Reprodução
Elas nascem sem genitália definida como feminina ou masculina, mas
não formam, necessariamente, um terceiro gênero. Na Alemanha e em outros
países, recebem tratamento especial. No Brasil, não há políticas
públicas que as atendam
Da Retrato do Brasil
No
início de novembro passado entrou em vigor na Alemanha uma lei que
permite registrar recém-nascidos sob a classificação “sexo indefinido”.
Ou seja, a opção “masculino” ou “feminino” poderá ficar em branco no
documento. Voltada para aqueles que nascem com características físicas
que não se enquadram nos padrões médicos “masculino” ou “feminino”,
chamados pessoas intersexo, a lei – que, aparentemente, representa uma
ampliação dos direitos dessas pessoas – tem sido questionada por
militantes da causa. Isso porque traz à tona questões sobre a
discriminação e os preconceitos sofridos por pessoas intersexo e, a
partir daí, surgem os debates acerca de sua eficácia e dos verdadeiros
benefícios que traria para o público ao qual é destinada.
Artigo publicado pelo site BBC Brasil
considerou a lei uma vitória: “A Alemanha passa a ser o primeiro país
europeu a oficializar o terceiro gênero. Essa mudança é uma opção para
pais de bebês hermafroditas, que nascem fisicamente com ambos os sexos”.
O site da emissora de rádio alemã Deutsch Welle também saudou a
legislação – “Os órgãos públicos alemães passarão a reconhecer
legalmente que o sexo de uma pessoa pode ser outro além do masculino ou
feminino” –, mas questionou alguns pontos que não teriam sido
esclarecidos: “Como será, por exemplo, o futuro passaporte? Em alguns
países, a falta de uma definição clara do sexo pode levar a um problema
na imigração. Também a questão de se futuramente os intersexuais poderão
se casar ou somente firmar uma união civil ainda precisa ser
esclarecida”.
Discriminação
Esses e outros
problemas foram igualmente apontados por militantes. A Organisation
Intersex International Europe (OII Europe), por exemplo, publicou nota
em seu site analisando o texto legal na qual evidencia que o
caminho para a não discriminação de pessoas intersexo é mais longo do
que pode parecer. “Quem determina que uma criança não pode ser definida
como sendo nem do sexo masculino nem do feminino? De acordo com a
prática atual, apenas a medicina.” Ou seja, como a definição do sexo da
criança ainda está nas mãos de médicos, a lei não representaria um
avanço – e o que parece uma escolha, na verdade, seria uma determinação,
pois o sexo do recém-nascido ainda teria que ser classificado de acordo
com padrões binários.
Hailey Kass, tradutora e pesquisadora das áreas de linguística e gênero, reforça a visão da OII Europe. Em texto publicado pelo site revista o Viés,
ela afirma que a nova lei “parece ser só aplicável para pessoas
intersexo”. “Pessoas não intersexo não poderiam ser designadas fora do
binário para no futuro escolherem? Por que só as pessoas intersexo?” Ela
menciona outra passagem da nota da organização europeia: “Em vez de
permitir que o registro de sexo fique aberto para todos(as), e não
apenas para crianças intersexuais, novamente regras especiais são
criadas, o que produz exclusão. As condições de vida da maioria das
pessoas intersexo não irão melhorar como resultado disso”.
Depois da lei
“Os
efeitos dessa lei podem, na prática, apresentar-se em forma de
discriminação e estigmatização”, diz Shirley Monteiro de Lima a Retrato do Brasil.
Ela é doutoranda da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e
trabalha no Centro de Referência da Diversidade (CRD). “Uma diferença
que está no corpo e poderia ser manejada pelo círculo familiar e por
decisão do indivíduo intersexo, ao tornar-se pública no registro de
nascimento, expõe a pessoa a julgamento social, discriminação e pressão
por normatização. A lei abre espaço para mais violações de direitos”,
conclui.
“Ainda não sabemos ao certo o impacto dessa lei na
dinâmica da família e se a criança sofrerá algum tipo de restrição
social por não ter o sexo determinado no registro de nascimento”, diz
Ana Canguçu-Campinho, psicóloga do Instituto de Psicologia da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), a RB. Ela trabalha desde
2002 com a temática intersexo, acompanhando pessoas nascidas
intersexuais e suas famílias. Apesar das dúvidas, Ana enxerga possíveis
pontos positivos na mudança. “Até o momento, acho uma alternativa
interessante, uma vez que, ao não identificar o sexo no registro,
permite-se que o tempo seja usado como um aliado pela própria pessoa
intersexual. A criança passa a ser considerada cidadã, ao mesmo tempo em
que é dado, ainda que provisoriamente, um tempo para definição do
sexo.” Ela esclarece que a “lei de registro não prevê um terceiro
gênero, pois no formulário não existe uma nova categoria além do
masculino e do feminino. A opção de deixar ‘em branco’ o item implica
uma flexibilização na forma de registrar o sexo”.
Poucos países têm leis voltadas exclusivamente para pessoas intersexo. Segundo levantamento publicado pelo site
da Deutsch Welle, desde 2010 vigora no Paquistão legislação que
reconhece intersexuais como cidadãos, embora não existam dados oficiais
sobre o número de pessoas intersexo vivendo no país. Antes disso, as
pessoas intersexo não podiam ser registradas – ou seja, não podiam votar
ou ter conta em banco, por exemplo. “Com a lei, os intersexuais
passaram a ter acesso à educação gratuita, ao sistema público de saúde e
a eles é reservada uma cota de 2% dos postos de trabalho em órgãos
governamentais.”
Diferente
Na Austrália,
os documentos de pessoas intersexo contam com um terceiro campo, ao lado
dos de “masculino” e “feminino”, em que é empregado o termo
“diferente”. Países como Afeganistão e Nepal também reconhecem pessoas
intersexo. Já na Índia existem as Hjiras, pessoas que não são
consideradas “nem homem nem mulher” e que possuem um papel social
definido: são encarregadas de batizar crianças e abençoar casamentos.
Nesse país, “as crianças intersexuais são abandonadas em templos e
criadas em uma comunidade específica”, explica Ana.
O tema da
intersexualidade, além de complexo, tem sido submetido a interpretações
equivocadas. Em 1993, o termo hermafrodita ficou conhecido no Brasil
após o sucesso da novela “Renascer”, transmitida pela TV Globo, que
contava com a personagem Buba, interpretada pela atriz Maria Luísa
Mendonça. Mas o assunto não foi aprofundado e essa passou a ser uma das
únicas referências comuns sobre intersexualidade. Hoje, a expressão
“hermafroditismo” não é mais usada por pesquisadores, especialistas e
militantes, por trazer um conceito equivocado.
Shirley explica,
em sua dissertação de mestrado, que o termo hermafrodita é oriundo da
mitologia grega, da história de Hermafroditus, um jovem muito bonito,
filho de Hermes e Afrodite, que despertou a paixão da bela ninfa
Salmacis. Mas Hermafroditus a rejeitou e dizia preferir a morte ao amor
de Salmacis. Já a ninfa pediu aos deuses que nunca se separasse dele.
Para atender aos dois pedidos, os deuses uniram Salmacis e Hermafroditus
em um único ser com dois sexos.
“Pela definição médica, uma
pessoa nascida sob a condição de intersexualidade não apresenta sexo
cromossômico, genitália externa ou sistema reprodutivo interno dentro do
padrão considerado normal para o sexo masculino ou feminino”, diz
Shirley. Isto é, não se trata de um homem e de uma mulher em um único
corpo, nem de uma pessoa que seja homem e mulher ao mesmo tempo.
Em maio de 2004, o site
da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e
Intersexo (ILGA, na sigla em inglês) publicou declaração assinada por
Mauro Cabral, ativista argentino intersexual, que afirma que, para a
medicina ocidental, os intersexuais são “pessoas com genitália ambígua,
indefinida, deformada ou patológica”. Cabral explica que, “para o
movimento internacional de pessoas intersexuais e seus aliados, no campo
da teoria e dos direitos humanos, intersexuais são aqueles cuja
genitália difere dos estereótipos masculino ou feminino, sem que tal
variação na aparência genital signifique uma deformação ou uma patologia
herdada”. Assim, conclui ele, “intersexualidade é um termo
guarda-chuva, descrevendo uma grande variedade de situações em que os
genitais de uma pessoa não correspondem aos estereótipos sociais,
culturais e políticos atuais”.
Terceiro gênero?
Mas,
ao contrário do que muitos acreditam, isso não significa que as pessoas
intersexuais se identifiquem, necessariamente, com um “terceiro
gênero”. Da mesma forma como no caso de pessoas transexuais, pessoas
intersexo podem se identificar como homens ou como mulheres,
independentemente de seus órgãos genitais e reprodutivos. “No Brasil,
ainda é muito raro que uma pessoa nascida intersexual reivindique um
espaço distinto dos já consolidados homem e mulher”, explica Ana. “O que
acontece com maior frequência é uma tentativa de ajustar seus corpos
aos padrões estabelecidos para o sexo. O poder exercido pela
medicalização destina pouco espaço para expressão de corpos e identidade
que destoem dos padrões estabelecidos socialmente.”
Ou seja, há
diversas variações nos corpos e identidades de intersexuais, e
generalizar afirmando que pessoas intersexo são, necessariamente, um
“terceiro gênero” pode acabar tendo o efeito contrário do que se
pretende, limitando as possibilidades de ser de cada indivíduo e
obscurecendo as questões específicas relacionadas aos intersexuais. “O
sexo, no fim das contas, pode ser mais social do que biológico”, disse
Gerald Callahan, imunologista e professor da Universidade do Colorado,
nos EUA, em entrevista publicada pelo site da revista semanal Época
em 2007. “Por isso, acho que a opinião da pessoa é um fator
determinante.” Em sua dissertação de mestrado, Shirley também aborda a
questão de identidade, colocando-a como “uma consequência das relações
vivenciadas pelo indivíduo com os outros, com o seu contexto social e
consigo mesmo”.
Callahan também tocou em uma das questões mais
polêmicas relacionas ao tema: a das intervenções cirúrgicas realizadas
em recém-nascidos com genitália ambígua. Mesmo não havendo nenhum
indício de que a condição de intersexualidade traga problemas de saúde
ao indivíduo, esse é um dos principais problemas relatados por pessoas
intersexo. As intervenções – questionadas por especialistas e militantes
– podem ocorrer, inclusive, sem o conhecimento e a autorização dos
pais. “Na maioria das vezes não há nada a ser feito do ponto de vista
cirúrgico na infância. Não é uma condição que ameace a vida nem que
necessite de tratamento imediato”, disse o imunologista.
“Considero
o principal desafio o reconhecimento social do intersexo como uma
diversidade de existência e não como uma anormalidade”, diz Ana. Ela
entende que esse é um dos pontos mais importantes na luta das pessoas
intersexuais. “A visão do intersexo como anormalidade é histórica. Na
Idade Média, as pessoas intersexuais eram percebidas como monstros ou
aberrações e muitas vezes eram executadas. Hoje, com a medicalização das
sociedades, o intersexo é classificado como doença e anormalidade.”
A
OII USA publicou um texto para explicar algumas ideias falsas sobre
pessoas intersexo, traduzido por Hailey Kass e publicado no blog Transfeminismo.
A organização afirma que as cirurgias que visam a uma “normalização”
dos corpos intersexo é equivalente à eugenia, isto é, uma tentativa de
“remover diferenças, as quais algumas pessoas decidiram como
indesejáveis e que, constantemente, criam problemas que não existiam”. A
organização também salienta que as práticas médicas, como as cirurgias e
tratamentos hormonais, podem ser contrárias à identidade de gênero da
pessoa.
Políticas Públicas
Na declaração
publicada pelo site da ILGA, Cabral afirma que estudos apontam que pelo
menos uma em cada 2 mil pessoas nasce com órgãos genitais fora dos
padrões médicos e que essas pessoas acabam submetidas a cirurgias para a
“correção” da genitália. Shirley explica que, “na prática, os neonatos,
quando têm identificada a condição intersexual, são submetidos a
intervenção cirúrgica e a registro de nascimento no sexo masculino ou
feminino de acordo com a assignação realizada na cirurgia”. Ou seja,
recém-nascidos que são identificados com genitália ambígua passam por
cirurgia para poderem se enquadrar nos padrões médicos de masculino e
feminino e serem registrados com o sexo que foi definido com o
procedimento. Mas não há dados precisos sobre o número de procedimentos
como esse e sobre o número de pessoas intersexo.
Em artigo publicado há uma década, a revista Super Interessante
já apontava a dificuldade de obtenção de informações confiáveis e
precisas a respeito. “Os cálculos mais conservadores admitem que um em
cada 3 mil bebês nasce com essa morfologia, em suas várias formas (no
Brasil, isso significaria uma população de mais de 56 mil pessoas).”
Segundo a revista, pesquisadores como Anne Fausto-Sterling, professora
de Biologia Molecular da Universidade de Brown, no estado americano de
Rhode Island, especialista no tema, “garantem que o número é o dobro: um
bebê em cada 1,5 mil”. O texto também explica que a prática de
cirurgias em recém-nascidos não é novidade. “As cirurgias para
determinar o sexo de bebês são aceitas desde a década de 1960, o que
reduz as possibilidades de estudos de longo prazo que confirmem ou
neguem virtudes para essa intervenção na natureza dos recém-nascidos e,
principalmente, seus efeitos na vida adulta do indivíduo.”
De
acordo com o artigo, uma das regras ditadas em manuais oficiais de
medicina é operar recém-nascidos que tenham pênis de tamanho inferior a
0,9 centímetro, na tentativa de enquadrar o genital nos padrões
femininos, transformando-o em um clitóris. Depois da cirurgia, é
recomendado começar um tratamento hormonal. Embora a ideia de que a
maioria das cirurgias em pessoas intersexo é para as designar como do
sexo feminino, a OII USA desfaz esse mito. “Muitas condições intersexo
em bebês designados homens são constantemente ignoradas e seus pais são
simplesmente informados de que existe algum problema em urinar
adequadamente ou que um testículo não foi formado, etc. Ademais, em
várias partes do mundo, pessoas intersexo são designadas como homens o
quanto mais possível for, porque ser homem é visto como mais socialmente
desejável.”
Sem registros oficiais, com discriminação médica e
social, intersexuais acabam por encontrar muita dificuldade em serem
reconhecidos e aceitos socialmente e, dessa forma, também enfrentam
muitos obstáculos na luta por políticas públicas que realmente atendam
às suas demandas. Segundo Shirley, um dos maiores desafios dos
intersexuais é “conquistar o direito de decidir em assuntos que afetam
seus corpos e sua saúde, decidir se desejam realizar alguma intervenção
cirúrgica e pensar criticamente sobre o espaço social que desejam
ocupar”.
No Brasil, não há políticas públicas específicas para
intersexuais. Assim como não há nenhuma associação atuante que seja
exclusivamente voltada para a demanda de pessoas intersexo. “As demandas
são expressas e resolvidas isoladamente ou articuladas às
reivindicações e projetos de leis de outros grupos indentitários, como
transexuais e travestis”, explica Ana. Assim, “a visibilidade pode ser
considerada como um instrumento de emancipação e de promoção da
dignidade em pessoas nascidas intersexuais”.