Mensalão e eleição serão, inegavelmente, marcas registradas do
ano de 2012. Daquelas que vêm primeiro à mente ou aparecem de maneira
mais imediata ao senso comum. O primeiro, no entanto, passado o momento
de arrebatamento inicial, repleto de rompantes e querelas políticas,
ficará para a história como mais do mesmo da política nacional, com a
sua equalização por baixo a partir do vale-tudo institucional. E as
últimas eleições municipais tampouco serão capazes de se registrarem
mais qualificadamente na memória coletiva, vez que, no geral, não
chegaram a modificar de modo substancial a atual composição de forças
dominantes.
Na economia mundial, a desaceleração voltou a mostrar força
retumbante em 2012, mais notadamente no continente europeu, às voltas
com as imposições barbarizantes da chamada Troika. Um processo que,
ressalte-se, já vem se delineando bem antes da explosão da crise
financeira internacional de 2008, e que não chega a ser surpreendente
para quem acompanha o desenrolar da vertente econômica dominante –
norteada pela satisfação dos interesses do capital financeiro e das
grandes corporações internacionais.
Se o Brasil pôde, por um bom tempo, passar relativamente incólume
à degringolada do capitalismo mundial, em especial em sua vertente
neoliberal, não foi bem assim em 2012. Estaria aqui uma das novidades do
ano que finda? Sim, mas somente para aqueles que têm carregado a imagem
do Brasil como uma das ‘meninas dos olhos do capital financeiro’ e que
se iludem com a noção de que o país ascendeu socialmente, agora que a
classe média comporia uma boa parte da população. Aos olhos de quem se
atenta para as frágeis bases em que está assentado o modelo econômico
interno, fortemente calcado no consumo de supérfluos, no endividamento
familiar e, portanto, em uma expansão insustentável do crédito, não há
como não antever que, cedo ou tarde, a barbárie vai se instalar em solo
pátrio.
Movimentações e protestos mundiais em reação à forte crise
externa e, especialmente, às medidas fiscais restritivas e pauperizantes
que vêm sendo impostas têm se alastrado por vários países. E no Brasil,
não foi diferente. É certo que, neste ano, houve um forte
recrudescimento da reação popular aos atropelos dos direitos das
populações urbanas vulneráveis e também às agressões aos povos
originários. Os movimentos sindicais mais organizados também irromperam
na arena política exigindo, dentre outros, a recomposição de rendimentos
há longos anos defasados, em função da negligência dos governos com os
setores e o funcionalismo público.
Toda esta movimentação é, sem dúvida, indicativa da agudização da
percepção das mazelas e contradições no seio da sociedade, e de que
possam começar a se mover alguns dos arraigados e retrógrados alicerces
sociais. Trata-se, de todo modo, de uma movimentação ainda incipiente,
carente de amplitude e organicidade. E tão ou mais essencial que este
caráter incipiente, e a ele associada, esta reação tem sido respondida a
partir da lógica vigente em nossa economia e sociedade, qual seja, a
lógica de governos submissos aos interesses econômicos e financeiros. A
repressão e a violência policial têm aparecido, assim, notoriamente como
a resposta mais imediata aos grupos que se organizam na defesa de seus
interesses.
Com esta visão em mente, o sociólogo do Trabalho e professor do departamento de Sociologia da USP, Ruy Braga, é o nosso entrevistado especial neste final de ano. Seus estudos, assim como seu mais recente livro, ‘A política do Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista, são emblemáticos em meio a este cenário, visto lançarem sobre ele um profundo e sensível olhar.
Um dos destacados registros de seu último livro diz respeito ao
processo de concessões reais que embasam aquela que é chamada de
‘hegemonia lulista’, basicamente calcada em um consentimento passivo das
bases sociais e em um consentimento ativo por parte das direções
sindicais. Neste sentido, o sociólogo ressalta que “as condições de vida
e inserção da classe trabalhadora nas cidades e locais de trabalho são
muito precárias. A despeito do que ocorreu no mercado de consumo, por
conta da relativa desconcentração de renda, as condições de vida são
muito limitadas, o que não tem mudado significativamente. Em alguns
casos tem piorado, e muito. Portanto, temos um aumento de consumo e, ao
mesmo tempo, condições de vida e trabalho muito degradantes”.
Leia a seguir a entrevista completa.
Correio da Cidadania: A ideia do ‘precariado’ é um dos temas de análise de seu último livro ‘A política do Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista. O que você destacaria como essencial na apreensão deste conceito e o que o motivou a desenvolvê-lo?
Ruy Braga: O conceito sociológico de precariado já
vem sendo utilizado por alguns sociólogos de forma bastante intensa na
Europa, em especial na França e Inglaterra, a fim de se pensar a
formação daquilo que eles próprios denominam uma classe social de novo
tipo. E o que seria uma classe social de novo tipo? Seria aquele
conjunto de indivíduos progressivamente expulsos da proteção do Estado
de bem estar social, tendo em vista o avanço do neoliberalismo e o
aprofundamento da crise econômica.
Significa que, com base nas políticas de ajuste, em especial as
chamadas e debatidas políticas de austeridade impostas pela troika (mas,
antes disso, com base nas políticas de ajuste que viabilizaram a
criação da União Europeia como unidade econômica, a implantação do euro,
o Tratado de Maastricht e tudo o que envolvia o contexto da expansão do
neoliberalismo), houve uma diminuição da chamada proteção social, ou da
amplitude de aplicação dos direitos sociais na Europa.
A flexibilização da contratação de trabalhadores – que em Portugal se
dá via contratos livres, que são aqueles feitos via Pessoa Jurídica
(PJ), de prestação de serviços – acaba produzindo uma diminuição muito
grande do impacto da proteção trabalhista, em especial nos setores mais
jovens dos trabalhadores. É a ampliação daquela franja desprotegida do
mercado de trabalho, que cresceu nos anos 90 e se tornou muito vistosa e
saliente agora, por conta do aprofundamento da crise econômica
europeia. De modo que se identifica essa nova classe social, formada
pelos indivíduos que sofrem a diminuição da proteção social na Europa.
E quanto à motivação para este estudo, havia uma inquietação da minha
parte com relação a tal diagnóstico. Porque, olhando as coisas de uma
perspectiva brasileira ou mesmo norte-americana, vemos que, a rigor, a
insegurança é a regra, sempre foi assim. No Brasil é regra
historicamente estabelecida, através da insegurança do mercado e dos
trabalhadores. Eu olhava para aquela discussão e percebia problemas,
que, diga-se de passagem, têm a ver basicamente com certa sobreavaliação
do papel histórico do chamado compromisso socialdemocrata do
pós-Segunda Guerra. Este compromisso foi de fato muito eficiente pra
proteger aquela fração branca, masculina, nacional, sindicalizada e
adulta da classe trabalhadora. Mas, evidentemente, não foi tão eficiente
assim pra proteger a parcela feminina, jovem, imigrante, não
qualificada e não sindicalizada – mesmo na classe trabalhadora européia,
durante o auge do fordismo. O fordismo socialdemocrata também sempre
teve seus descontentes. Mas isso não era muito discutido, não era tão
exuberante, já que se tratava de trabalhadores periféricos.
A partir de certo momento, essa franja periférica cresceu muito, e
daí vem o precariado. O precariado é nada mais nada menos que a boa e
velha superpopulação relativa da qual já falava Marx, ou seja, aquela
fração da classe trabalhadora composta majoritariamente por aqueles que
entram e saem muito rápido do mercado por falta de qualificação - aquela
parcela rural ou da informalidade, setores formados por jovens no
primeiro emprego e aqueles que têm ocupações tão degradantes que os
obrigam a produzir de forma anormal, ou seja, vender sua força de
trabalho abaixo de seu valor. São todos esses fatores somados.
O que tentei fazer foi uma leitura construtivista, do ponto de vista
da sociologia marxista, dessa parte da classe trabalhadora que podemos
chamar de proletariado precarizado. Procurei separar setores mais
qualificados da classe trabalhadora daqueles setores pauperizados (ou
lumpenizados) e populares, e concentrar a análise neste proletariado
precarizado, formado pelo conjunto de frações da classe trabalhadora. A
isso chamei de precariado, aquela classe trabalhadora permanentemente
pressionada pelo aumento da atual exploração capitalista e a ameaça de
exclusão social.
Correio da Cidadania: Partindo deste olhar, como tem
enxergado, de modo geral, o mundo do trabalho no Brasil, especialmente
no que diz respeito à condução de políticas e medidas nas áreas
trabalhista e sindical nestes dois últimos anos sob o governo de Dilma
Rousseff?
Ruy Braga: Eu argumento no livro que o precariado é
uma parte fundamental do mundo do trabalho no Brasil. Fundamental
especialmente a partir dos anos 90, em função de uma profunda
reestruturação produtiva, com integração da economia brasileira à
economia internacional, através da liberalização comercial e financeira,
mas também pelo fato de que foi a década da multiplicação das formas de
contratação, quando tivemos o aprofundamento da precarização. Foi a
década do desemprego.
Temos, assim, um manto bastante saliente, notável, do setor
precarizado da classe trabalhadora. Viu-se um aumento da informalização,
seguido de aumento do desemprego, da exploração, das formas de contrato
por tempo determinado, enfim, essas formas não canônicas de contratação
- a despeito de a década de 2000 representar certa guinada em algumas
tendências, em especial, notavelmente, da informalização, já que esta
década foi de maior formalização do trabalho. Apesar disso, o aumento da
formalização foi acompanhado do aumento das taxas de volatilidade do
trabalho, de flexibilização, da precarização, da terceirização e,
consequentemente, do aumento daquele que é o aspecto mais visível da
deterioração das condições reais de consumo da força de trabalho, isto
é, o aumento dos acidentes e mortes no trabalho.
Percebo que, apesar desse processo de formalização dos anos 2000,
temos a reprodução da centralidade de tal precariado no mercado de
trabalho brasileiro, que acaba se tornando o principal mecanismo de
ajuste anticíclico das empresas, contratando à vontade e consumindo a
força de trabalho em condições muito duras. Intensificam turnos e assim
têm uma espécie de fórmula de ajuste, com a volatilidade da demanda
concentrada especialmente sobre essa fração precarizada do proletariado
brasileiro.
Na transição do governo Lula para o governo Dilma, não tivemos
grandes novidades do ponto de vista do mercado de trabalho, que continua
relativamente estável, a despeito das ameaças de demissão de 2011.
Estas ameaças foram contornadas por políticas específicas do governo,
principalmente desonerações da folha de alguns setores estratégicos, que
consomem muito trabalho, como notoriamente o faz a construção civil. A
não ser no contexto da famosa desaceleração econômica, o que
evidentemente coloca mais pressão sobre o desemprego e pressiona as
empresas a demitirem, não temos percebido um mercado de trabalho muito
diferente do que era no governo Lula.
Do ponto de vista sindical, a partir de 2008, percebe-se nitidamente
uma elevação do número de greves no Brasil. Tem-se uma retomada da
mobilização grevista, que, diga-se de passagem, se acentuou de 2010 para
2011, com um aumento de 27% do número de greves. Algumas delas de
abrangência nacional, como a dos bancários e dos Correios. Foram greves
longas e com pautas bastante agressivas, exigindo reajustes reais,
ganhos e participações, melhorias da condição de trabalho, com forte
adesão dos seus trabalhadores. Acredito que esta seja uma tendência para
os próximos anos, até porque é uma tendência que vem de 2008.
Portanto, acredito que o futuro aponta para uma retomada da mobilização grevista.
Correio da Cidadania: Ainda neste sentido, um dos registros
profundos de seu último livro diz respeito ao processo de concessões
reais que embasam aquela que é chamada de ‘hegemonia lulista’,
basicamente calcada em um consentimento passivo das bases sociais e em
um consentimento ativo por parte das direções sindicais. Nesta linha de
raciocínio, o que teria a dizer quanto ao atual patamar das lutas
trabalhistas e sindicais e a direção para a qual têm apontado?
Ruy Braga: Eu costumo dizer que o precariado se
encontra relativamente satisfeito com o modo de regulação lulista, isto
é, com as políticas públicas. Mas, quando nota as relações de trabalho,
percebe os limites do modelo de desenvolvimento pilotado por essa
burocracia lulista e setores oriundos dos sindicatos.
O argumento é simples: o precariado se sente relativamente integrado
pelas políticas públicas (Bolsa-família, aumento do salário mínimo,
ampliação do sistema federal de ensino superior, políticas de ampliação
do crédito consignado), através de um progresso material relativo e a
desconcentração da renda. O precariado percebe tais questões.
Mas, ao mesmo tempo, se dá conta de que, a despeito de tudo isso,
aumenta também o endividamento das famílias trabalhadoras. Apesar de
existir emprego, é de baixa qualidade; apesar da formalização, ganha-se
muito mal. Pra se ter uma ideia, durante o governo Lula foram criados
2,1 milhões de empregos por ano. Porém, destes, 94% (2 milhões)
remuneram até 1,5 salário mínimo, ou seja, até 980, 1000 reais. São
muitos empregos, mas remuneram muito mal, porque não se requer uma força
de trabalho qualificada e sequer é necessária uma qualificação
especial. Absorve-se bastante gente, mas em condições degradantes, com
salários ruins.
O precariado percebe esta situação, pois a vive no dia a dia. Assim,
desenvolve uma relação ambígua com o conjunto do modelo de
desenvolvimento formado pelo modo de regulação e o nível de exploração.
Esse é o meu argumento.
Correio da Cidadania: Como analisa o nível de inserção
sindical, auto-organização e também leitura da realidade dessa parte
mais precarizada de nossa classe trabalhadora?
Ruy Braga: O nível histórico de sindicalização da
classe trabalhadora brasileira é baixo, historicamente baixo, em
especial em setores privados da economia. Se encontrarmos setores com
10%, 15%, de sindicalização, já pode ser considerado muito elevado. Isso
mudou profundamente na última década, quando, com o aumento do emprego
formal, aumentou-se também o nível de sindicalização. Porém, ainda tem
baixo impacto.
Mas o ponto que considero mais importante da questão diz respeito
basicamente ao processo de reorganização sindical. Porque, afinal de
contas, com um sindicato integrado à estrutura de governo, pelo fato de
ter acontecido uma certa fusão entre sindicalismo e Estado, os
trabalhadores se veem inseridos numa relação que é mais ou menos a
seguinte: por um lado, não podem colocar muita pressão nos governos,
porque são aliados; por outro, têm de satisfazer reivindicações de suas
bases, pois o sindicalismo está lá pra isso e quem está no comando pode
ser substituído numa eleição interna – deixando de lado, obviamente, a
questão do gangsterismo sindical.
No entanto, o fato é que o poder sindical precisa de consentimento
das bases, o que tem colocado pressão sobre alguns setores, até mesmo do
sindicalismo governista. Isso pôde ser percebido na greve nacional
bancária, na greve dos Correios, e em várias questões que dirigiram
greves de outros trabalhadores. E mesmo sindicalistas lulistas,
governistas, se veem pressionados em suas bases e precisam dar resposta -
afinal, representar os interesses das bases é uma questão elementar do
sindicalismo.
De todo modo, essa integração sindicatos-Estado coloca uma série de
problemas. Se pegarmos os dados de greve, vemos que ela é muito forte no
BB e na Caixa. E a negociação tende a ser bem mais favorável aos
trabalhadores quando a economia cresce a 4%, 5% ao ano, como ocorreu até
2008, diferente de agora, com um crescimento na casa de 1,5%, 1,6%.
Essa diferença se viu entre os governos Lula e Dilma. O governo que
espera crescer 1% ou 2% ao ano vai endurecer a negociação, em comparação
ao que ocorre quando a economia crescia 6%, 7%. Tal fato tem
acrescentado tensões dentro do sindicalismo, o que vem levando a uma
relativa reorganização do movimento sindical, com o reaparecimento de
algumas centrais descoladas do governismo, como a Conlutas e a
Intersindical.
Temos uma reacomodação do sindicalismo brasileiro e uma dinâmica mais tensa no sindicalismo governista.
Correio da Cidadania: Tomando os conflitos sociais de forma
mais abrangente, o ano de 2012 marca-se de forma relevante por uma série
de confrontos, envolvendo, além dos movimentos grevistas de categorias
sindicais, a luta pelos direitos indígenas, movimentações sociais em
várias esferas e embates das periferias urbanas pela conquista e/ou
reconquista de seus direitos. O que poderia dizer sobre 2012 neste
quesito e, principalmente, da forma com que os vários níveis de governo,
municipal, estadual e federal, têm enfrentado tantas e legítimas
demandas sociais?
Ruy Braga: Os governos estaduais e municipais são um
desastre total. Governos que militarizaram o conflito social, colocaram
a PM pra reprimir famílias de trabalhadores, como no Pinheirinho,
enviaram 400 policiais pra desocupar uma reitoria ocupada por 70
estudantes, entre outras repressões policiais. É desastroso do ponto de
vista social. Isso evidentemente vai cobrar seu preço, haja vista que em
São Paulo já cobrou, com o governo municipal tendo sido conquistado
pela oposição petista. E acho que o mesmo acontecerá no nível estadual, a
fatura vai ser cobrada.
Isso porque as condições de vida e inserção da classe trabalhadora
nas cidades e locais de trabalho são muito precárias, devemos ressaltar.
A despeito do que ocorreu no mercado de consumo, por conta da relativa
desconcentração de renda, as condições de vida são muito limitadas, o
que não tem mudado significativamente. Em alguns casos tem piorado, e
muito.
Portanto, temos um aumento de consumo e, ao mesmo tempo, condições de
vida e trabalho muito degradantes. E evidentemente nada será resolvido
com PM atirando bala de borracha em família de trabalhador. Trata-se de
uma forma absolutamente desastrosa, trágica e equivocada de se lidar com
a questão social.
O governo federal é um pouco diferente no quesito, mas também não
vejo avanços realmente significativos nessa esfera de poder. Não existe
reforma agrária séria, por exemplo. Pelo contrário, o governo federal
legalizou terras griladas, esqueceu demandas históricas por terra e,
através do Ministério das Cidades, fez muito pouco em termos de
legalização de terras ocupadas.
Assim, não sou muito otimista quanto à relação entre governos e movimentos, em questões como moradia e luta pela terra.
Correio da Cidadania: 2012 foi também um ano de eleições
municipais. O que os resultados dos pleitos municipais de 2012
enunciaram, a seu ver, quanto ao andamento e composição das forças
políticas de nosso país?
Ruy Braga: Acredito que houve uma vitória do
governismo, consolidando a hegemonia lulista nesse campo da sociedade,
na versão micro, mais próxima do cidadão. Mas temos alguns movimentos
contraditórios. Eu chamaria a atenção para que os setores populares,
plebeus, mais empobrecidos, de fato procuram alternativas. Aqui em São
Paulo houve a visibilidade estrondosa da candidatura Russomanno,
especialmente em regiões periféricas, o que mostra certa disposição da
parcela mais popular em buscar alternativas àquelas que são as opções
mais tradicionais, representadas no caso por Haddad e Serra. O
desempenho eleitoral do PSOL também mostra um pouco disso, uma
aproximação de setores mais plebeus a opções mais descoladas do establishment,
inclusive em São Paulo. Os eleitores do Russomanno mantiveram a postura
de procurar alguém mais permeável a suas demandas, de modo que
repassaram seus votos para o Haddad no segundo turno.
Estabeleceu-se uma hegemonia lulista, mas ela se reproduz em terreno não tão firme quanto se acredita.
Correio da Cidadania: Inescapável é a constatação de que 2012
se encerra também marcado pelo chamado mensalão. O que este episódio,
com toda visibilidade e repercussão de que foi alvo, te diz a respeito
de nosso contexto político?
Ruy Braga: O mensalão representa um pouco a
constatação de que a política está muito igual, ou seja, o vale-tudo
político-institucional absorve as mais diferentes forças políticas e
sociais e equaliza tudo por baixo. O mesmo esquema de compra de votos
utilizado pelo governo FHC foi também usado pelo PT, e com os mesmos
operadores. Com isso, temos um nivelamento por baixo da política.
O grande problema é que a população não vê muitas alternativas, até o
momento, a essa polaridade. Todo mundo sabe que é mais ou menos tudo
farinha do mesmo saco. Mas o PT se destaca mais pelas políticas sociais e
públicas, com uma interlocução maior com o movimento sindical e
popular, o que evidentemente o coloca muito à frente do PSDB nesse
quesito. O PT consegue representar e empunhar uma agenda (a despeito de
todos os seus limites) da diminuição da desigualdade social. O PSDB não
consegue fazer isso porque é tradicionalmente o partido da desigualdade.
De todo modo, prevalece a noção do vale-tudo eleitoral, que equaliza
todo mundo por baixo - o cenário fica sem muita diferença. Assim, entre
as opções existentes, a população se atrai mais para o lado de quem se
apresenta com uma agenda de diminuir um pouco a desigualdade.
Correio da Cidadania: Pensando um pouco em termos mundiais,
estamos diante do que se pode chamar de repique da crise de 2008, com a
evidente e atual desaceleração da economia mundial, impactando a Europa
de modo avassalador, e já reverberando notavelmente nos países em
desenvolvimento, entre eles, o Brasil. Como vê esse cenário e o que
pensa da conduta do governo Dilma na condução da política econômica
interna, essencialmente no que diz respeito ao caráter das medidas que
vêm sendo tomadas para evitar uma desaceleração maior da economia?
Ruy Braga: A crise mundial é muito intensa e o
modelo de desenvolvimento brasileiro durante os anos 2000 foi se
deslocando aceleradamente para aqueles que hoje são os principais
motores da acumulação de capital no país: bancos, mineração,
agronegócio, petróleo, siderurgia, construção civil... Muitos deles
dependem notoriamente do mercado internacional. Agronegócio e mineração,
dois motores importantes, dependem efetivamente de encomendas externas.
Com uma recessão mundial estabelecida, a economia brasileira é
obviamente atingida. O governo tentou por um tempo aplicar medidas
anticíclicas apoiadas no crédito, o que teve seu fôlego, mas, a partir
de certo momento, começou a claudicar, pois as pessoas começaram a se
intimidar e ver que não iriam conseguir pagar suas dívidas. O governo
modificou, portanto, tal agenda, não radicalmente, mas acrescentando os
investimentos em infraestrutura. Nos últimos quatro, cinco anos, a
partir de 2008, isso se intensificou, com anúncios de obras de
infraestrutura, integração da malha viária, qualificação dos portos,
construção de barragens, concessão de aeroportos...
São medidas importantes, mas não têm capacidade de, por si mesmas,
equacionarem o grande problema de uma economia com as características da
brasileira, isto é, o investimento capitalista. O principal investidor é
o próprio governo, através do BNDES. Fora ele, o investimento privado é
muito baixo. O investidor privado efetivamente não se arrisca, até
porque não precisa, além de buscar remunerações bastante generosas.
Agora que a taxa de juros tem caído, o investidor se sente mais obrigado
a investir o dinheiro, mas continua covarde. O que, então, acontece
hoje? O governo não consegue seduzir o investidor privado, que por sua
vez não é capaz de equacionar sozinho o problema do investimento no
país.
A realidade é que crescemos pouco. Não estamos em recessão, mas
vivemos um momento de flagrante desaceleração econômica, no qual
praticamente só se vê um único jogador em campo, o governo. E ele não é
capaz de resolver sozinho o problema.
Qual a solução? Ou se nacionalizam os grandes meios de produção, com a
estatização dos grandes intermediários financeiros ou... Vai ser
difícil.
Correio da Cidadania: Você possui uma visão esperançosa das
movimentações sociais que vêm rondando o mundo, desde a primavera árabe
até a grande quantidade de movimentos ‘Occupy’ que têm varrido diversos
países, passando por alguns protestos massivos na Europa?
Ruy Braga: Eu costumo citar Antonio Gramsci, sendo
muito pessimista na razão e otimista na vontade. Sinceramente, não
coloco muita esperança nos movimentos ‘Occupy’, muito espontaneístas e
pouco orgânicos. A primavera árabe é um processo diferente, no qual a
palavra final não foi dada ainda, mas que ocorre num contexto muito
contraditório, com várias forças internacionais assumindo protagonismo a
partir de dado momento. Na Europa, sou mais otimista com as
movimentações dos trabalhadores e da juventude, mas vejo grandes
barreiras nacionais.
Assim, é necessário internacionalizar tais lutas, especialmente na
Europa, onde há mais base para tal. Mas não tem ocorrido este contexto.
Os trabalhadores gregos lutam na Grécia, os trabalhadores espanhóis
lutam na Espanha... Não há até, o momento pelo menos, o desenvolvimento
de um internacionalismo mais agudo e radical. Minha esperança é de que
não fique assim, que haja uma internacionalização das lutas, em escala
regional no caso da Europa, e em escala mundial, acrescentando-se EUA,
países árabes, latinos...
Correio da Cidadania: Finalmente, 2012 acaba sob forte
desaceleração econômica e 2014 é ano de Copa e eleições presidenciais. O
que você espera pra 2013, no sentido de medidas a serem tomadas pelo
governo para sanear as contas públicas e promover crescimento, visto o
reduzido espaço que terá para empreender tais tarefas no ano seguinte?
Ruy Braga: O governo ainda tem mecanismos, bala na
agulha pra gastar. O BNDES é um dos maiores bancos do mundo, o governo
tributa muito fortemente, tem condições de reforçar mecanismos
anticíclicos...
Quanto aos direitos trabalhistas, a pressão por flexibilização é
grande, haja vista as propostas que têm pipocado, como o Acordo Coletivo
Especial (onde deve prevalecer o negociado sobre o legislado), pressões
do empresariado por desonerações em todos os setores, com impacto sobre
a previdência, pressões pela diminuição do “custo Brasil”,
flexibilização em contratações...
É o que eu digo, o mercado de trabalho brasileiro é excessivamente
flexível, não é pouco, longe disso. O trabalhador precisa de mais
direitos, não menos. Só que não vejo muita decisão do governo de atacar
tal problema, pelo contrário. Se for aprovado o acordo especial,
acredito que o princípio do acordado sobre o legislado, que vigoraria a
partir de então, vai diminuir ou eliminar direitos para a grande parcela
dos trabalhadores que não são representados nos sindicatos fortes.
Ao mesmo tempo, não vejo, como disse, disposição do governo em
ampliar direitos trabalhistas. Afinal, passamos todo o período de
crescimento econômico nos anos Lula sem ver nenhum novo direito
acrescentado. Acho que há um único ponto que foge à regra histórica de
não criação de novos direitos, que é a legislação sobre a empregada
doméstica, a ser discutida e votada. Esta talvez seja a única iniciativa
do governo que possa eventualmente ser alinhada aos ganhos de direitos.
Fora isso, do ponto de vista dos direitos sociais e trabalhistas,
tivemos uma era perdida.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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