Manifestações de ódio, racismo, declarações machistas e ameaças verbais e físicas contra lideranças da esquerda têm sido constantes no último período no país. Segundo o professor José Paulo Netto, essas atitudes têm relação com a tentativa das classes dominantes de “afastar a massa do povo dos centros de decisão política”.
José Paulo Netto é doutor em serviço social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi vice-diretor da Escola de Serviço Social da UFRJ e do seu Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, tendo título de professor emérito na instituição. Tradutor e organizador de textos de autores clássicos como Marx, Engels, Lênin e Lukács, em que se destaca como grande especialista, produziu obras teóricas e políticas sobre o capitalismo, serviço social e marxismo. É membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e atua em parceria com movimentos sociais, como o MST.
Em entrevista ao Brasil de Fato e aos Jornalistas Livres, ele faz uma análise das classes dominantes a partir da formação social brasileira, fala sobre o quadro político atual no país e sobre como atuam as elites em face da crise do capitalismo contemporâneo.
Para Netto, é justamente em momentos de tensões políticas e econômicas que “todo esse porão da sociedade brasileira, com um forte sentimento antipovo, antipopular, antimassa, racista e discriminador, vem à tona”.
Brasil de Fato - Estamos presenciando a todo o momento ataques da direita brasileira que deixam explícitos o preconceito, o racismo e o sentimento de ódio contra determinados setores da sociedade. Como a nossa formação social pode nos ajudar a compreender essas atitudes?
José Paulo Netto - Se analisarmos com cuidado a história brasileira, vamos encontrar algumas constantes que são traços constitutivos da nossa formação social e que, portanto, são elementos constitutivos da cultura política brasileira. Um traço muito visível de meados do século XIX em diante tem sido a capacidade das franjas das camadas mais ativas das classes dominantes em afastar a massa do povo dos centros de decisão política. Mesmo quando tivemos, ao longo do século XX, momentos de institucionalização mais ampla da participação política, tivemos elementos, mecanismos, meios e modos que constrangeram ou limitaram essa participação política a processos adjetivos. Costumo dizer que tivemos no Brasil um processo tardio, lento, desigual e sinuoso de socialização da política.
Isso ganhou certa magnitude com a derrota da ditadura instaurada em 1964. A constituição de 1988 consagrou direitos políticos essenciais, abriu caminho para se repensar direitos civis e, sobretudo, ampliou o leque dos direitos sociais no país. Com todas as desigualdades e assimetrias, creio que se pode dizer que no pós-1988 tivemos formalmente a institucionalização da cidadania moderna no Brasil. Entretanto, se observarmos o processo de luta contra a ditadura, de crise da ditadura e de transição democrática no Brasil, teremos a clara percepção dessa capacidade das franjas mais ativas das classes dominantes de encontrar meios de excluir a massa do povo de processos decisórios. Tivemos um processo de socialização da política, mas nem de longe um processo de socialização do poder político. Isso tem relação com o que eu chamo de linhas de continuidade na nossa história.
O senhor pode citar alguns exemplos disso?
O Brasil foi um país escravocrata. Em 1888 tivemos uma abolição inteiramente formal, em que não se criou nenhuma pré-condição para que o liberto pudesse construir sua vida autonomamente. Da noite para o dia foram libertos, mas sem ter terra, sem ter nada. Esta cultura escravocrata não desapareceu. Há exemplos recentes. As camadas médias (não necessariamente camadas oligárquicas) reagiram negativamente em face da legislação acerca do trabalho doméstico. Poderíamos citar outros exemplos como o acesso à universidade, historicamente elitista. É só observar a dimensão das nossas universidades e a população em condições etária e formal de ingressar ali.
Deste modo, podemos perceber que a sociedade foi construída para que muito poucos usufruíssem dos direitos formais que ela veio (bem ou mal) escrevendo no seu ordenamento jurídico-político. Em momentos de crise ou em momentos de tensão, em que se agudiza abertamente a luta de classes (para utilizar um jargão da esquerda), todo esse porão da sociedade brasileira, com um forte sentimento antipovo, antipopular, antimassa, racista e discriminador, vem à tona. O processo de transição da ditadura fez com que amplos setores tivessem vergonha do seu conservadorismo. Mas isso acabou.
Qual foi o impacto do PT na mudança dessa atmosfera política?
Eu diria que o PT teve um papel duplo. Pensando no PT como força de governo, a partir de janeiro de 2003, foram tomadas providências de caráter emergencial, mas que foram apresentadas como políticas duradouras de Estado e que beneficiaram objetivamente a massa mais pobre. Isso foi muito positivo. Ao mesmo tempo, isso foi feito no marco de uma orientação macroeconômica que privilegiou os grupos financeiros do país, que não restringiu em absoluto a fome lucrativa dos monopólios nacionais e internacionais. Isso criou uma situação paradoxal que pode ser observada ao cabo do mandato do Lula. Mas as elites jamais suportaram o significado simbólico de ter um trabalhador que tomava cachaça e falava errado na Presidência da República. O efeito PT (quando Lula se elege) é enorme do ponto de vista simbólico. Enfim um sujeito aparentemente igual à maioria da população chega lá.
“Marolinha”
Lula elege sua sucessora no marco de uma crise econômica internacional gravíssima, a qual ele caracterizou como uma “marolinha”. Só que os efeitos daquela crise rebateram na periferia de formas distintas. Sob o governo dele, uma orientação macroeconômica conseguiu driblar bem esses efeitos. A articulação de economia política que funcionou nos dois governos dele não funcionou no governo Dilma. Não foi por incompetência da equipe gestora. Houve sim falhas técnicas, mas elas não são as mais importantes. Mas é que a “marolinha” virou um “tsunami”. Neste momento, aqueles mesmos grupos que foram altamente beneficiados no governo Lula põem para fora todo o seu preconceito de classe que vem acompanhado de manifestações de ódio de classe, de marcas racistas e, sobretudo, de uma entrada em cena, sem qualquer tipo de maquiagem, do velho elitismo brasileiro. Penso que este é o quadro em que estamos vivendo hoje.
Como este elitismo se expressa?
Penso que o processo eleitoral mostrou isso com clareza. Tivemos uma vitória eleitoral democrática que mostrou uma sociedade dividida. Não ponho em dúvida a legitimidade de vitória de Dilma. Mas não há duvida nenhuma que há uma legitimidade expressa eleitoralmente muito estreita em termos de maioria e que, portanto, é muito vulnerável. Exatamente sobre esta vulnerabilidade atuam as elites. Também operam através de uma mídia historicamente oficialista e porta voz de tudo aquilo que atravanca a conquista, a realização e a ampliação de direitos.
De 1888 a 2015, quando se tem uma crise (não no sentido de possibilidade de quebra do regime, mas uma crise financeira do Estado), se não há orientações claras e políticas claras em face desta dificuldade, o momento se torna ideal para que os segmentos mais retrógrados se apresentem como são. Temos uma composição do legislativo que me parece a mais anódina e amorfa dos últimos trinta anos e, portanto, facilmente catalisada com propostas de oportunismo meramente eleitoral. Os que querem desestabilizar tem um prato feito. Não sei como vai se desdobrar esse processo governativo, mas tenho a impressão de que a presidente Dilma vai travar uma guerrilha diária. Não se satisfaz a fome de leão do PMDB com alface.
O senhor utilizou os termos “luta de classes”, “ preconceito de classe” e “ódio de classe”. Com toda a complexidade da divisão socioeconômica e das ramificações do trabalho na nossa sociedade, ainda podemos falar em classes sociais?
Não tenho a menor dúvida. Classe social é uma categoria teórica que expressa elementos fundamentais da realidade em uma sociedade como a nossa. A sociedade brasileira tem hoje uma estrutura de classes muito complexa e eu desconheço qualquer estudo rigoroso e sério sobre isso. Não estou falando daqueles estudos publicitários que separam a nossa sociedade em classes A, B, C, D, etc., mas de estudos que tragam relações com os meios de produção e com a consciência de um projeto político. A luta de classes nunca tirou férias neste país. Ela esteve latente ou expressa ao longo desses últimos doze anos em manifestações referentes a determinados projetos de políticas públicas e em como fazer a orientação macroeconômica. Isso foi uma luta que atravessou o governo Fernando Henrique, o governo Lula e atravessa o governo Dilma. O que temos agora é uma emersão clara das posições de classe.
E como é possível mediar essas tensões?
Eu percebo um dilaceramento do tecido social brasileiro do ponto de vista político. O que é preocupante, porque não estão em jogo projetos políticos, mas projetos de nação. Que sociedade nós queremos? Nós queremos uma sociedade onde quem tem orientação diferente é objeto de espancamento e onde o dissenso político é resolvido com ameaças físicas? Vivemos uma conjuntura internacional difícil, com ajustamento na divisão internacional do trabalho. Nós vamos nos inserir nisso de maneira subalterna ou soberana? Temos que vir a público para determinar com clareza que tipo de sociedade nós queremos e para chegar lá são possíveis vários meios.
Estamos com problemas que não vieram do governo Dilma, do governo Lula ou do governo Fernando Henrique. Eles vêm da nossa transição interrompida. Eu espero que tenhamos firmeza de princípios e sabedoria para resolvê-los sem romper um pacto civilizatório que fizemos pelos menos em 1988 e que, na minha opinião, está ameaçado por expressões de preconceito e ódio de classe. Não podemos repetir experiências traumáticas do passado, cujos resultados foram desastrosos para a massa do povo brasileiro, ainda que tenham sido excelentes para as suas elites.
Nesse sentido, penso que temos que olhar a política brasileira para além das expressões institucionais abastardadas, onde se troca ministério por voto no Congresso Nacional. Isto não é o Brasil. Isto é a expressão institucional da política brasileira. A política brasileira está nas universidades, nas fábricas, nas usinas, nos escritórios, no comércio e nas ruas.
O senhor é um grande especialista da obra de Marx, um nome que causa arrepio nas elites e nos setores mais conservadores da sociedade. Os intelectuais que se utilizam deste referencial teórico tem sido acusados de promover “doutrinação ideológica” nas universidades. O que o senhor pensa disso? É possível resgatarmos Marx para analisar a sociedade contemporânea?
Uma das coisas que mais tem me divertido na exposição do pensamento da direita brasileira (se é que ela pensa) é imaginar que os comunistas estão no poder. Isso é coisa do Olavo de Carvalho, não é? É uma calúnia contra o PT e contra os comunistas, mas deixemos isso de lado. Primeiro, eu diria que no universo cultural, resultado de experiências históricas e da batalha de ideias sob a hegemonia burguesa, o marxismo andou muito desprestigiado e muito desacreditado. No final da década de 1990 houve um acantonamento do pensamento marxista. Isso mudou nos últimos dez anos na universidade e fora dela. Houve um interesse renovado pelas ideias de Marx, não apenas no Brasil. Segundo, eu acho que Marx é um incômodo contemporâneo para nós. Essa crise sistêmica que o capitalismo está experimentando (pelo menos desde o início do século) está trazendo a discussão sobre uma série de projeções que Marx fez. Ele é extremamente atual. É impossível tentar compreender com seriedade as mutações econômicas dos últimos 30,40 anos sem Marx.
Socialismo
Não há solução para a crise do capitalismo. Ela é global não no sentido do globo, mas por ser uma crise ética, política, econômica e ecológica. O padrão de civilização capitalista se exauriu. Não adianta dar carros para todo mundo, pois não haverá lugar para jogá-los fora. Nós não podemos continuar nessas cidades que crescem loucamente sem nenhum planejamento. O capitalismo só tem a oferecer mais insegurança, mais instabilidade e mais violência. Nesse sentido, esgotado o capitalismo, a única alternativa para ele é o socialismo. Não posso ser original: “Ou o socialismo ou a barbárie”. E a barbárie já está aí pertinho. Sob esse aspecto, o socialismo é extremamente atual. Agora a questão é se essa atualidade é transformada em viabilidade. E eu não vejo essa viabilidade em curto prazo. O que me torna muito pessimista, pois quanto mais tardia a alternativa do socialismo, maior será a destruição que o capitalismo pode realizar.
Por que o senhor não vê essa alternativa no horizonte?
Porque o socialismo não resulta da crise e da exaustão do capitalismo, mas de um duro, longo e difícil processo em que massas organizadas de homens e mulheres mudam o curso da vida coletiva e individual. Eu não vejo isso se desenhando em curto prazo no horizonte. Vou dizer algo que já foi dito por Antônio Gramsci e que é adequado para pensar o agora: “Quando aquilo que é velho ainda não morreu e aquilo que é novo ainda não emergiu, nesses tempos de transição, revelam-se fenômenos que são verdadeiras sociopatias”. Estou convencido de que a ordem do capital, que é o velho, ainda não morreu e a ordem do futuro ainda não emergiu. Então estes são períodos históricos que oscilam entre o trágico e o dramático.
A esquerda fala em revolução, em protagonismo da classe operária e em tomada de consciência pela massa. Mas também defende que qualquer tipo de transição radical passa por uma formação séria dos trabalhadores. Como o senhor vê isso? E como essa formação de caráter teórico se transforma em prática?
Eu não penso que as massas revolucionárias serão massas teoricamente muito ilustradas. O que leva os trabalhadores a querer mudar de vida é o momento em que suas vidas se tornam insuportáveis. É evidente que camadas de trabalhadores letradas e informadas são muito mais capazes de tomar consciência dos seus interesses do que camadas trabalhadoras rústicas, mantidas na ignorância pelas classes dominantes. Acredito que a questão central seja a formação política dos militantes. Líderes e dirigentes não fazem a revolução. É inteiramente irrealista imaginar que o conjunto das classes trabalhadoras vai se transformar em líderes da transformação social. Segmentos que vão constituir as suas vanguardas (no plural) é que podem dirigir um processo de transformação social. O investimento na formação desses segmentos é absolutamente essencial. É preciso formação política com base teórica. Aqui não me refiro à agitação e propaganda ou doutrinação, mas sim a conhecimentos de teoria social que permitam discernir e distinguir o essencial do acessório, o substantivo do episódico.
Teoria e prática
A teoria é absolutamente indispensável para a formação de vanguardas que sejam capazes de, em momentos de ruptura e de tensão social, dar orientações claras, lúcidas, sérias e responsáveis às massas. Rupturas sociais são sempre processos traumáticos. Não apenas no sentido da violência material, mas elas envolvem rupturas ideológicas, intelectuais, éticas, etc. Se lideranças não tiverem competência teórica e sabedoria política, o resultado dessas rupturas pode ser catastrófico. Pode ser a derrota de bandeiras e demandas generosas e legitimas. Isso significa que ninguém avança no domínio do progresso social, da universalização de direitos, da criação de condições de uma consciência e de uma nova cultura política só pela militância operativa. É preciso formação teórica e cultural. Eu me atreveria a dizer que sem isso não caminharemos.
Queria ser original, mas alguém já disse há cerca de 110 anos que “sem teoria revolucionária, não há revolução” [Lênin]. É preciso estudar, estudar e estudar para poder mobilizar e organizar com competência. Uma revolução não pode ser o arrebentar de uma represa de demandas reprimidas e de esperanças humilhadas. É sobre esse chão, sobre a indignação e sobre a revolta que corre a possibilidade de outro mundo. Mas ele tem que ser construído com cientificidade, competência e com uma palavra que está desgastada que a sabedoria.