A institucionalidade participativa |
por Francele Cocco |
DIPLOMATIQUE – O que se construiu no Brasil como mecanismos de participação? Isso foi uma conquista? ROSANGELA – Temos de entender que as instâncias de participação são uma conquista dentro do processo de construção democrática. A construção desses espaços deu-se nos anos 1990, respondendo a uma demanda por democratização das relações entre o Estado e a sociedade civil. ANNA LUIZA– Essa demanda remonta aos anos 1970, vem do movimento dos sanitaristas, os conselhos de saúde foram a fonte inspiradora de outros conselhos. Foi um movimento que foi se formando, que foi experimentando a participação nessas instâncias, até chegar a 1988, quando havia força política para escrever isso na Constituição. DIPLOMATIQUE – Que mecanismos de participação existem? ROSANGELA – Basicamente nós temos nos mecanismos de participação os conselhos e as conferências; há outros instrumentos de democracia direta, mas eles têm outra natureza. Os conselhos de políticas públicas têm um papel muito mais de controle social, de fiscalização e de deliberação da política. Já as conferências são um processo que amplia significativamente a participação dos cidadãos. Hoje há mais de setenta conselhos nacionais instalados, que vão se reproduzir na esfera estadual e na esfera municipal. Na pesquisa que Pólis e Inescrealizaram, chegamos a levantar 71 conselhos e 74 conferências no período de 2003 a 2010. DIPLOMATIQUE – O que esses conselhos fazem? Eles decidem alguma coisa? ROSANGELA – Esse estudo olhou para todos os conselhos nacionais e para as conferências nacionais. Os conselhos são muito distintos, em sua maioria são deliberativos, 38 têm caráter deliberativo e 24 são consultivos, mas nem por isso há uma alta incidência na política. ANNA LUIZA – Esses conselhos no plano nacional são predominantemente masculinos, e nos conselhos locais há uma presença significativa das mulheres. Quanto mais se sobe na hierarquia do poder, na estrutura federativa, mais eles vão se masculinizando, ainda que a presença de mulheres nos conselhos nacionais seja maior do que no Parlamento. Ser deliberativo não é suficiente. Os conselhos que conseguiram incidir na agenda governamental ou na agenda pública são os que têm atores com uma força política grande. A capacidade de incidência depende de quem está lá e também do lugar que essa questão ocupa no projeto do governo. ROSANGELA – Essas instâncias de participação começaram a representar a possibilidade de um compartilhamento de projetos entre governo e sociedade civil. Nesse diálogo, nesse compartilhamento de projetos, a disputa está presente, mas há mais escuta governamental − esse é um dado que aparece nos anos 2000 diferentemente do que era nos anos 1990. DIPLOMATIQUE – O que é compartilhamento de projetos? ROSANGELA – Por exemplo, o Sistema Único de Assistência Social [Suas] não é um projeto de governo, é um projeto de Estado, e no Suas se começa a criar consenso em torno de algumas propostas que são governamentais ou que eram da sociedade civil e passaram a ser governamentais. No caso do Sistema Único de Saúde, há uma disputa muito grande quanto à terceirização dos serviços, às privatizações etc., mas a defesa do sistema único de saúde público cria um compartilhamento de projeto, e nesse sentido se reforçam e se fortalecem posições nessa disputa. ANNA LUIZA – Houve um adensamento, uma proliferação de instâncias de participação durante o governo Lula. Conselhos foram criados, outros reativados, conferências foram feitas pela primeira vez sobre temáticas como a da juventude, mas há áreas blindadas. DIPLOMATIQUE – O que é uma área blindada? ANNA LUIZA – Por exemplo, Minas e Energia. Não existe Conselho de Minas e Energia. Isso para não falar das questões relacionadas à área econômica, às questões estratégicas. Existem conselhos para todas as áreas de políticas sociais, mas existem áreas em que nunca se aventou a criação de conselhos: são as áreas estratégicas, a área econômica. Os grandes projetos correm por fora. Não é à toa, por exemplo, que dá problema com os índios lá em Belo Monte, porque existe uma instância de debate, de negociação, de explicitação dos distintos interesses presentes na sociedade em torno daquela questão. DIPLOMATIQUE – E com o Conselho das Cidades? O programa Minha Casa, Minha Vida sai da Casa Civil. Como você vê isso? ANNA LUIZA – Esse é o caso emblemático. Não é só o Minha Casa, Minha Vida; o PAC inteiro corre por fora. Fica a pergunta: o que é efetivamente discutido dentro do Conselho? O que passa pelo Conselho e o que não passa? O que passa, passa como? E o que não passa, por que não passa? Ainda que exista hoje uma explosão de estudos sobre participação, há as famosas perguntas que não querem calar e que ninguém respondeu ainda. DIPLOMATIQUE – Rosangela, o que você diz sobre a existência de um sistema de participação e decisões que passam por fora? ROSANGELA – Existe de fato um núcleo duro do projeto de governo que não interessa abrir ao debate e à participação. São os interesses econômicos, sim, e acho que o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e o Minha Casa, Minha Vida são exemplos disso. Mas há áreas em que o governo é permeável à participação, que influi sobre o desenho das políticas. Isso foi possível na área da juventude, na igualdade racial, na assistência social e em muitas outras. Se olharmos para as áreas setoriais, a participação estruturou sistemas de política pública nas três esferas. E isso é muito significativo. Esse sistema participativo dialoga com setores organizados da sociedade. Para você participar, tem de ser organizado numa instituição ou num movimento. É difícil você ver o sistema participativo aberto a uma participação mais informal para o cidadão. Há um distanciamento dessas instâncias do que acontece nas cidades, no cotidiano das pessoas que pegam ônibus, que ficam horas em filas, que pagam suas despesas. As instâncias de participação não respondem ao cotidiano imediato das pessoas; a participação é para o sujeito politicamente organizado e para as entidades de representação de segmentos. Essa é a divisão que foi feita lá no final dos anos 1980. ANNA LUIZA – É necessário mexer no desenho da representação, tornar essas instâncias mais representativas da diversidade de atores que estão na sociedade. As instâncias de participação são uma aposta política; a democracia participativa é para ampliar as vozes na arena pública e de fato ampliou, mas ampliou e cristalizou, e aí eu acho que precisa de oxigenação. DIPLOMATIQUE – Como seria isso? ANNA LUIZA – Por exemplo, as representações são por segmentos, que estão delineados e não se mexe nisso. Mudam-se os representantes, mas não se muda a representação do segmento. Com isso se excluem novos atores e novas agendas. Acho que é necessária uma coisa mais aberta à diversidade. ROSANGELA – Outro exemplo é no segmento dos trabalhadores. Para você ir a um conselho nacional tem de ser de uma central sindical, de uma federação ou de um órgão equivalente. Qualquer outra forma de organização dos trabalhadores não é reconhecida no sistema participativo. Os conselhos teriam de prever a possibilidade de que uma assembleia de trabalhadores muito mais horizontal pudesse indicar seu representante. ANNA LUIZA – É um engessamento. E por que não uma renovação permanente, para que outros interesses, com outras agendas, possam ser colocados para dentro dessas institucionalidades? Por que são sempre os mesmos interesses ali representados? ROSANGELA – Uma organização deve representar uma ideia, um projeto e um grupo. Com a cristalização da representação, a gente começa a perder a ideia de volta para a base. Cadê a base? Cadê os fóruns da sociedade civil, cadê os movimentos sociais organizados? Há nesse processo um distanciamento e uma perda na representação. O que está colocado para algumas representações é a defesa do seu projeto, da sua organização, da sua igreja, do seu partido. Então elas vão estar presentes nos vários conselhos. É possível mapear uma estratégia política de um setor da sociedade que quer estar presente onde acha que é fundamental estar. ANNA LUIZA – Precisaria de estudos que aprofundassem melhor essa questão: que desenho é esse? Por que algumas demandas são mais legítimas do que outras? A representação deve ser rotativa; é preciso haver vários olhares oxigenando a agenda do país. DIPLOMATIQUE – Você falou que esse processo participativo estruturou políticas, estruturou a participação ou estruturou as políticas? ROSANGELA – Acho que os dois. Eu falo da experiência do Conselho de Assistência Socialporque eu fui conselheira, representando a Abong e o Pólis. Estruturou a participação de uma área muito despolitizada, cujos atores foram convocados a participar. Mas estruturou também a política, no sentido de que todas as mudanças na política tiveram de passar pelo Conselho e foram deliberadas por ele. DIPLOMATIQUE – A política brasileira mudou muito a partir das conferências? Que sugestões e encaminhamentos foram dados aos organismos de governo? Como sabemos o que mudou? ROSANGELA – Esse é um dos temas de estudo para aprofundarmos. A pesquisa apontou que as conferências desse período, 2003 a 2010, aprovaram 14 mil propostas, algumas delas que se sobrepõem, algumas que se contradizem. Em certos casos, como em relação ao aborto, há deliberações contraditórias, e não sabemos como foram tratadas, se foram tratadas. Quantas dessas 14 mil propostas se tornaram política pública, tiveram uma efetividade ou impactaram a política? ANNA LUIZA – Eu acho que existem pontos positivos. No campo da juventude, a prioridade da 1ª Conferência Nacional de Juventude era a luta contra o genocídio da juventude negra; passados quatro ou cinco anos, isso se transformou numa prioridade de governo, que é o Plano Juventude Viva. ROSANGELA – Um bom exemplo é o do Consea: a cada dois anos faz uma conferência de monitoramento do que foi deliberado e só depois de dois anos há uma nova conferência para novas deliberações. Essa é uma indicação interessante para outras áreas e para o Sistema Nacional de Participação que está em discussão no governo federal. DIPLOMATIQUE – As conferências apresentam pleitos e o governo escolhe? É uma escuta, que eles chamam de escuta forte, ou um processo deliberativo? Como se encaminha isso? ANNA LUIZA– É uma escuta, mas existem atores que berram mais alto e se fazem escutar. Não é que simplesmente o governo escolhe, também há a correlação de forças, ou isso já estava na agenda do governo e, portanto, a conferência reforça e legitima a proposição governamental. ROSANGELA– O governo também vota nas conferências, ele também está presente, então parte dessas propostas deliberadas é legitimação de propostas governamentais que já estão em curso. ANNA LUIZA– Eu volto à questão da necessária oxigenação dos segmentos que estão presentes. Quem convoca as conferências? Se forem sempre os mesmos segmentos, temos aí um problema, porque você muda as pessoas, mas não muda os segmentos que estão representados e suas demandas. Somente em 18% dos conselhos mapeados no nosso estudo há a eleição para a escolha de representantes. Em 29% deles a indicação foi por ministro ou órgão ao qual o conselho se vincula, e em 31% dos conselhos seus integrantes são representantes de organizações mencionadas em atos normativos. DIPLOMATIQUE – Nós temos de fato então uma representação da sociedade nesses conselhos? ANNA LUIZA – Temos de parte da sociedade. DIPLOMATIQUE– Quem ficou de fora? ANNA LUIZA– Quem tinha menos capacidade de organização no momento da criação dessas institucionalidades, eu não sei se teve modificação no desenho das representações nesses 25 anos. O desafio é a gente ousar experimentar mudanças. Enfim, acho que as manifestações de rua, de junho, nos desafiam a pensar isso. ROSANGELA – Alguns setores organizados não tiveram força para garantir sua representação, e alguns setores deliberadamente disseram não para esses espaços. O movimento de moradia é um exemplo interessante, que combina as duas coisas, não saiu da rua, não saiu das ocupações dos prédios e vai para conselhos das cidades, mesmo não sendo deliberativos, com toda a crítica que fazem a ele. DIPLOMATIQUE – Nesses conselhos estão incluídos os empresários também, ou não? ANNA LUIZA – Em alguns casos estão. Mas que empresários? As grandes corporações não estão certamente, pois seus espaços de interlocução são outros. DIPLOMATIQUE – Nós tivemos em junho aqui no Brasil mais de 2 milhões de pessoas nas ruas, cerca de quatrocentas cidades tiveram manifestações. Com essa mobilização toda, esses conselhos foram superados? ANNA LUIZA – No nosso estudo buscamos também discutir as utopias em torno da democracia participativa. Foram feitas várias entrevistas e, ao falarem sobre as utopias que mobilizaram e seguem mobilizando diversos atores políticos, os entrevistados acabaram fazendo uma avaliação das estruturas participativas no Brasil e uma autoavaliação sobre sua aposta política nas instâncias de participação. Nessa autoavaliação, eles dizem: ocupamo-nos demais com as institucionalidades e nos esquecemos das ruas. Uns falavam que a questão da utopia passava pelo resgate das ruas; outros, pelo resgate da educação popular; outros falavam ainda no necessário adensamento das institucionalidades, enfim, mas o “nos esquecemos da rua” foi bastante significativo. As manifestações de rua resgatam e fortalecem a utopia da democracia participativa. As institucionalidades devem ter a sabedoria e a ousadia de se repensar − acho que esse é o desafio, repensar isso, sobretudo a sociedade civil, tensionar para que essa democracia participativa tenha cacife ou capital social, que é a mobilização. DIPLOMATIQUE – Rosangela, eu entendi que a Anna Luiza disse que a participação nas ruas é o que está dando a verdadeira energia renovadora para a democracia brasileira. Isso quer dizer que os conselhos já foram, ficaram para trás? ROSANGELA – Não, os conselhos hoje têm de ser revistos. Eles vão passar por um teste importante este ano. O impacto das manifestações nos conselhos é significativo, pois eles vão ser questionados: como funcionam, como é a representação, como é feita a eleição, como se publica o que é feito nesses conselhos, o que é discutido, o que não sai de dentro dos conselhos... É uma pauta imensa, uma agenda para discussão muito grande, mas me parece que os conselhos hoje têm a oportunidade de se renovar, senão eles vão perder o bonde. O que está colocada é a combinação da democracia direta com a democracia representativa, é o tema da reforma política, é a democracia participativa e as instâncias, porque um pedacinho da democracia participativa são as instâncias de participação; elas têm de ser revistas no seu modo de funcionamento, na sua representação, na sua deliberação, na sua efetividade, no seu diálogo com a sociedade. DIPLOMATIQUE– Mas não há nenhum sinal de que o governo esteja promovendo isso. Ele está organizando um monte de conferências para o semestre que vem sem absolutamente mudar qualquer coisa nos seus procedimentos. Isso é um sinal promissor? ANNA LUIZA – As próximas conferências serão um termômetro: as ruas vão conseguir ocupar as conferências, “invadi-las” com seus temas? Para além de querer mais saúde, mais e melhores políticas públicas, as ruas estão falando: nós queremos participar.
Francele Cocco
Historiadora e editora web do Le Monde Diplomatique BrasilIlustração: Daniel Kondo |
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
segunda-feira, 26 de agosto de 2013
A institucionalidade participativa
sábado, 24 de agosto de 2013
O analfabeto politico e o midiático: coisas em comum
O pior analfabeto é o analfabeto midiático
Bancada do Jornal Nacional (Divulgação)
|
“Ele imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo esforço intelectual”. Reflexões do jornalista Celso Vicenzi em torno de poema de Brecht, no século 21
Celso Vicenzi, no Outras Palavras / Pragmatismo Político
“Ele ouve e assimila sem questionar, fala e repete o que ouviu, não participa dos acontecimentos políticos, aliás, abomina a política, mas usa as redes sociais com ganas e ânsias de quem veio para justiçar o mundo. Prega ideias preconceituosas e discriminatórias, e interpreta os fatos com a ingenuidade de quem não sabe quem o manipula. Nas passeatas e na internet, pede liberdade de expressão, mas censura e ataca quem defende bandeiras políticas. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. E que elas – na era da informação instantânea de massa – são muito influenciadas pela manipulação midiática dos fatos.
Não vê a pressão de jornalistas e colunistas na mídia impressa, em emissoras de rádio e tevê – que também estão presentes na internet – a anunciar catástrofes diárias na contramão do que apontam as estatísticas mais confiáveis. Avanços significativos são desprezados e pequenos deslizes são tratados como se fossem enormes escândalos. O objetivo é desestabilizar e impedir que políticas públicas de sucesso possam ameaçar os lucros da iniciativa privada. O mesmo tratamento não se aplica a determinados partidos políticos e a corruptos que ajudam a manter a enorme desigualdade social no país.
Questões iguais ou semelhantes são tratadas de forma distinta pela mídia. Aula prática: prestar atenção como a mídia conduz o noticiário sobre o escabroso caso que veio à tona com as informações da alemã Siemens. Não houve nenhuma indignação dos principais colunistas, nenhum editorial contundente. A principal emissora de TV do país calou-se por duas semanas após matéria de capa da revista IstoÉ denunciando o esquema de superfaturar trens e metrôs em 30%.
O analfabeto midiático é tão burro que se orgulha e estufa o peito para dizer que viu/ouviu a informação no Jornal Nacional e leu na Veja, por exemplo. Ele não entende como é produzida cada notícia: como se escolhem as pautas e as fontes, sabendo antecipadamente como cada uma delas vai se pronunciar. Não desconfia que, em muitas tevês, revistas e jornais, a notícia já sai quase pronta da redação, bastando ouvir as pessoas que vão confirmar o que o jornalista, o editor e, principalmente, o “dono da voz” (obrigado, Chico Buarque!) quer como a verdade dos fatos. Para isso as notícias se apoiam, às vezes, em fotos e imagens. Dizem que “uma foto vale mais que mil palavras”. Não é tão simples ( Millôr, ironicamente, contra-argumentou: “então diga isto com umaimagem” ). Fotos e imagens também são construções, a partir de um determinado olhar. Também as imagens podem ser manipuladas e editadas “ao gosto do freguês”. Há uma infinidade de exemplos. Usaram-se imagens para provar que o Iraque possuía depósitos de armas químicas que nunca foram encontrados. A irresponsabilidade e a falta de independência da mídia norte-americana ajudaram a convencer a opinião pública, e mais uma guerra com milhares de inocentes mortos foi deflagrada.
O analfabeto midiático não percebe que o enfoque pode ser uma escolha construída para chegar a conclusões que seriam diferentes se outras fontes fossem contatadas ou os jornalistas narrassem os fatos de outro ponto de vista. O analfabeto midiático imagina que tudo pode ser compreendido sem o mínimo de esforço intelectual. Não se apoia na filosofia, na sociologia, na história, na antropologia, nas ciências política e econômica – para não estender demais os campos do conhecimento – para compreender minimamente a complexidade dos fatos. Sua mente não absorve tanta informação e ele prefere acreditar em “especialistas” e veículos de comunicação comprometidos com interesses de poderosos grupos políticos e econômicos. Lê pouquíssimo, geralmente “best-sellers” e livros de autoajuda. Tem certeza de que o que lê, ouve e vê é o suficiente, e corresponde à realidade. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e o espoliador das empresas nacionais e multinacionais.”
O analfabeto midiático gosta de criticar os políticos corruptos e não entende que eles são uma extensão do capital, tão necessários para aumentar fortunas e concentrar a renda. Por isso recebem todo o apoio financeiro para serem eleitos. E, depois, contribuem para drenar o dinheiro do Estado para uma parcela da iniciativa privada e para os bolsos de uma elite que se especializou em roubar o dinheiro público. Assim, por vias tortas, só sabe enxergar o político corrupto sem nunca identificar o empresário corruptor, o detentor do grande capital, que aprisiona os governos, com a enorme contribuição da mídia, para adotar políticas que privilegiam os mais ricos e mantenham à margem as populações mais pobres. Em resumo: destroem a democracia.
Para o analfabeto midiático, Brecht teria, ainda, uma última observação a fazer: Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
O analfabeto político
O pior analfabeto, é o analfabeto político.
Ele não ouve, não fala, não participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida,
O preço do feijão, do peixe, da farinha
Do aluguel, do sapato e do remédio
Depende das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que
Se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia política.
Não sabe o imbecil,
Que da sua ignorância nasce a prostituta,
O menor abandonado,
O assaltante e o pior de todos os bandidos
Que é o político vigarista,
Pilanta, o corrupto e o espoliador
Das empresas nacionais e multinacionais.
Bertold Brecht
Marcadores:
critica social,
inclusão digital,
luta de classe,
opinião filosofica,
revolucionários
sexta-feira, 23 de agosto de 2013
O corporativismo do CFM contra os pobres sem atendimento....
Médicos cubanos: pode criticar, mas não é trabalho escravo
Acima de tudo, isso é falta de contato com a realidade e de respeito com quem realmente está nessas condições e precisa ser resgatado para ter sua liberdade ou dignidade de volta
Leonardo Sakamoto,
Se considerarmos que a condição dos médicos cubanos que estão sendo trazidos ao Brasil é de trabalho escravo contemporâneo, como querem fazer crer alguns contrários ao programa Mais Médicos, também teremos que incluir nessa conta milhões de trabalhadores do agronegócio, da construção civil, dos serviços que recebem salários abaixo do piso ou do mercado. O governo cubano deve receber os recursos das bolsas de R$ 10 mil e repassar parte delas aos seus médicos no Brasil.
Renato Bignami, responsável pela fiscalização de casos de escravidão em São Paulo, analisa que, a princípio, os elementos do novo programa do governo federal não caracterizam trabalho análogo ao de escravo. Se considerarmos que configuram a priori, parte do trabalho no Brasil seria escravo. Ou seja, um desconhecimento do artigo 149 do Código Penal, que trata do tema, e da jurisprudência em torno dele.
E os fiscais do trabalho já viram muita gente, inclusive escravos envolvidos em processos do próprio governo federal, como na produção de coletes para recenseadores do IBGE, em obras do Minha Casa, Minha Vida, do Programa de Aceleração do Crescimento, do Luz para Todos…
Ganhar pouco ou mesmo estar em condições precárias de trabalho são coisas diferentes de trabalho escravo. Estampar algo como “trabalho escravo” pode ser útil para dar notoriedade a um argumento, uma vez que é um tema grave e que gera repulsa por parte da sociedade. Mas, por isso mesmo, deve-se tomar muito cuidado ao divulgá-lo, que é o que os jornalistas que cobrem o tema tentam fazer o tempo todo. Saibam que muita coisa fica de fora porque não se sustenta.
De acordo com o artigo 149, são elementos que determinam trabalho análogo ao de escravo: condições degradantes de trabalho (aquelas que excluem o trabalhador de sua dignidade), jornada exaustiva (que impede o trabalhador de se recuperar fisicamente e ter uma vida social), trabalho forçado (manter a pessoa no serviço através de fraudes, isolamento geográfico, ameaças e violências físicas e psicológicas) e servidão por dívida (fazer o trabalhador contrair ilegalmente um débito e prendê-lo a ele).
Não espero que o corporativismo tacanho de alguns representantes de associações médicas entendam isso. Mas o cidadão comum, sim, precisa compreender a diferença.
Uma coisa é a política pública em si, de levar médicos estrangeiros ao interior do Brasil em áreas carentes, que – a meu ver – está correta. Outra é deixar de garantir direitos a grupos de trabalhadores, nacionais ou estrangeiros, o que não pode ser aceito.
Se a lei que sair do Congresso Nacional sobre essa política pública, oriunda da análise da medida provisória encaminhada pelo governo, retirar direitos, ela será inconstitucional. Pois mesmo se o regime de trabalho proposto pela MP for excepcional, ele precisa obedecer à Constituição. Caso contrário, vai naufragar. Simples assim.
Essa adaptação vai acabar ocorrendo via controle de constitucionalidade abstrata, pela Procuradoria Geral da República ou pela Procuradoria Geral do Trabalho, ou via milhares de ações individuais por parte dos próprios médicos envolvidos.
Ao mesmo tempo, é fundamental o Ministério Público do Trabalho monitore qualquer irregularidade que prejudique o trabalhador, fazendo com que o governo respeite a Constituição Federal (principalmente o artigo 7o, que versa sobre os direitos dos trabalhadores), as convenções da Organização Internacional do Trabalho e os tratados de direitos humanos dos quais o país é signatário. Prevenir é melhor que remediar.
“Acho difícil acreditar que a Organização Pan-Americana de Saúde validaria uma experiência com mão de obra escrava”, pondera José Guerra, secretário-executivo da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, vinculado à Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, lembrando que a vinda de médicos tem a parceira da Opas.
Marcus Barberino, juiz do trabalho da 15a Região e um dos maiores especialistas jurídicos em trabalho escravo contemporâneo, concorda que não é possível afirmar que o programa incorre em escravidão contemporânea. E que é preciso ter muito cuidado com o conceito. ”A proteção contra tratamentos discriminatórios ao trabalho é de âmbito constitucional e não permite tratamento distinto quanto aos direitos fundamentais. Fora da moldura constitucional, todo programa público será revisto pelo Judiciário naquilo que confrontar com a Constituição, que corresponde ao piso civilizatório universal”, afirma.
Como já disse aqui, a gente perde os cabelos, há anos, tentando fazer a bancada ruralista no Congresso Nacional entender que trabalho escravo contemporâneo não é qualquer coisa, como falta de azulejo no banheiro ou salário baixo, mas um pacote de condições que configura uma gravíssima violação aos direitos humanos. E, de repente, pessoas que desconhecem o tema usam-no em proveito próprio.
Como disse um médico amigo meu que conhece bem a fronteira agrícola amazônica e lá trabalhou: se esse povo todo que fala essas groselhas conhecesse o que é trabalho escravo de verdade ou, pelo menos, a realidade dos trabalhadores rurais do interior do país, não teria coragem de fazer esse paralelo absurdo.
Acima de tudo, isso é falta de contato com a realidade e de respeito com quem realmente está nessas condições e precisa ser resgatado para ter sua liberdade ou dignidade de volta.
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
Entrevista com Ricardo Darín
Andre Lux
O ator e galã argentino fala sobre as vantagens de ter um papa portenho, por que Pelé é uma besta, o disco brega que gravou nos anos 70, golpes de sorte, cinema brasileiro e o dia em que deu um autógrafo para a mãe de Maradona
Na terceira semana de junho, Ricardo Darín cancelou uma série de apresentações que faria no teatro Maipo, em Buenos Aires, e enfurnou-se em sua casa para tentar baixar uma febre de 39 graus que havia uma semana insistia em castigá-lo. Mesmo febril e muito gripado, na manhã do dia 19 pegou sua BMW preta e foi, sozinho, até o hospital fazer um raio X da face – ele desconfiava estar com uma forte sinusite. Foi o suficiente para os sites e programas de fofoca espalharem a exagerada notícia de que a saúde do ator argentino era preocupante, de que ele havia sido internado em caráter de urgência e até de que estava nas últimas.
Aos 56 anos, Ricardo Alberto Darín é um dos maiores ídolos da Argentina, desfrutando da mesma popularidade de estrelas como o ex-jogador de futebol Maradona, o atual craque do Barcelona Lionel Messi e o novo papa portenho Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco. Não é de se estranhar, portanto, que a imprensa de celebridades busque notícias sensacionalistas sobre o astro de filmes como O Segredo dos Seus Olhos, O Filho da Noiva e Um Conto Chinês.
Com quase 50 anos de carreira, 40 filmes e dez peças no currículo, Darín está de volta ao cinema com o suspense Tese sobre um Homicídio, que tem estreia prevista para o dia 26 de julho no Brasil. Também está em cartaz na Argentina com a adaptação teatral de Cenas de um Casamento, escrita pelo dramaturgo e cineasta sueco Ingmar Bergman nos anos 70 para a televisão. Contracena com a atriz Valeria Bertuccelli sob direção de Norma Aleandro, uma espécie de Fernanda Montenegro portenha e com quem ele fez sua estreia na vida artística, aos 8 anos de idade, no rádio. De lá para cá protagonizou incontáveis comerciais, fez novelas, teatro e cinema. No final dos anos 70, desfrutando de grande popularidade por causa de um programa de TV que fazia na companhia de outros jovens galãs, chegou a gravar um disco do qual lembra com certo desgosto: “Aquilo foi um delírio, uma estupidez”. Foi nessa época que ficou amigo de Maradona, durante um concurso de Miss Mundo, ocasião em que o ex-craque, ainda um garoto, lhe pediu um autógrafo para dar à sua mãe.
Darín é tudo o que você não espera de uma celebridade. A começar pelo fato de não se considerar uma celebridade. “O inimigo número um dos atores é o ego”, diz. Filho de um casal de atores “talentosos, mas que não tiveram sorte na vida”, ele conhece todos os meandros, truques e armadilhas do mundo artístico. Insiste em dizer que é um cara de sorte, joga a responsabilidade pelo seu sucesso no talento dos profissionais com quem trabalha e não dá pelota para o Oscar que O Segredo dos Seus Olhos ganhou em 2010. “Não fez diferença alguma na minha vida”, diz.
Para esta entrevista, Darín recebeu o jornalista Ricardo Moreno em sua ampla casa no bairro de Palermo Hollywood, em Buenos Aires, que divide com a esposa, a psicanalista Florencia Bas, de 45 anos, os filhos Chino, 24, Clara, 20, e quatro chachorros: três buldogues franceses e um jack russell, de nomes Kenya, Nelson, Nancy e Marón. Casas, na verdade, pois são duas. Alguns anos atrás, sabendo que a vizinha idosa venderia seu imóvel para uma incorporadora, Darín arrematou-o e ainda deixou a velhinha morando lá.
O encontro, inicialmente agendado para a tarde do dia 20 de junho, uma quinta-feira, teve que ser remarcado para o dia seguinte por causa da forte gripe do ator. Sem a intermediação de assessores de imprensa ou relações públicas, Darín mandou uma mensagem para o celular do fotógrafo Enrico Fantoni perguntando se havia problema em atrasarmos em 24 horas o encontro, pois não se sentia bem. Às 16 horas do dia 20, Darín abriu a porta e pediu para que entrássemos rápido – fazia um frio de 3 graus do lado de fora. “Quer um café? Uma água? Um suco? Uma Coca-Cola?”, ofereceu. Em duas horas de conversa, entre tosses, espirros e um bom humor contagiante, Darín não se esquivou de nenhuma pergunta. Pelo contrário, colocava novos assuntos à mesa enquanto Florencia servia sanduíches de pão de miga recheados de presunto e queijo.
Por que o cinema argentino é melhor do que o brasileiro?
Não estou tão certo de que o cinema argentino seja melhor. Falar do cinema em geral é arriscado. Podemos falar de filmes em particular, mas falar do cinema como indústria de um país é complicado.
Ok, não vamos entrar no mérito da indústria. Mas por que os filmes argentinos vêm tendo mais sucesso do que os longas brasileiros?
Eu acredito que o cinema na Argentina tem a sorte de contar com roteiristas novos, gente desintoxicada do passado. Eles não se sentem na imperiosa necessidade de ter que falar de coisas como a ditadura, por exemplo. Têm liberdade para tratar de outras temáticas. Mas o Brasil deu mostras incríveis de um bom cinema durante muitos anos. E aqui, na Argentina, se consumia muito, mas muito cinema brasileiro.
E quais são os filmes brasileiros de que você mais gosta?Central do Brasil [de Walter Salles, 1998] e Pixote [de Hector Babenco, 1981]. Há outros, muitos outros. Mas os primeiros que me vêm à cabeça são esses.
Voltemos à indústria cinematográfica. Qual é a sua opinião sobre ela?
Todos os cinemas do mundo foram dominados por grandes corporações americanas, que não só fazem os filmes, mas também os distribuem, os promovem, fazem os pacotes completos e ainda vendem a pipoca, a Coca-Cola e te cobram o estacionamento dentro dos complexos que elas mesmas construíram.
No Brasil, a Globo é a maior produtora de cinema. Você acha isso bom?
Ah, esse é outro assunto. Se a Rede Globo capta a maior quantidade de investimentos e, naturalmente, vira a maior produtora de cinema nacional, ela vai querer que os protagonistas de seus filmes sejam os atores e diretores de suas novelas. E há uma distância grande entre o que é fazer televisão e o que é fazer cinema. Não quero dizer que os atores de televisão não possam trabalhar no cinema ou vice-versa. Mas se desde a concepção resolve-se fazer mais ou menos a mesma coisa que se faz na TV para tratar de captar audiência, porque tal novela teve muito Ibope, isso é como um cachorro que corre atrás do próprio rabo. Tem que haver uma independência. Evidentemente há um problema aí. E é tão claro esse problema que nem precisa de um diagnóstico.
Existe algum ator brasileiro reconhecido na Argentina assim como você é no Brasil?
Temo dizer que, neste momento, não há. De uns tempos para cá, as produtoras argentinas simplesmente não lançam quase mais nada do Brasil aqui. A não ser que seja um blockbuster tipo Tropa de Elite. E o que acontece com o cinema argentino no Brasil é o contrário. Eu tive a sorte de filmes como Clube da Lua, O Filho da Noiva, Kamchatka e O Segredo dos Seus Olhos, entre outros, terem estreado e sido muito bem recebidos no Brasil.
E tem alguma ideia de por que eles foram tão bem recebidos?
Tenho algumas teorias. Uma delas é que no Brasil ainda existem alguns pequenos donos de cinema independente que tratam de programar suas salas de uma forma distinta à das grandes empresas. Eles conhecem sua clientela, seu bairro e o tipo de gente que mora por ali. Quem sabe seja por isso que os filmes que faço ainda passem no Brasil.
A gente valoriza muito o Oscar, que nós nunca ganhamos, enquanto a Argentina tem dois. Mudou muita coisa para o cinema argentino ter ganhado as estatuetas?Para mim não fez diferença alguma. Também não sei se ajudou o cinema argentino de uma forma geral, mas me parece que não.
Mas alguém deve ter se beneficiado, não?
Beneficia os produtores, as pessoas que trabalharam nessas equipes. Para cada uma delas, o Oscar representa notoriedade. O que não podemos deixar de reconhecer no prêmio em si é a transcendência mundial que ele tem. Mas não sei se isso ajuda a fazer filmes melhores. Suponho que se te perguntam se você quer trabalhar em um projeto em que o produtor é alguém que ganhou um Oscar, as coisas facilitam um pouco, você vai prestar mais atenção no discurso do cara. Mas o que tampouco é garantia de alguma coisa.
Você nunca teve vontade de fazer filmes em Hollywood?
A verdade é que não. Talvez porque nunca me propuseram algo realmente atrativo. Quando aparecer algo que eu ache interessante, certamente vou considerar. Leio muitos roteiros. Alguns o meu agente lê e diz: “Nem leia que você vai perder a paciência”.
Que tipo de convite já apareceu?
Custo a entender por que um produtor norte-americano me procura para fazer o papel de um chefe de narcotráfico mexicano. E falando inglês! Não faz sentido. É de uma infantilidade e minimalismo tremendos.
Benicio del Toro fez papéis como esse…
O Benicio é muito mais inteligente do que eu, além de mais jovem e muito melhor ator. E também mais simpático. Ele pode ir e vir, cobrir várias frentes, já provou isso. Mas, sim, teve que pagar esse preço inicial para chegar aonde chegou. Hoje em dia, afortunadamente, ele tem liberdade para escolher papéis que tenham mais a ver com o que acredita.
Três anos atrás você anunciou que faria um filme com o Walter Salles. O que aconteceu?
O produtor associado, Óscar Kramer [produtor de filmes como O Passado, Carandiru e Kamchatka] faleceu em 2010. E isso naturalmente gerou uma pausa no projeto, pois precisávamos digerir e assumir essa perda de alguma maneira. O Walter continuou trabalhando no roteiro enquanto filmava Na Estrada. O projeto não foi abandonado, mas está em stand by pois nossas agendas se complicaram. Mas continuo com vontade e esperança de que ainda possa levar adiante esse projeto de trabalhar com ele.
Seu novo filme, Tese sobre um Homicídio, estreia agora no Brasil. Do que se trata?
É um suspense policial. A história se passa dentro da faculdade de direito em que meu personagem, o professor Bermúdez, dá aula de criminalística. Ele é o responsável por um mestrado para advogados no qual todos têm que fazer, ao final do curso, uma tese. E durante esse curso acontece um assassinato de características muito particulares. Bermúdez fica obcecado com esse crime e resolve ir fundo na investigação.
Há mais de uma década você estreia pelo menos um filme por ano, às vezes até mais. É algo planejado?
Não. As coisas simplesmente acontecem. Cinema é algo que começa a ser feito com muita antecedência, dois, três anos antes de o filme realmente estrear. Tem a ver com a distribuição, com a produtora. Eu nunca planejo nada. A única coisa que tenho planejada e que nunca consigo cumprir são as minhas férias.
Mas você está satisfeito com esse ritmo ou tem vontade de trabalhar menos?
Eu tenho vontade de não fazer nada. A verdade é essa: tenho vontade de não fazer nada. Por mim, se eu pudesse, iria viajar por aí. Mas há compromissos que você vai assumindo, coisas combinadas, amigos, um livro que entusiasma, uma história que parece ser interessante e que valha a pena ser filmada.
Há quanto tempo você não sai de férias?
Muito tempo. Nem lembro. Estive planejando viajar antes de começar esta temporada no teatro e não consegui.
Isso é sinal de que surgem muitos convites para você trabalhar. O que vem por aí?
Terminei de rodar Relatos Selvagens. É o filme de um cineasta jovem e muito talentoso chamado Damián Szifrón. Estou botando muita fé nele. São cinco ou seis contos curtos e que, aparentemente, não têm ligação entre si. Mas, no fundo, todos têm um denominador comum, que é a sobrecarga de violência na sociedade. Algo que vocês, brasileiros, conhecem muito bem, sobretudo neste momento de tantas manifestações pelas ruas.
Você acompanhou o que está ocorrendo nas ruas do Brasil?
Sim. E é claro que não foi só por 20 centavos. Falando dos gastos da Copa, especificamente: eu entendo o significado que uma Copa do Mundo tem para nós, latinos. Mas há tantas necessidades sociais importantes, básicas, elementares, e que não podem ser atendidas por falta de orçamento, que eu começo a pensar se não estamos realmente ficando todos loucos com essa Copa. Tento imaginar a presidente Dilma numa dessas reuniões de emergência, sentada à mesa com seus ministros e assessores, e perguntando: “E agora, o que fazemos?” As pessoas têm muita paciência mesmo…
E parece que essa paciência terminou.
Não é preciso ter uma grande educação para se dar conta de quando você está sendo desrespeitado.
O Pelé foi muito criticado por um vídeo feito durante as manifestações em que pedia que as pessoas as esquecessem e apoiassem a seleção brasileira. Você viu?O Pelé sempre foi uma besta. O Pelé sempre esteve do lado do poder. Fez um acordo com uma multinacional e está tranquilo para o resto da vida. É uma pena, um cara tão grande como ele foi, um verdadeiro craque, e que deveria estar do lado do povo. É uma lástima, o Pelé é uma lástima.
E, por falar em Pelé, ouvi dizer que você e o Maradona são amigos desde a adolescência. Qual a relação entre vocês?Conheci-o quando ele tinha 15 anos. Ninguém sabia quem era o Maradona. Estávamos em um programa de televisão, um concurso para escolher a Miss Mundo. Erámos muito jovens: ele com 15 e eu com 18. Os dois sentados, sozinhos, à mesma mesa, e ele me pediu um autógrafo para a sua mãe. Ficamos amigos. Viajamos juntos, jogamos muito futebol, tênis. Mas a relação sempre foi um pouco estranha. Tivemos momentos de grande e profunda amizade e outros de distanciamento. Agora faz muito tempo que não nos vemos. A última vez foi quando a sua mãe faleceu, no velório dela [em novembro de 2011]. Minha mulher ainda é muito amiga da sua ex-mulher e de suas filhas.
E quem você acredita quem foi melhor em campo: Pelé ou Maradona?Não dá para comparar, pois pertencem a duas épocas distintas do futebol. Vi ambos jogarem muita vezes e cada um deles representou, em seu momento, duas formas muito particulares de se movimentar dentro do campo. Pelé foi um atleta, mas Maradona era mais rápido e habilidoso em situações difíceis. Mas não posso ser hipócrita: meu coração está do lado do Diego.
No começo do ano você causou a ira da presidente Cristina Kirchner ao questionar o enriquecimento patrimonial da sua família. Arrepende-se de ter dito aquilo?
De forma alguma. Não disse nada de errado, nem nada que as pessoas não tinham vontade de perguntar. Só que com a maioria das pessoas não há tanta repercussão. Lamentavelmente, em vez de aparecer uma resposta tranquilizadora, o que apareceu foram mais perguntas a respeito.
Ela lhe respondeu por meio do Facebook em um texto em que, em vez de dar a devida explicação, citava um episódio que levou à sua investigação em 1990 por importar um caminhão que teria entrado na Argentina com uma isenção especial para pessoas com deficiência, algo que depois foi provado que não passava de um mal-entendido. Isso o incomodou?
O que me incomodou foi que parecia que eu estava querendo fazer um ataque pessoal a ela, e não era essa a minha intenção. Ela se equivocou na resposta, mas tampouco foi tão grave assim. Há coisas piores.
Como o quê?Eu não deveria nunca mais falar de política, pois toda vez que abro a minha boca forma-se um circo bárbaro ao redor e, como disse um amigo, eu não estou preparado para fazer uma análise certeira, aguda, da situação atual da política argentina. Mas também me pergunto: existe alguém com capacidade para fazer uma análise tão certeira e aguda sobre o que está acontecendo neste país?
E ter um papa argentino é bom para o país?
É, claro. Agora podemos fazer mais piadas e contar mais vantagem em cima dos brasileiros pela competição permanente que temos com vocês. Estou brincando. É sensacional que alguém como o [Jorge Mario] Bergoglio tenha conseguido chegar lá. A Igreja Católica, o grande poder eclesiástico, histórico, arcaico, cometeu um erro, se deu conta desse erro e, finalmente, considerou que a saída para salvar o seu “negócio” era ter um papa argentino [risos]. Bergoglio é um homem muito valioso, um homem que tem experiência de rua. Sempre esteve em contato com as pessoas mais humildes, que é o que definitivamente a Igreja Católica deve voltar a fazer. Além de ser ótimo para toda a América Latina, é bom o fato de termos lá no Vaticano um dos nossos, e que anda pela rua a pé e não em carroças de ouro. Ainda que eu não saiba ao certo o quanto ele pode durar nesse lugar. O que me causa temor é exatamente isso: se uma pessoa como o Bergoglio vai durar nessa posição de papa.
Por quê?
Porque é uma posição política. E ele não dá sinais de ser complacente com o poder. A sensação que tenho é a de que ele está realmente tentando buscar uma renovação dentro da Igreja para captar mais fiéis, para que a gente volte a crer nos sacerdotes, condenando o que as pessoas pedem que se condene lá dentro. Naturalmente não podemos esperar que da noite para o dia ele faça uma revolução. E digo isso sem ser católico. Mas me chamam a atenção as suas atitudes. Imagino que, para os católicos, para a gente de fé, essas atitudes devem emocionar e chamar ainda mais a atenção.
Você tem alguma religião ou acredita em algo?
Não tenho nenhuma religião. Creio na força da natureza e no ser humano, ainda que o ache débil, vulnerável, um ser que comete muitos erros e que é um grande e imperdoável depredador. Conheço certas características de certas religiões – algumas compartilho, outras, não. Mas não sei, mesmo assim, se isso me habilita a dizer que não acredito em Deus. Porque às vezes eu digo: “Meu Deus, me ajude!” O ser humano tem a necessidade de acreditar que algo maior esteja olhando tudo o que acontece aqui. Pode ser uma besteira, uma infantilidade, porque é provável que não tenha nada e nem ninguém. Somos nós contra nós mesmos. Mas quem sabe nós não sejamos valentes o suficiente para aceitar isso. Por isso preferimos acreditar que existe algo superior que nos vá entender, ser misericordioso, perdoar e ajudar.
Dizem que o problema de um papa argentino é que ele já chega pensando que é Deus. Essa fama de povo arrogante tem razão de ser?[risos] Nem todos são arrogantes. Generalizar dessa maneira seria uma injustiça. Aqui em Buenos Aires dizem o mesmo dos brasileiros. São lugares-comuns que, no fim das contas, nos são caros para fazermos piadas uns com os outros e com nós mesmos. Claro, há argentinos muito arrogantes, sobretudo nos aeroportos. Não sei por que, mas me parece que nos aeroportos nós temos a capacidade de fazer reluzir o pior de cada um de nós, e não estou falando apenas dos argentinos, mas de todos os povos. Há argentinos arrogantes, soberbos, mal-educados, intolerantes, gritões, subjugantes, mas também há tanta gente humilde, sensível, transparente, respeitosa. Seria injusto, portanto, dizer que os argentinos são arrogantes. É o tipo de coisa que nos causa graça, então tomamos como se fosse um traço que define todo um povo. Mas não é.
Como é sua relação com os programas e as revistas de celebridades?
Que vão para a puta que os pariu. Ainda assim sempre tive uma relação boa com todo mundo porque respeito o trabalho do cara que está lá, atrás da janela, com frio, na chuva, esperando que eu apareça para dizer alguma coisa. É a minha forma de respeitar o seu trabalho. Só isso.
Você pensava chegar aonde chegou 30, 40 anos atrás?
Eu não pensava nada. Sou filho de um casamento entre dois atores, dois bons atores, mas que nunca tiveram sorte. Nunca conseguiram ter estabilidade, sempre com problemas econômicos, o dinheiro nunca chegava ao fim do mês. Para mim, o máximo que eu esperava ter era um trabalho. O resto era absolutamente secundário. E, nesse sentido, eu tive toda a sorte que eles não tiveram. Nunca precisei pedir trabalho. Até porque sou um dos que acreditam que essa é uma profissão em que, lamentavelmente, se você precisa de trabalho, não pode pedir. Basta que se deem conta de que está procurando emprego para não te darem. Nunca tive planos de querer ser fulano ou beltrano. Isso passa às pessoas que veem as coisas de fora. Eu sempre vi a partir da cozinha. Ou seja, não me reconheço ambicioso nesses termos. O que não significa que eu não seja ambicioso. Algo devo ter, porque senão não iria para a frente, não evoluiria. Sempre ri demais desse ofício. Não me podem contar nada de como funciona, ou tentar me explicar o que é a essência de um ator, o que passa na cabeça dele, no corpo, na alma. Disso eu vi tudo: dos meus pais, da minha irmã [a atriz Alejandra Darín], de mim. Como uma família de atores tivemos muitas oportunidades de viver e experimentar. Sempre fui, e não me canso de dizer, um cara de muita, muita sorte.
Nos anos 1970, pouca gente no Brasil sabe que você gravou um disco romântico-brega que hoje vale um bom dinheiro nos sebos de Buenos Aires. O que foi aquilo?
Foi uma palhaçada, uma brincadeira, um delírio, uma loucura.
Você não gosta de falar sobre isso?
Não tenho problema em falar. Mas foi uma estupidez, não tinha nada de artístico, nada de nada. Foi uma ideia absurda e estúpida de um cara que se aproveitou do fato de eu ser muito jovem na época, de não ter experiência, que me fez acreditar que podíamos fazer algo que fosse decente, atrativo, e que resultou numa estupidez.
Uma coisa meio Serge Gainsbourg latino?
Tipo isso. Nessa época, na Argentina, existia um cara chamado Roberto Vicario, que era um narrador [Darín emposta a voz, imitando o galã] com muita ênfase em cada coisa que falava. Eu não tinha medo de nada, tudo me causava muita graça, eu topei fazer e o resultado foi desastroso.
Você guardou algum disco?
Sim. Mas é ridículo.
Uma amiga me confessou que só sai com homens que tenham visto – e se emocionado – com O Segredo dos Seus Olhos. Ela está louca?
Adorei saber disso! Mas não faz sentido tentar entender as mulheres. Esqueça. Elas são tão maravilhosas que não existe explicação. São como uma obra de arte. Mulheres têm reações muito estranhas.
Mas o que existe em você que tanto mobiliza o sexo feminino?
Eu não sei. E você já deve ter passado por isso. Às vezes, na rua, você vê aquela mulher extraordinária, espetacular, com um fulano que você pensa: o que ela está fazendo com esse tipo? Por algo será! E nem sempre por aquilo que a gente normalmente imagina. As mulheres têm uma leitura muito mais profunda e delicada da vida, das pessoas e dos acontecimentos.
Pode exemplificar?
Nós somos muito mais pragmáticos, enquanto as mulheres são mais misteriosas. As coisas com elas funcionam de outra maneira.
Muitos de seus personagens são indivíduos desajustados, antipáticos, toscos, perdedores. Tem algum com quem você se identifica mais?
O [diretor e roteirista Juan José] Campanella escreveu quatro filmes – O Mesmo Amor, a Mesma Chuva, O Filho da Noiva, Clube da Lua e O Segredo dos Seus Olhos – pensando em mim. Então não seria uma loucura pensar que os personagens que ele escreve se parecem comigo.
O Campanella, inclusive, já o comparou ao [ator italiano] Nino Manfredi.Ele está louco, louco! Já me comparou também a James Stuart, a [Vittorio] Gassman. Sempre te comparam a alguém.
E você se compara com quem?
Com ninguém. O ser humano tem essa necessidade de ser comparado para saber se está melhor ou pior. Não faz sentido. Eu não me comparo a ninguém e nem quero parecer ninguém. Não creio ser um fenômeno.
Nem com o seu pai?
Não. Meu pai era totalmente distinto. Era tremendo. Esse era o meu pai [Darín levanta da cadeira onde está sentado e dirige-se a um aparador de onde traz uma foto em preto e branco, emoldurada, do seu pai em traje de gala, com um ar existencialista, dançando em uma festa na companhia de uma mulher desprovida de grandes atributos estéticos]. Não, não! Este era o meu pai! [apontando a mulher] [risos].
Você realmente parece não levar a sua profissão a sério, não é?
Ser ator é uma profissão em que o narcisismo e a egolatria estão em primeira ordem. Chega alguém e diz que você é um fenômeno e você gosta, afinal faz bem para o ego, e começa a acreditar que realmente é um fenômeno. Minha luta sempre foi contra isso. O inimigo número um do ator é o ego, o narciso que temos dentro da gente. Tem que manter esse sujeito com o pé no pescoço e imobilizado no chão, porque, quando ele se levanta, vira um monstro.
A impressão que tenho é de que você, no bom sentido, sempre atribui aos outros o seu sucesso: o diretor, o roteiro, a equipe, até os golpes de sorte da vida.
Trabalhar com gente de qualidade ajuda a elevar a tua própria qualidade. Ninguém pode ficar com o prêmio para si mesmo. É injusto. Atores são a parte visível de um filme, então fica mais simples dizer: “Ah, eu adoro o filme do fulano!” Mas ali trabalharam 150 pessoas. Profissionais que tiveram que quebrar a cabeça, que passaram dias na moviola, fazendo a trilha… Eu não posso, então, chegar ao ponto de ser tão atrevido, desrespeitoso de achar que o mérito é apenas meu quando há 150 pessoas atrás da câmera fazendo com que eu pareça mais interessante e charmoso do que eu sou.
Você dá muito palpite?
Opino, me meto, discuto, sugiro, brigo. Mas eu diria que sou mais um dialoguista – ajudo, e gosto, de reescrever diálogos. Não se trata de uma exigência particular, e sim de uma questão orgânica. Um ator dificilmente pode estar bem em cena se estiver fazendo algo em que não acredita. O que não significa que ele tenha que pensar como pensa o personagem. Mas, sim, deve acreditar no que está dizendo. E, para isso, é necessário que o texto seja o mais próximo do natural. Às vezes uma palavra escondida no meio de uma fala vira um obstáculo. E ninguém sabe que o problema está ali até que se descubra. É como o ouvido natural dos músicos.
Com quantos anos você começou a trabalhar?
Aos 8, fazendo radionovela. Mas apareci pela primeira vez na televisão aos 2 e meio, em uma cena com os meus pais. Depois do rádio fiz dublagem de filmes infantis, televisão, comerciais. E nos anos 70 comecei a fazer alguns filmes, participações muito pequenas, e depois mais teatro e televisão. Aos 20 anos tive um golpe de sorte grande com um programa de televisão, que fez estrondoso sucesso na Argentina, junto com outros jovens atores.
O que lembra dessa época?
Era muito divertido. Ríamos muito. E, além da TV, tínhamos uma equipe de futebol chamada Los Galancitos. Jogávamos em benefício de vários hospitais da Argentina. Lotávamos estádios. Certa vez fizemos um jogo para 35 mil pessoas. Estávamos convencidos de que também éramos atletas profissionais.
E isso durou quanto tempo?
Mais de dez anos! Fazíamos teatro e televisão durante a semana e jogávamos bola nos fins de semana. E todo o resto do tempo com meninas, sem parar. Foi uma época, digamos, muito agitada.
Devia ser uma vida dos sonhos para um rapaz de 20 e poucos anos.
Era preciso ter muito preparo físico [risos].
E do que você mais sente falta daquela época?
Dos meus joelhos!
- Por: Ricardo Moreno | Fotos: Enrico Fantoni, no site da Playboy
terça-feira, 20 de agosto de 2013
A via uruguaia poderia servir de inspiração na América Latina
Marcadores:
ALBA,
America Latina,
governo federal,
Historia,
politica internacional
Assinar:
Postagens (Atom)