O capital estrangeiro e a privatização do sistema de saúde brasileiro
Mário Scheffer, em Cadernos de Saúde Pública*
Os fundamentos políticos e econômicos do Sistema Único de Saúde (SUS) foram abalados no início de 2015, com a aprovação da Emenda Constitucional no 86 (EC 86), que cristaliza o subfinanciamento do SUS, e da Lei nº 13.097, que permite a participação de empresas e do capital estrangeiro, direta ou indiretamente, nas ações e cuidados à saúde.
Ao impor à União o financiamento de emendas parlamentares individuais e ao vincular a despesa federal da saúde à receita corrente líquida, a EC 86 levará à diminuição de recursos em relação aos valores garantidos pela legislação vigente, que já eram por demais restritivos.
Assim, a norma legal potencializa restrições ao financiamento do SUS, que vêm desde o descumprimento da Constituição Federal, que destinava no mínimo 30% do orçamento da Seguridade Social para a saúde, passando pela retirada do Fundo da Previdência Social da base de cálculo dos recursos, até o desvirtuamento da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), dentre outras subtrações.
Como agravante, a EC 86 inviabiliza politicamente, pelo menos em curto prazo, o projeto de iniciativa popular, o Saúde+10, subscrito por mais de dois milhões de brasileiros, que alcançaria orçamento mais razoável com a aplicação de no mínimo 10% da receita corrente bruta da União para a saúde.
A atuação do capital estrangeiro na saúde – definido como aquele correspondente a empresas multinacionais, no caso dos investimentos e do comércio, aos grandes bancos, no caso dos financiamentos, e aos fundos de pensão que operam o capital especulativo1 – foi vedada pela Constituição Federal e pela Lei Orgânica da Saúde, com as exceções de empréstimos de organismos internacionais, de cooperação técnica ou vinculados às Nações Unidas.
Mas desde 1998 a Lei dos Planos de Saúde permitiu o capital estrangeiro nos negócios de assistência suplementar, o que levou à interpretação de que mesmo as empresas de planos de saúde proprietárias de hospitais poderiam se beneficiar do investimento exterior.
A saúde já estava, portanto, parcialmente aberta a investidores internacionais que tornaram-se acionistas de empresas de planos de saúde e de grupos hospitalares ligados a elas. Recursos de origem estrangeira também haviam sido aportados em laboratórios de exames diagnósticos, neste caso de modo não autorizado, mas consentido pelos órgãos governamentais.
A inconstitucionalidade da lei foi defendida pela Advocacia-Geral da União (AGU), que recomendou, sem ser ouvida, o veto à permissão generalizada de capital estrangeiro em hospitais e clínicas, gerais e especializados, inclusive de natureza filantrópica.
Ações diretas de inconstitucionalidade já levadas ao Supremo Tribunal Federal (STF) por entidades da sociedade civil enfatizam o dispositivo constitucional que prevê a vedação expressa à participação do capital estrangeiro na saúde, e levantam uma situação esdrúxula: conserva-se o texto original da lei do SUS mas acrescenta-se, após uma vírgula, conteúdo contrário. Na prática designa-se, por exceção, a possibilidade do capital estrangeiro entrar em toda e qualquer ação e serviço de saúde. Agora, a legislação brasileira sobre saúde traz duas políticas opostas na mesma norma.
Para além da controvérsia judicial, a constitucionalização do subfinanciamento público combinada com a abertura irrestrita à participação do capital estrangeiro na saúde deverá impulsionar a privatização, na medida em que lideranças do setor privado afirmam seus objetivos imediatos de expandir a capacidade instalada de leitos e serviços para clientes de planos de saúde.
A privatização consiste na transferência das funções e responsabilidades do setor público, completamente ou em parte, para o setor privado2 . Aqui interessa também a privatização ativa3 , ou seja, o processo no qual o governo toma decisões políticas que encorajam ativamente o crescimento da participação privada na saúde.
Em meio a uma série de orientações e inações que têm por resultado o desmonte do SUS, a ampla abertura do sistema de saúde ao capital estrangeiro foi uma medida tomada sem que suas reais motivações tenham sido anunciadas, e sem que suas consequências tenham sido discutidas abertamente pelo Congresso Nacional ou avaliadas pelos fóruns de participação social.
Trata-se de vitória da coalizão de interesses de hospitais privados, empresas farmacêuticas e operadoras de planos de saúde que, além da defesa do capital estrangeiro, pretendem ampliar a participação do setor privado na formulação das políticas nacionais de saúde4, expandir o mercado privado e obter desonerações e reduções tributárias.
O aceno aos fundos que vêm de fora se presta também como álibi para justificar a redução de gastos públicos com saúde, em tempos de ajuste fiscal e de perenidade do subfinanciamento do SUS.
O Governo Federal será o grande avalista do capital estrangeiro na saúde, seja por meio de desregulação e incentivos ao crescimento do mercado de planos de saúde, que se beneficiará diretamente da rede privada hospitalar e de diagnóstico expandida com recursos externos, seja comprando estes mesmos serviços para atenuar a insuficiência da oferta da atenção de média complexidade no SUS. Talvez resida aí o motor do programa Mais Especialidades, definido na campanha eleitoral de 2014 como “uma rede de clínicas com especialistas e exames de apoio diagnóstico”.
A experiência na educação é elucidativa. A atração dos fundos internacionais para investir em fusões e aquisições no mercado de ensino superior no Brasil está ligada aos créditos do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES) e do Programa Universidade para Todos (PROUNI), o que levou à profusão de cursos de graduação privados sem contrapartidas mínimas de qualidade.
Com volatilidade e vocação especulativa, investimentos estrangeiros escolherão leitos, exames e procedimentos que geram altos retornos financeiros, principalmente serviços baseados em valores e preferências particulares, e que praticam a seleção adversa, afastando-se do atendimento a populações que vivem em áreas distantes de recursos assistenciais, do atendimento a idosos, crônicos graves, portadores de transtornos mentais e outros pacientes que demandam atenção contínua.
A expansão de rede privada com essas características fará aumentar a individualização das demandas, os pagamentos diretos em clínicas populares e o consumo de planos de saúde baratos no preço mas com armadilhas contratuais e sérias restrições de coberturas. Mais uma vez o SUS, o fundo público, será utilizado como fiador e resseguro das operações privadas.
À proporção que gastos privados substituem as despesas públicas, aumentam os obstáculos para a justiça e a equidade. Sempre que prestadores privados têm garantida a venda de seus serviços por produção, sem compromisso com os resultados de saúde, os riscos de desperdício de recursos e explosão dos custos do sistema de saúde são enormes.
Capitais que buscam caminhos de valorização dificilmente terão compromissos com necessidades de saúde, o que requer políticas voltadas à redução de adoecimentos e mortes, com atuação sobre os determinantes sociais da saúde.
O sistema universal, o sistema único para pobres e ricos, baseado na saúde como direito, na redistribuição da riqueza, financiado por toda a sociedade por meio de impostos e contribuições sociais, cede, assim, espaço ao sistema segmentado, incapaz de assegurar o acesso a todos os níveis de atenção, em todas as regiões, inclusive nos vazios sanitários e para populações vulneráveis e negligenciadas, onde e para quem o setor privado não tem interesse em ofertar serviços.
O setor privado de saúde em mercados emergentes oferece retornos atrativos para os investidores5 . Em contrapartida, investimentos estrangeiros em estruturas privadas de saúde de países de renda média e baixa melhoraram pontualmente a qualidade de serviços hospitalares altamente especializados acessíveis à clientela restrita, mas também foram responsáveis pela disputa predatória por recursos humanos, agravando a falta de médicos e de outros profissionais de saúde nos estabelecimentos públicos e nas áreas remotas6 . No Brasil, os padrões atuais já sugerem que o uso excessivo do setor privado promove concorrência desleal com o setor público, drenando serviços, recursos humanos e financeiros do SUS7.
Apologistas do capital estrangeiro são os mesmos que financiam campanhas eleitorais e que dispõem de redes midiáticas para erigir o mito do setor privado apresentado como mais eficaz, e para promover a tese de que o sistema universal é insustentável. Empregam a palavra privatização o mínimo possível, atenuada por termos como parcerias público-privado, concorrência, qualidade, eficiência. Contam com a oposição tranquila do movimento sanitário, o encurralamento dos conselhos e conferências de saúde, o silêncio dos sindicatos e trabalhadores organizados, e a omissão dos partidos políticos que, em ano eleitoral, eliminaram dos programas dos candidatos qualquer menção ao capital estrangeiro na saúde.
As modalidades de financiamento da saúde exprimem os valores de uma sociedade8 . O princípio de igualdade das pessoas face à doença e à morte, sejam quais forem suas condições sociais e suas origens, é compartilhado pelos ideais republicano, ético e humanitário.
Com o desfinanciamento do SUS e a supressão de barreiras para atuação do capital estrangeiro, o Brasil segue o caminho inverso, das iniquidades geradas pela comoditização da saúde e pela sua conversão em mercadoria. Cidadãos detentores de direitos transformam-se em clientes; serviços de saúde que poderiam comprometer-se com o sistema universal transformam-se em empresas concorrentes.
O capital estrangeiro na atenção à saúde é um tema pouco explorado pela literatura internacional, na medida em que a presença de empresas e fundos americanos, tanto no setor de seguro saúde quanto na assistência hospitalar, de diagnose e terapia, ficou limitada às fronteiras nacionais até os anos 2000. O tema também passa à margem das produções sobre saúde global. Mas há referências sobre investimentos estrangeiros relacionadas ao turismo médico em países em desenvolvimento9.
O Brasil emerge como país que vem mobilizando recursos privados de bancos comerciais e fundos internacionais para expandir a assistência à saúde para os que possuem capacidade direta ou indireta de pagamento dos cuidados.
Urge uma agenda nacional de pesquisas que ofereça terreno para acompanhar o impacto do capital estrangeiro no processo de privatização nos vários componentes do sistema de saúde: no financiamento, na prestação de serviços, na gestão e nos investimentos em saúde.
Sem a produção de novos conhecimentos à altura da complexidade da conjuntura atual da saúde no Brasil, e sem o engajamento democrático, ainda a ser despertado e construído, na ampla defesa do sistema universal inscrito naConstituição Federal há mais de duas décadas, pode-se assistir passivamente a inflexão que impõe ao SUS condições cada vez mais desfavoráveis à sua legitimidade.
*Mário Scheffer é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina, da USP. mscheffer@usp.br Este artigo foi publicado em Cadernos de Saúde Pública, Seção Perspectivas, edição de abril de 2015.
Referências
1.Guimarães SP. Capital nacional e capital estrangeiro. Estud Av 2000; 14:143-60.
2.European Observatory on Health Systems and Policies. The observatory health system glossary. http://www.euro.who.int/en/about-us/partners/ observatory (acessado em 04/Mar/2015).
3.Muschell J. Privatization in health. Health economics technical briefing note. Geneva: World Health Organization; 1995.
4.Associação Nacional de Hospitais Privados. Livro Branco. Brasil Saúde 2015: a sustentabilidade do sistema de saúde brasileiro. Cadernos de propostas. http://www.antares-consulting.com/images/ LVBpropostas.pdf (acessado em 04/Mar/2015).
5. International Finance Corporation; World Bank Group. Guide for investors in private health care in emerging markets. http://www.banyanglobal. com/pdf/Guide_for_Investors_in_Private_Health_ Care_in_Emerging_Markets.pdf (acessado em 04/Mar/2015).
6.Organisation for Economic Co-operation and Development. DAC guidelines on poverty and health. http://www.oecd.org/development/ povertyreduction/33965811.pdf (acessado em 04/Mar/2015).
7. Marten R, McIntyre D, Travassos C, Shishkin S, Longde W, Reddy S, et al. An assessment of progress towards universal health coverage in Brazil, Russia, India, China, and South Africa (BRICS). Lancet 2014; 384:2164-71.
8.Grimaldi A. Les différentes facettes de la privatisation rampante du système de santé. https:// france.attac.org/nos-publications/les-possibles/ numero-1-automne-2013/dossier-protection-so ciale/article/les-differentes-facettes-de-la (acessado em 04/Mar/2015).
9. Bell D, Holliday R, Ormond M, Mainil T. Transnational healthcare, cross-border perspectives. Soc Sci Med 2015