
A GÊNESE DO ESTADO GOTHAM CITY
No último filme da trilogia Batman, o Cavaleiro das Trevas, o roteiro ultraliberal de Frank Miller coincide com a visão da direita radical americana, expressa no Tea Party: o Estado é “inimigo” do povo, serve apenas para manter uma burocracia corrupta e falida. O heroísmo individualista pune os corruptos pela eliminação física, sem tribunais. A “Liga das Sombras”, ainda mais radical, propõe a limpeza de Gotham City, como que para purificar a humanidade, a corrupta e decadente civilização. A doutrina do império não tolera radicais.
Batman é a expressão de um estado de exceção. A Lei Dent do roteiro equivale ao Patriot Act 1, que regeu os EUA pós-11/9: todas as garantias individuais são suspensas, mandam a polícia e o poder coercitivo do Estado. As fundações privadas comandam as redes sociais de proteção, e não mais o Estado: é a Fundação Wayne que sustenta hospitais, escolas e creches. A prisão de Blackgate poderia estar em Guantánamo: tanto numa como noutra, os presos estão sujeitos a regime de exceção.
A metáfora vai mais fundo: se no segundo filme da trilogia o caos total assombrava Gotham, assim como a queda das torres gêmeas assustou Nova York, o hiato da aparente “paz” forçada pela Lei Dent (ou o Patriot Act 1) só terminará simbolicamente com a queda da bolsa de valores e a quebra dos bancos, alimentadas pela ampla especulação – no filme, a invasão direta da Wayne Enterprise. A arte imita a vida, o herói é novamente chamado para evitar a destruição total. A leitura do conflito é bem definida: o poder do capital também pode destruí-lo.
Poucas vezes um filme de ação conseguiu ser tão instrutivo. Bane, um anti-herói típico, toma o poder em nome do povo, caricatura de “socialista” ou “indignado” do movimento Occupy. Todos são convidados a tomar o poder em meio à barbárie. Os vetores visíveis deste “Novo” Estado: fim do conceito de bem-estar social – educação, cultura e saúde perdem seu caráter de obrigação pública e gratuita, assumidas por entes privados; ampla privatização, com o fim da intervenção direta do Estado na economia – ao novo Estado sobra gerir as forças repressivas, aplicar leis restritivas, quebrar direitos fundamentais. É isso que estamos chamando de Estado Gotham City.
O Estado que surge desta crise começou a ser desenhado no fim dos anos 80. Com a queda do Muro de Berlim, livre do contraponto do Leste europeu, reduzir gastos públicos virou obsessão do capital. A redefinição do papel do Estado, de seu tamanho, de seu alcance foi sendo paulatinamente trabalhada econômica, política e ideologicamente.
A própria retomada de um novo ciclo do capital, aparentemente, depende da implementação deste novo Estado. Os governos passariam a meros apêndices de grandes bancos e grandes empresas. Presidentes e primeiros-ministros já se comportam como executivos de corporações, e em muitos casos vão efetivamente trabalhar nelas quando deixam o governo. No plano político, a forma de representação entra em contradição com a democracia representativa – em muitos lugares o próprio conceito de democracia começa a ser questionado: força e repressão viram opção principal. Leis como Patriot Act, nos EUA, ou de imigração, como na França, exemplificam este momento.
O Estado é capturado por agências e burocratas que não respondem aos anseios populares, não passam e nem desejam passar pelo crivo popular. Os casos mais esdrúxulos estão nos EUA: o presidente do Federal Reserve, sem mandato popular, define o futuro do país, e o presidente Obama não tem como intervir nos destinos econômicos, pois a modelagem do Estado não lhe permite margem de manobra. Até a indústria armamentista, antes de composição majoritariamente estatal, foi terceirizada. Aqui no Brasil, algumas agências criadas em gestão tucana desafiam o ordenamento jurídico, legislando sem mandato. A sorte é que o Brasil, a exemplo da União Europeia, não tem Constituição como a americana, que permite a “livre” ação destes burocratas.
Os direitos sociais, consagrados na constituição de vários países da UE, é o atual centro de ataques deste novo modelo de Estado. Portugal, Espanha e Grécia reagem à crise com medidas que afrontam sua lei maior, e os tribunais superiores se transformam no último recurso. Em Portugal, por exemplo, o governo suspendeu entre outros direitos o 13º e o 14º salários por exigência da Troika, mas o Tribunal Constitucional, a mais alta corte portuguesa, anulou a decisão – que, até agora, o primeiro-ministro Passos Coelho não cumpriu. Outra saída são as manifestações de milhões contra os planos de austeridade, para limitar a ação desses governos-fantoche, como veremos adiante.
ESTADO GOTHAM CITY E BRICS
Do ponto de vista do Estado, a China emprega conceitos de economia estatal centralizada combinada a mercado e empresas privadas. O Estado define as ações e uma ampla burocracia vai levando o gigantesco barco, com mais de 1,4 bilhão de habitantes. A China fora incorporada ao capitalismo antes da grande crise, nos anos 90, dando fôlego vital ao sistema capitalista central, agregando amplas massas ao processo produtivo, ajudando a definir novos padrões produtivos e a incrementar a taxa de lucro.
Sinceramente, não sei que outra formação política daria conta de tanta gente e tantas contradições. Os elementos da democracia que conhecemos no Ocidente dificilmente vingam no Oriente – isso vale para China, Coréia do Sul ou Japão, regimes muito específicos.
A desigual Índia, com seu regime de castas, divisão religiosa potencialmente explosiva e seus mais de 1 bilhão de habitantes, está sendo gerida por nova elite política e intelectual, que tenta dar unidade a um país gigantesco que não parece disposto a assumir valores ocidentais. A entrada de grandes empresas dinamizou a economia do país, mas o atraso histórico e a crise começam a minar seu crescimento. A Rússia, com seu poder energético e uma frágil democracia, é dominada por burocratas da antiga URSS. Durante o processo de privatização essa elite ficou bilionária, mas vive em luta mortal pelo controle do Estado e de suas riquezas. Parte do “novo” Estado se firmou lá: mesmo integrando os BRICS, a Rússia tem foco claro no capital, até no modelo do grupo de elite gestor.
O Brasil foi extremamente penalizado nos anos 80, devido à crise da dívida, só se readequando a partir da gestão Itamar, quando lançou sua dolarização, uma moeda ancorada no dólar – e o que era tática temporária virou âncora do poder. Aproveitando o prestígio da estabilidade, FHC conduziu uma série de desmontes do Estado, rumo ao novo Estado: muitas características do que se propõe hoje o capital foram aqui implementadas sem resistência. Os anos de hiperinflação e o desarranjo econômico serviram para conter resistências.
Vários elementos estranhos ao ordenamento jurídico brasileiro, como as famigeradas agências, foram incorporados ao Estado, numa construção artificial do modelo americano, apesar da Constituição de modelo europeu. Essa “ginástica” levou ao esvaziamento do Estado, em particular no setor de infraestrutura, como energia, estradas, portos, aeroportos e comunicações. Nas crises cíclicas de 97, 98 e 99, o Brasil não tinha política de Estado, o que redundou em apagões elétricos, no plano cotidiano, e em completa dependência do FMI, no plano econômico.
Os governos Lula e Dilma deram início à reconstrução da atuação do Estado, mas sem mexer no próprio Estado, sem se opor ao “novo” Estado que emergira da gestão tucana. Os vários avanços econômicos no Brasil, de incorporação de amplas parcelas que viviam à margem da cidadania, sem emprego ou renda, ainda não se traduziram em avanços políticos: a negociação para qualquer mudança é extremamente lenta, desgastante, e emperra o salto para a frente do país.
O impasse é a marca deste período. A grande crise pode ter bloqueado políticas mais afirmativas, de ruptura mesmo com o modelo FHC, do novo Estado, o que atrasa o país. Essa ruptura, no entanto, é de extrema urgência para que o Brasil chegue a outro patamar de país e nação. O que foi feito nestes últimos 10 anos, contudo, não nos parece pouco, visto que recentemente ainda se pensava em atrelar o Brasil aos Estados Unidos como forma única de superar as mazelas. O PT mostrou o contrário, e isto é muito.
De modo geral, o novo Estado parece se impor de forma desigual; nos BRICS, houve bloqueio e empates, não ruptura.
ESTADO GOTHAM CITY E INDIGNADOS
Pelo lado dos trabalhadores e da população em geral, vimos que se organizam na Europa, no Oriente Médio e nos EUA em vários movimentos de indignados. Mas o que importa é identificar se há planos claros de ruptura com o sistema ou mesmo propostas dentro do sistema que, de forma objetiva, apontem alguma saída da crise. Várias vezes debati o papel dos indignados na série Crise 2.0.
As famosas manifestações da Primavera Árabe, com auge no Egito, rapidamente se estenderam à Europa. O país mais atingindo pela crise, sem dúvida, foi a Grécia. A resistência tem sido heroica, lembrando seu passado mitológico. A Puerta Del Sol em Madri é o símbolo de luta e resistência dos trabalhadores e do povo espanhol. As rebeliões de Londres, numa onda que misturava protesto e vandalismo, mostrou que a luta é a saída para as regiões mais excluídas, apesar da repressão violenta. A ocupação de Wall Street foi indício de que a resistência chegara ao coração do sistema. O amplo empobrecimento, os seguidos planos que salvam a pele dos bilionários não são digeridos pacificamente por trabalhadores e estudantes.
E o futuro? O caso da Espanha é emblemático.
- A Primavera de Madri/Barcelona deu frutos ou se esvaziou?
- Os indignados desmascararam o governo “socialista”, mas com a forte abstenção que defenderam deram combustível à direita. Isso adiantou?
- O movimento forjou qualquer plataforma alternativa de poder ou mesmo de governo?
- Apenas se indignar com os políticos não leva à despolitização geral?
Para mim ficou claro que todos estes movimentos que questionam o sistema estabelecido mas não propõem alternativa de poder ou de governo acabam em imensa frustração e despolitização, alimentado a direita, que galvaniza a revolta para seus interesses. Foi o que aconteceu na Espanha e em outros países, fechando-se a vaga histórica de um período revolucionário, como procurei demonstrar em “Crise 2.0: Direita, Volver!!”
Os limites destes movimentos estão no vazio de propostas alternativas. A exceção seria a Grécia. O caminho do Syriza, o pequeno partido grego de esquerda que ousou enfrentar as forças políticas tradicionais e disputou firmemente as eleições, conquistando amplo crescimento, é uma alternativa clara aos governos-fantoches da Troika. Este é o rumo para os trabalhadores e o povo em geral, que pagam a dura conta da crise.