Considero o Peru minha segunda pátria. Convivo desde os tempos da graduação em cinema com amigos peruanos, sendo que três deles são como irmãos para mim; amo o país, que irei visitar mais uma vez no final do ano; Cusco, a cidade mágica ('umbigo do mundo" em quéchua), sede do império Inca, tem, na minha vida, uma importância simbólica e afetiva que só a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro é capaz de superar. Por conta dessas circunstâncias tenho um razoável conhecimento da cultura e da história peruana, que são riquíssimas – mas também, esta última, trágica, escrita em sangue e por vezes de um absurdo que nem a mais delirante obra do realismo mágico conseguiria conceber.
Em razão disso tudo, senti um frio no peito quando, em 2006, vi confirmar-se a eleição de Alan García como presidente do país, pela segunda vez (a primeira foi de 1985 a 1990). Seria como se Collor de Mello fosse novamente eleito presidente do Brasil.
Em seu primeiro mandato, García, assim como Collor, comandou uma administração escandalosamente corrupta (mesmo para os padrões latinoamericanos) e durante a qual o país passou pela pior crise econômica de sua história, além de estar praticamente sitiado pelas ações do grupo terrorista Sendero Luminoso, que sequestrava nas estradas e com frequência interrompia o fornecimento de energia elétrica às grandes cidades. O atual presidente deixou o governo sob grande insatisfação popular e a um triz de sofrer impeachment (um ano depois, quando se intensificou a investigação sobre a corrupção em seu governo, foi afastado temporariamente do Senado e teve de exilar-se na Colômbia).
Por conta desses fatos, se, três anos antes, um analista político predizesse sua volta ao poder seria tachado de louco. Mas, nas eleições de 2006, a histeria que tomou conta das elites, da mídia peruana e, consequentemente, da classe média urbana com a possibilidade da vitória do militar nacionalista Ollanta Humala – vendido pela mídia como uma espécie de Hugo Chávez peruano – permitiu a García derrotá-lo por 52,6% a 47,4%.
García é herdeiro do aprismo - originalmente um movimento latinoamericano de centroesquerda dos anos 30, que acabaria por adotar a socialdemocracia nas décadas seguintes e, no Peru (onde o APRA é o partido mais organizado e massificado) desandaria, desde os anos 80, para um populismo de centro-direita, que o atual presidente peruano leva agora ao paroxismo.
O mau presságio que senti ao ouvir a notícia de sua mais recente vitória eleitoral logo se revelaria profético e é agora plenamente confirmado pelas notícias que chegam do Peru (“chegam”, prezado leitor, é modo de dizer, já que não podem ser lidas, senão em retalhos inconsistentes e tendenciosos, na nossa briosa “grande mídia" – que, como aponta Rafael Fortes, além de usualmente voltar as costas à América Latina, tudo perdoa quando se trata de governos alinhados ao ideário neoliberal).
Genealogia de um massacre
García anuncia, em dois artigos escritos em novembro de 2007, sua intenção de explorar a Amazônia através de vultosos empreendimentos madeireiros que se viabilizariam com a concessão de vastas extensões de terras a empresas multinacionais – um projeto democrático e de grande alcance social, como se vê. Seus argumentos são de um cinismo atroz, sem demonstrar a mínima consideração por questões humanitárias e ecológicas. Em dado momento, ele candidamente pergunta: “Os que se opõem dizem que não se pode dar terras na Amazônia (e por que na costa e na serra sim?)”. Nos dois artigos não há uma vírgula sobre os povos indígenas que lá habitam (e os quais o apoiaram no primeiro governo). Tal omissão não impede que a desculpa de García para implementar o programa seja a mesmíssima utilizada por governos anteriores, com os resultados sabidos: combater a pobreza.
Porém, como observam os antropólogos Alberto Chirif e Frederica Barclay, no excelente artigo (em espanhol) “Ataques y mentiras contra los derechos indígenas", “O governo, se é que o tema o interessa de verdade, não deve buscar a pobreza em lugares tão distantes como a Amazônia, e sim em Lima e nas demais grandes cidades do país, onde uma grande porcentagem da população não tem trabalho e sobrevive com rendas ínfimas. A pobreza que realmente afeta os indígenas amazônicos está precisamente nas zonas que têm sido devastadas pela colonização e pelas indústrias extrativistas, que têm contaminado o meio ambiente, afetado sua saúde e destruído suas redes sociais de solidaridade. Mas essas políticas do governo não se voltam à solução desses problemas, mas ao seu agravamento”.
No entanto, García ignora as reações negativas que seu projeto provoca e, ato contínuo, consegue do Congresso autorização, inicialmente em vigor por seis meses, para governar através de decretos legislativos (D.L.). Essa autorização é válida apenas para decisões relativas ao TLC (Tratado de Libre Comércio Perú-EUA), mas o presidente ignora esse “detalhe técnico” e passa a gerir de forma direta o país, particularmente seu tenebroso projeto para a Amazônia, sem dar satisfações ao Congresso. (Ou, posto de outra forma: a ocupação comercial da Amazônia é item obrigatório para assinatura do TLC, mas isso não pode ser publicamente assumido).
Ataque frontal ao direito dos índigenas
Dentre os decretos que promulga está o DL 1064, “um dos mais nocivos para as comunidades indígenas, porque atropela o direito de imprescritibilidade de suas terras e permite que invasores [grilheiros] estabelecidos há apenas quatro anos se apropriem de terras comunais”, explicam Chirif e Barclay.
Em agosto de 2008 começam as paralizações dos povos indígenas nas regiões amazônicas afetadas. Elas são organizadas pela Aidesep (Asociación Interétnica de Desarrollo de la Selva Peruana), que representa nacionalmente os povos indígenas e reúne 1350 comunidades nativas. A pressão a princípio funciona, e o Congresso derruba a D.L. 1015, promulgada por García e chamada – observe o duplo sentido – de “lei da selva”, pois permitia que se comprasse, com a anuência de apenas 3 de seus membros, toda a propriedade de cada comunidade indígena. A Defensoría Pública também questiona a constitucionalidade da lei e as instituições do país parecem dar mostras de que funcionariam a contento, favorecendo uma solução democrática para o impasse.
Mas García, que é apoiado pelos militares, pelo grande capital internacional e, o que é mais revelador, até pelos fujimoristas - bem como pela mídia e pelos setores médios da população, concentrados nas grandes cidades e satisfeitos com o "bom momento" da economia do páis -, reage com rapidez e promulga novos decretos ao mesmo tempo que intensifica a cooptação de setores do Congresso. É sempre bom lembrar que os dados da economia peruana têm de ser postos sob suspeita, já que o INEI (o IBGE deles) deixou de ser confiável desde que seu presidente foi demitido e processado por divulgar estatísticas que contrariavam o Executivo. Quanto aos métodos de aliciamento do Congresso, creio ser suficiente registrar que, em outubro de 2008, todo o gabinete peruano teve de renunciar por terem sido encontradas provas de políticos apristas recebendo grandes somas para alterar as licitações das vendas de lotes petrolíferos na Amazônia. Veja, caro leitor, que coincidência curiosa: o processo está suspenso porque o Judiciário alega não possuir determinados programas de computador necessários para retirar a informação dos HDs...
O Peru, assim como o Brasil, é pródigo em leis que, mesmo promulgadas, não são efetivamente cumpridas – notadamente aquelas que se referem aos estratos mais pobres e marginalizados da população, aos quais pertence enorme parcela dos peruanos de descendência indígena. É justamente uma dessas leis – com potencial para barrar todo o projeto garciano de ocupação extrativista da Amazônia – que causa os violentos acontecimentos que ora contrapõem governo e comunidades indígenas. Chamada popularmente de “Consulta”, initula-se “Convenio 169” (Ley Nº 26253) e firma a adesão às regras da Convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Prevê que os povos indígenas habitantes de suas terras devem ser consultados “cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar-lhes diretamente”, determinando, ainda, que com aprovação parcial das comunidades indígenas às medidas propostas, o Estado deve negociar até satisfazer a outra parte; e caso as comunidades rejeitem as medidas, estas não devem ser efetivadas.
Assinada há 15 anos, a lei não foi jamais cumprida. “Por quê? Porque que o Estado parece não saber as leis que assina ou porque, em se tratando de indígenas - que diabo! - por que fazer tanto alvoroço? Ao fim das contas, como assinalou o presidente Alan García, ‘As terras da Amazônia são de todos os peruanos’, o que significa apagar de uma canetada os direitos legais de propriedade das comunidades nativas e camponesas, declarar rapidamente a livre disponibilidade das terras da região e convocar o caos para que se encarregue de cancelar os direitos indígenas” (Chirif e Barclay). Já vimos esse filme antes na América Latina, não?
Populismo neoliberal
Em vias de terem suas terras comercializadas à sua revelia ante o avanço do projeto de García, as comunidades indígenas, vendo fracassarem as negociações, unem-se na luta pelo direito legal de determinar seu destino, mas García, numa jogada típica do neopopulismo aprista, passa a defender (como já citado) que a Amazônia pertence a todos os peruanos – e que, portanto, o direito de participar da “Consulta” e decidir sobre o que fazer com as terras amazônicas deve ser votado por todos. A legislação é absolutamente clara quanto aos beneficiários da “Consulta” – as comunidades indígenas que há séculos cultivam aquelas terras -, mas o sofisma de García cai como uma luva aos anseios midiáticos e das elites, que adotam-no como discurso e passam a difundi-lo.
Na conformação sócio-política do Peru atual, os indígenas, embora em grande número se computados os estratos urbanos e os campesinos, ocupam posição minoritária em termos de força política, contando apenas com o apoio do que restou da esquerda (que ou amoldou-se ao projeto neoliberal ainda em alta no país ou, se mais radical, foi praticamente dizimada por Fujimori em sua "abrangente" “Luta contra o terror”) e com o suporte da Aidesep, de algumas ONGs (embora entre elas destaquem-se organizações de projeção internacional) e com a atuação destemida da Defensoria del Pueblo, única instituição peruana que tem resistido sistematicamente - e com algum sucesso, embora fugaz - contra os abusos de García. Entre os exemplos deste último estão as cada vez mais frequentes concessões de autorização para que empresas como a canadense Pacific Stratus Energy, a franco-britânica Perenco e, ora vejam só, até a "nossa" Petrobrás possam operar no interior de reservas indígenas, onde tem sido descoberto petróleo. Ao mesmo tempo, sob a alegação de razões de segurança nacional e evidenciando a política antiindígena, tem sido negada autorização para a decretação de duas novas reservas e de um parque nacional, com a desculpa esfarrapadíssima de que os 700 índios secoyas peruanos e os 300 equatorianos que as habitam rebelar-se-iam e criariam um país autônomo. Mas, numa contradiçaõ só aparente, o conluio cívico-militar no poder mostra-se extremamente negligente com a verdadeira segurança nacional, fazendo vista grossa para uma cratera de - até agora -150km quadrados aberta pela empresa madeireira Newman Lumber Company (EUA) ao largo da fronteira com a Bolívia.
Rios de Sangue
Desesperados ante tal cenário e na iminência de perderem suas terras, os indígenas aumentam o tom e a frequencia dos protestos, bloqueando estradas. Em 9 de maio o governo declara Estado de Emergência em cinco estados da Amazônia. Está aberto o caminho para a disseminação da violência oficial.
É preciso, aqui, abrir parênteses para a especifidade da violência no Peru. O processo de genocídio e escravização dos incas promovido no século XVI pelo conquistador espanhol Francisco Pizarro – um dos mais brutais da história da humanidade - e os muitos massacres do período colonial, legaram ao país pobreza, um tecido social esgarçado e rancores represados que de tempos em tempos se materializam em atos de extrema violência. Para ficar em apenas um exemplo: as técnicas de tortura utilizadas pelos paramilitares na repressão contra o grupo maoísta Sendero Luminoso incluíam a utilização rotineira do fogo, arma que mesmo os torturadores mais cruentos evitam aplicar (se não por pudor, pelas marcas definitivas que provoca, evidência de tortura que, na impunidade generalizada que acompanhou a “guerra contra o terror” no Peru, não queria dizer nada) . Com o perdão da generalização, se o Brasil é o país em que convivem a alegria e o caos, o Peru é a pátria da doçura extrema e da violência exacerbada.
Para perpetuar essa história de extrema violência e aniquilação dos povos indígenas, em 5 de junho chegam com estrondo à região 369 efetivos da temida Dinoes (Direção Nacional de Operativos Especiais), fortemente armados, tal qual os contingentes das Forças Armadas que os acompanham. Eles iniciam o que a imprensa chama de uma batalha – mas, como aponta João Villaverde, massacre seria uma melhor descrição – contra a revolta indígena, com saldo de mortes incerto.
Meu querido amigo Claudio Suárez, correspondente especial do blog no Peru (pensam que é só a Globo que tem dessas coisas?), informa: “Causa indignação o fato de a população limenha estar, em sua maioria, desinformada pelos meios de comunicação, que exibem informações tendenciosas [que horror! isso jamais acontece aqui no Brasil, Claudio]: fala-se em 12 policiais e 3 indígenas mortos, mas na zona de conflito a imprensa local faz estimativas de algo entre 50 e 100 mortos entre os indígenas (além de centenas de feridos), pois vários corpos teriam sido queimados e outros jogados em um rio; é patente que a polícia ostentava grande quantidade de francoatiradores que disparavam para matar” [alguns deles podem ser vistos em ação no link "mostram a polícia", abaixo].
Os números fornecidos por Claudio são de uma semana atrás e é quase certo que aumentaram bastante nos 5 dias seguintes, em que a região ficou sob toque de recolher e execuções foram relatadas. Oficialmente, morreram 24 policiais e 9 civis, mas este último número não é levado a sério nem mesmo pela maioria das publicações da mídia corporativa internacional, apenas pela peruana. Às manipulações da mídia soma-se um enraízado preconceito contra os indígenas, que acaba por resultar em uma autêntica fratura na sociedade peruana. Como registra José Álvarez Alonso, biólogo que trabalha na região amazônica, em artigo sereno mas contundente (em espanhol), os setores médios urbanos e as elites “seguem considerando os indígenas cidadãos de segunda classe [condição que foi corroborada por García em uma de suas falas], ‘esses chamados nativos’, como alguns os qualificam com desprezo. Enquanto se mostra na televisão cenas da dor dos valorosos policiais mortos no cumprimento do dever, se ignora ou minimiza-se a cifra de mortos indígenas, que alguns calculam en mais de uma centena, talvez duas”.
Após o massacre, durante 5 dias, ninguem pôde entrar na zona de "batalha", nem imprensa, nem órgãos de direitos humanos, nem a Cruz Vermelha; foi instituído toque de recolher. Em seguida, parte da legislação sob ataque foi "suspensa", mas também o foram 7 dos mais aguerridos congressistas de oposição; líderes indígenas estão sendo processados por terrorismo e sedição, como já vinha ocorrendo com sindicalistas e lideranças sociais - o que levou o líder da Aidesep, Alberto Pizango, a se exilar na Nicarágua. Na quinta-feira (11/06), de 20 a 30 mil pessoas, segundo Suárez, protestaram em Lima, mas o que poderia ter sido o início da reação popular foi, como se vê na foto ao lado, brutalmente reprimido pela polícia.