sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Por que público foge da TV aberta




Conforme notícia divulgada pela Folha de São Paulo nesta semana, a Rede Globo fechou o ano passado com a pior audiência de sua história. Segundo dados do Ibope, em 2012 ela teve, em média, 14,7 pontos (cada ponto equivale a 60 mil domicílios).
A emissora ainda amarga o pior índice em seu principal programa jornalístico, o Jornal Nacional, que, ano passado, teve média de 28,1 pontos contra o pico de audiência, que ocorreu em 2006, de 36,4 pontos.
Todavia, é equivocada a percepção de muitos de que se trata de um problema isolado da Globo. Houve queda de audiência de todas as TVs abertas no ano que passou em relação a 2011.
Apesar de a Globo ter fechado 2012 com 14,7 pontos contra 16,3 em 2011, a Record teve 6,2 pontos contra 7, 2, o SBT 5,6 pontos contra 5,7, a Band 2,5 pontos contra 2,5 e a Rede TV! liderou a queda, tendo perdido 37% de sua audiência no ano passado, tendo cravado 0,9 pontos contra 1,4 em 2011.
E não foi só. O número de aparelhos ligados em televisões abertas caiu perto de 5%.
O resultado negativo mais “vistoso”, claro, foi o da Globo, que, ao longo da última década, vem perdendo mais audiência do que as concorrentes, sobretudo devido ao avanço da Record e à forte perda de audiência do Jornal Nacional.
Sobre o ainda mais assistido telejornal do país, a perda de audiência acima da média  certamente se deve, em boa parte, à utilização do informativo como arma na incessante guerra da Globo contra o governo federal e o PT.
A cobertura do julgamento do mensalão, por exemplo, irritou profundamente até o público que não gosta do PT. Tentando influir a qualquer preço na eleição municipal do ano passado, sobretudo na de São Paulo, o núcleo de jornalismo da Globo, às vésperas do segundo turno, produziu um dos maiores absurdos que se viu na televisão brasileira.
Em 23 de outubro,  a uma semana do segundo turno, logo após o horário eleitoral gratuito, o Jornal Nacional levou ao ar uma matéria que teve duração só comparável às coberturas de grandes catástrofes como a de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque, nos Estados Unidos, quando terroristas derrubaram as Torres Gêmeas do World Trade Center
Dos 32 minutos de duração da edição do JN naquele dia, 18 minutos foram gastos com o julgamento. E o que é pior: não houvera absolutamente nada de especial, naquele dia. Assim, o telejornal se limitou a importunar o telespectador com “melhores momentos” do julgamento.
Aliás, o ineditismo do tempo gasto na reportagem foi de tal monta que virou até matéria de jornal no dia seguinte, na Folha de São Paulo, e ainda gerou representação da ONG Movimento dos Sem Mídia ao Ministério Público Eleitoral acusando a emissora de fazer uso político de uma concessão pública em período eleitoral, contrariando a legislação.
O julgamento do mensalão foi tão martelado por toda a programação da Globo que passou a ser comum ouvir pessoas comentando que não agüentavam mais o assunto. Contudo, a queda mais pronunciada de audiência da Globo e do JN se deve a um processo mais amplo.
Outras emissoras não se beneficiaram da queda de audiência da Globo porque também incorrem em manipulação de notícias, mas, acima de tudo, porque todas as emissoras abertas insistem em uma programação que qualificar de medíocre soa até benevolente.
O público que pode, foge para a televisão a cabo. Quem não pode, recorre à internet. Sobretudo para se informar.
Agora, por exemplo, está sendo anunciado que o Brasil voltará a ser assolado por nada mais, nada menos do que a DÉCIMA TERCEIRA edição do Big Brother Brasil, com bebedeiras, promiscuidade e mediocridade invadindo nossos domicílios.
Alternativa ao BBB? A Record apresenta algo ainda pior, uma cópia malfeita, mais brega, ainda que menos promíscua: o reality show A Fazenda.
Novelas? Apesar de Globo e Record, acima de todas, reunirem bons elencos, as tramas são sofríveis, repetitivas. As histórias são sempre as mesmas, com pequenas variações. Ainda que o público para essas porcarias ainda se mantenha, vem diminuindo percentualmente em relação ao conjunto da população.
O progressivo aumento do nível de escolarização e cultura do brasileiro vai provocando fuga de uma programação cuja produção chega a ser cara só para produzir lixo cultural em estado puro.
Para que se informar pelos telejornais se, pela internet, você fica sabendo antes das notícias e ainda pode ter acesso a diversos ângulos delas?
No Jornal Nacional, por exemplo, o espectador sofre tentativa de manipulação, com notícias distorcidas sob interesses políticos e econômicos e, em geral, não fica sabendo do outro lado da moeda.
Há cada vez mais gente, portanto, produzindo seus próprios informativos pela internet. Hoje você pode montar uma rede de sites e blogs nacionais e internacionais e se informar em muito maior profundidade.
Claro que ainda é restrito o contingente de pessoas que montam seu portfólio informativo com base em critérios mais racionais e via internet, mas esse contingente cresce de forma exponencial.
O que ocorre no Brasil é uma tendência mundial. Nos EUA, por exemplo, a televisão aberta tem baixa audiência, muito mais baixa do que no Brasil, percentualmente.
Agora, a cereja do bolo: nos próximos anos, as operadoras de telefonia deverão começar a produzir conteúdo para transmitirem via TV digital ou internet, inclusive em celulares. E sem uma regulação das comunicações eletrônicas, a Globo e congêneres estarão ferradas.
Explico: as teles vêm aí com arcas incontáveis de dinheiro para investir em conteúdo, com seus faturamentos dez vezes maiores do que das emissoras tradicionais, inclusive da Globo. Sem regulação do setor, até ela será engolida.
Talvez por conta disso vemos o governo Dilma impassível diante do clamor de setores da sociedade por uma “lei da mídia”, pois a tecnologia deverá levar Globo e companhia limitada a baterem na porta do governo pedindo regulação, por incrível que pareça.
Muitos – entre os quais me incluo – estão contrariados com a postura da presidente Dilma de renegar qualquer intenção de dar ao Brasil uma legislação moderna para esse setor tão crucial, até porque há medo de que os barões da mídia arranquem de um governo aparentemente acovardado uma regulação feita sob medida para os interesses deles.
Todavia, apesar de também ter essa preocupação, penso que a passividade do governo federal pode – apenas pode – ser uma estratégia para negociar em posição de força quando a própria família Marinho, entre outros, bater-lhe à porta pedindo uma “lei da mídia”.
A ver.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O modelo indiano das Escolas-Ashram, no filme "O Invencível"

03012013 o invencivel cartazÍndia - PGL - [José Paz Rodrigues] Na antiga Índia um «Ashram», também chamado «Gurukul», era um eremitério e, ao mesmo tempo, uma escola no bosque ou floresta. Onde os sábios, os «sadhus» (santos), os «rishis» (ascetas), os mestres e os estudantes, seus discípulos, viviam em paz e tranquilidade em harmonia com a Natureza.

Tradicionalmente, estas escolas na floresta, chamadas assim mesmo «Topovanas», situavam-se afastadas das zonas urbanas e das vivendas, em florestas, bosques ou lugares montanhosos, no meio de amenos ambientes naturais, propícios para o ensino, as aprendizagens e a meditação espiritual. Com espaços adequados para todo o tipo de atividades: intelectuais, físicas, estéticas, exercícios corporais e todo o tipo de práticas e formas de ioga. Nas mesmas residiam os mestres e docentes com as crianças de diferentes níveis. A palavra «Ashram», a mais usada para este tipo de instituições educativas, que permanece na atualidade, deriva do termo sânscrito «aashraya», que significa «proteção». Houve em toda a Índia muitos «Gurukuls» ou «Ashrams», nos quais infinidade de rapazes se formaram e, em especial, nas aprendizagens apreciativas, no respeito pola paz e a natureza, ademais de adquirir as aprendizagens instrumentais da leitura, a escrita e o cálculo.
Os mais famosos, que ainda hoje subsistem, foram o «Sabarmati Ashram», perto da cidade de Ahmedabad, criado por Gandhi, e que serviu de sede durante a sua longa luita pela independência da Índia. O «Auronville» ou «Aurobindo Ashram», fundado polo grande bengali Aurobindo Ghosh na cidade de Pondichery, uma cidade que conserva muitas reminiscências francesas. E, especialmente, a escola Santiniketon (Morada da Paz), ashram criado por Robindronath Tagore em 22 de dezembro de 1901, na quinta que lhe cedeu seu pai, para fundar uma escola modelo, em que sabiamente integrou o modelo das antigas escolas indianas do bosque com o modelo das escolas novas europeias. As quais, de alguma forma, no contexto europeu, são similares aos ashrams indianos, por serem criadas em plena natureza e afastadas das cidades. O exemplo temo-lo na Odenwald de Paul Geheeb, na Escola das Rochas de Demolins ou na escocesa Abbotsholme de Cecil Reddie. Sem esquecer-nos das famosas escolas do bosque municipais de princípios do século vinte em Barcelona, dirigidas por Rosa Sensat. Ou das escolas monacais medievais que existiam nos mosteiros, nomeadamente nos beneditinos e nos cistercienses.
O rapaz protagonista do formoso filme do bengali Sotioyit Ray, considerado como uma obra-mestra do cinema mundial, antes de partir para Calcutá a prosseguir estudos superiores, como adolescente, frequenta uma escola-ashram do tipo que estamos a comentar. Ali desperta a sua inteligência e descobre que tem aptitudes para continuar a estudar, destacando entre os demais. O seu mestre anima-o a superar-se e continuar formando-se, pois sabe que tem qualidades para isso.
Ficha Técnica do filme:
Título original em bengali: Oporayito (O Invencível).
Diretor: Sotioyit Ray (Bengala-Índia, 1956, Branco e Preto, 115 min.).
Roteiro: S. Ray, baseado no romance de Bibhutibhushan Bondopadhai.
Música: Robi Shonkor. Fotografia: Subroto Mitro.
Atores: Kanu Banerji (Harihar Ray, o pai), Karuna Banerji (Sorboyoya, a mãe), Pinaki Sengupto (Opu jovem), Smaron Ghosal (Opu adolescente), Santi Gupto (Ginnima), Subodh Ganguli (o diretor da escola), Hemonto Chatteryi (o mestre), Horendrokumar Chokrovorti (o doutor) e outros.
Prémios: Leão de Ouro ao melhor filme no Festival de Veneza de 1957. Golden Gate ao melhor diretor no Festival de São Francisco e Melhor Filme Estrangeiro no BAFTA.
Argumento: Depois do falecimento de seu pai e de viver por algum tempo na cidade sagrada indiana de Benarés, o jovem Opu, de dez anos, muda-se com a sua mãe para a casa de um tio que os acolhe. Opu frequenta a escola local onde é um bom aluno, ao ponto de receber uma bolsa para realizar estudos superiores e ir estudar a Calcutá. Opu decide partir e sua mãe fica angustiada com a sua partida e com a sua crescente independência. Ela ama muito seu filho e pretende o seu sucesso, mas não quer ficar sozinha. O filme é sem dúvida uma comovente e bela história filmada sobre a vida e a morte no seio de uma família bengali. Configurou o segundo título da famosa trilogia de Ray intitulada «O Mundo de Opu».
Na Índia só um guru é um verdadeira modelo de mestre:
Um dia Tagore, diante dos estudantes, futuros mestres, da Escola Normal de Tóquio no Japão, pronunciou, entre outras, as lindas palavras seguintes: «Para ser mestre de crianças é completamente necessário ser como uma criança, esquecer o que sabemos e que já chegamos ao final dos conhecimentos. Se se quer ser um verdadeiro guia de crianças, não há que pensar em que se tem mais idade, nem que se sabe mais, nem nada polo estilo; há que ser um irmão mais velho, disposto a caminhar com as crianças pola mesma senda do saber elevado e da aspiração. E o único conselho que posso dar-vos nesta ocasião, se vos ides dedicar a ensinar aos filhos dos homens, é este: que cultiveis a alma da criança eterna».
Eis o modelo de mestre de um ashram, que teria que ser o de todas as escolas do mundo. Uma espécie de guru, palavra sagrada para os indianos, que só pode ser usada com aqueles mestres que reúnem as seguintes qualidades: ser alegre, otimista, altruísta, amar a vida, possuir profundos valores humanos, amar a paz, ser solidário, amar a natureza, respeitar a psicologia das crianças, adaptar-se às mesmas (não que estas se adaptem ao mestre), saber motivar e entusiasmar, saber provocar o interesse e a curiosidade, não impor as suas ideias respeitando as dos estudantes, caminhar ao lado dos alunos para refletir sobre os saberes e aprendizagens que se vão adquirindo, compreender as possíveis faltas dos educandos, não empregar a estratégia dos prémios e os castigos, fomentar a bondade e a generosidade, a verdade, os valores éticos e o disfrute da beleza ali onde existe, nas pessoas, em toda a natureza, no céu, o sol, a lua e as estrelas, a beleza da poesia, a música, a dança, o teatro, o cinema... E, acima de tudo, ser uma pessoa íntegra, que também tem profundos conhecimentos da cultura mundial, que sabe bem ensinar com acertadas estratégias didáticas. Não fechando-se às diferentes culturas e formas de ver a vida e não sendo sectário perante a diversidade que existe.
Um formoso filme cheio de belas imagnes da vida mesma:
O cinema de Ray, que se formou na universidade internacional Visva-Bharoti de Santiniketon e foi aluno de Tagore, é de um elevado realismo. Recebeu grande influência do grande diretor Jean Renoir e do neorrealismo italiano, especialmente do filme de De Sica Ladrão de bicicletas, que o entusiasmou quando o viu em Londres. Ray escreveu nos anos 40 estas belas palavras: «A crueza das imagens do cinema é a própria vida. É inacreditável como um país que inspirou tanta pintura, música e poesia, falhe perante o realizador de cinema. Ele só tem de ter os olhos abertos e os ouvidos atentos. Deixem-no fazê-lo». Foi grande amigo de Renoir, Antonioni e Kurosawa. Este chegou a dizer uma vez acertadamente: «Não ter visto o cinema de Ray significa existir no mundo sem ver o sol ou a lua». Precisamente aí radica a força do seu cinema, muito bem representado no filme que comentamos, o segundo da sua formosa e famosa trilogia intitulada «O Mundo de Opu».
O Invencível, título do filme, demonstra certa ironia, da própria vida retratada, que lhe tirou tudo ao rapaz protagonista, ficando ele só e os seus sonhos. O falecimento antes de seu pai e logo de sua mãe, uma cena além de muito bela, acompanha um dos simbolismos mais fortes para a personagem de Opu até então. Este momento conta-o em imagens de grande sensibilidade o cineasta bengali. A história da família, as personagens tratando de sobreviver e prosperar, chegam-nos diretamente ao coração e compreendem-se em qualquer parte do mundo. Tudo está contado e filmado de maneira singelamente magistral. Uma delícia cinematográfica que convida a refletir sobre a vida humana, sobre o esforço dos nossos pais para que saiamos adiante e sejamos mais que eles, sobre quão ingratos somos os filhos com os pais, algo que não reconhecemos até que se nos vão deste mundo e já não podemos olhá-los mais aos olhos.
O filme tem ritmo, fluidez e, embora com certa tristeza, esconde um transfundo de esperança. Não deixa de ser um reflexo da vida mesma, a inocência da infância que se vai forçosamente, dando passo à etapa em que se começa a ver o mundo mais claramente e a aprender dele. A aprender com boas formas, estudando, e com outras menos bem recebidas, com os golpes que dá o destino. Estamos perante um filme precioso, com uma história bem contada, de uma força prodigiosa. O impacto de cada imagem encontra-se na exuberância da paisagem de Bengala, na presença da natureza, nas modestas vivendas humanas, no modo de vida, nos costumes, nas tradições, nos exóticos sons dos instrumentos musicais autóctones e, especialmente, nas pessoas em si. As suas relações, conversas, preocupações, esperanças, tristezas e felicidade.
Possivelmente estamos perante o filme que melhor representou a etapa da adolescência, ademais de forma universal, fácil de entender em todos os lugares do mundo. No qual também se apresenta a dicotomia entre o campo e a cidade, o contexto rural e o urbano. Um representando a resignação e a tradição. O outro a vida moderna, o crescimento, o progresso e o futuro. Ao menos no contexto dos anos vinte desse grande e imenso país que é Índia. Tema este que hoje veríamos com outros olhos e outra atitude, pois são muitos os que, não só por razões económicas, voltam às aldeias e ao mundo rural, onde acham que há mais autenticidade, mais solidariedade, menos individualismo, mais cooperação e menos poluição.
Este formoso filme de Ray reflete à sua vez isso que chamamos «lei de vida», onde por desgraça ou por sorte assim é, e não há volta atrás na escolha dos nossos factos. Um filme que convida à reflexão e que é verdadeira poesia. E não só por mostrar o modelo das escolas-ashrams indianas. Também por mostrar o importante que é o papel e o labor das mães na educação dos filhos e na vida em geral dum país. Muitas vezes injusta e imoralmente pouco valorados. Uma obra-mestra realizada polo diretor bengali Ray, quem, merecidamente, em 1992, recebeu o Óscar por toda a sua magna e linda filmografia.
Temas para refletir:
- Analisar o importante que é ter bons mestres e docentes, com qualidades humanas e didáticas. Fazer propostas de como poderíamos escolhê-los e como formá-los adequadamente. Tomar como ponto de partida os únicos modelos de formação do professorado acertados que tivemos no país: o Plano Profissional de 1931 e o Plano de 1967.
- Analisar a linguagem cinematográfica utilizada por Ray neste filme: tipos de planos, movimentos de câmara, uso do tempo e do espaço, simbolismo das diferentes imagens e como amostra nitidamente que no cinema, mais que a palavra, a imagem é o mais importante. Por isso a mais acertada definição de cinema é que é a arte das imagens em movimento.
- Desenhar um plano de formação do professorado em exercício, para levar para a frente no país, com o objetivo fundamental de sensibilizar os atuais docentes de todos os níveis educativos sobre o seu importante ofício e também a sua responsabilidade perante os estudantes. Acompanhado de um importante projeto formativo sobre adequadas estratégias educativas para utilizar nas aulas. Este tema, nesta altura, com um tão nefasto ministro da educação, o pior em muitos anos, não deixa de ser uma utopia. Por isso o melhor, para o por em prática, é a auto-organização dos docentes. Como aquela que se teve que fazer nos anos sessenta e setenta durante as últimas décadas do franquismo.
(*) Académico da AGLP, didata e pedagogo tagoreano. Autor, igualmente, da coluna de opinião Dizer e Fazer.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Como foi inventado o povo judeu - Um livro importante de Shlomo Sand


Miguel Urbano Rodrigues
 
 
Embora crescentemente desmentidos pela arqueologia, pela genética e pela historiografia séria, os mitos de que se alimenta o sionismo continuam a constituir a base em que assenta a reivindicação de legitimidade do estado etnocrático, confessional, racista e colonialista de Israel. O «Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade nega a lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático um Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do país, um Estado nascido de monstruoso genocídio em terra alheia, um Estado cuja prática apresenta matizes neofascistas.

Uma chuva de insultos fustigou em Israel Shlomo Sand quando publicou um livro cujo título - «Como foi inventado o povo judeu” * - desmonta mitos bíblicos que são cimento do Estado sionista de Israel.
Professor de Historia Contemporânea na Universidade de Tel- Aviv, ele nega que os judeus constituam um povo com uma origem comum e sustenta que foi uma cultura especifica e não a descendência de uma comunidade arcaica unida por laços de sangue o instrumento principal da fermentação proto-nacional.
Para ele o «Estado judaico de Israel», longe de ser a concretização do sonho nacional de uma comunidade étnica com mais de 4 000 anos, foi tornado possível por uma falsificação da história dinamizada no seculo XIX por intelectuais como Theodor Herzl.
Enquanto académicos israelenses insistem em afirmar que os judeus são um povo com um ADN próprio, Sand, baseado numa documentação exaustiva, ridiculariza essa tese acientífica.
Não há aliás pontes biológicas entre os antigos habitantes dos reinos da Judeia e de Israel e os judeus do nosso tempo.
O mito étnico contribuiu poderosamente para o imaginário cívico. As suas raízes mergulham na Bíblia, fonte do monoteísmo hebraico. Tal como a Ilíada, o Antigo Testamento não é obra de um único autor. Sand define a Bíblia como «biblioteca extraordinária» que terá sido escrita entre os séculos VI e II antes da Nossa Era. O mito principia com a invenção do «povo sagrado» a quem foi anunciada a terra prometida de Canaã.
Carecem de qualquer fundamento histórico a interminável viagem de Moisés e do seu povo rumo à Terra Santa e a sua conquista posterior. Cabe lembrar que o actual território da Palestina era então parte integrante do Egipto faraónico.
A mitologia dos sucessivos exílios, difundida através dos séculos, acabou por ganhar a aparência de verdade histórica. Mas foi forjada a partir da Bíblia e ampliada pelos pioneiros do sionismo.
As expulsões em massa de judeus pelos Assírios são uma invencionice. Não há registo delas em fontes históricas credíveis.
O grande exilio da Babilónia é tão falso como o das grandes diásporas. Quando Nabucodonosor tomou Jerusalém destruiu o Templo e expulsou da cidade um segmento das elites. Mas a Babilonia era há muito a cidade de residência, por opção própria, de uma numerosa comunidade judaica. Foi ela o núcleo da criatividade dos rabinos que falavam aramaico e introduziram importantes reformas na religião mosaica. Sublinhe-se que somente uma pequena minoria dessa comunidade voltou à Judeia quando o imperador persa Ciro conquistou Jerusalém no séc. VI antes da Nossa Era.
Quando os centros da cultura judaica de Babilonia se desagregaram, os judeus emigram para a Bagdad abássida e não para a «Terra Santa».
Sand dedica atenção especial aos «Exílios» como mitos fundadores da identidade étnica.
As duas «expulsões» dos judeus no período Romano, a primeira por Tito e a segunda por Adriano, que teriam sido o motor da grande diáspora, são tema de uma reflexão aprofundada pelo historiador israelense.
Os jovens judeus aprendem nas escolas que «a nação judaica» foi exilada pelos Romanos apos a destruição do II Templo por Tito em 70, e posteriormente, por Adriano, em 132. Por si só o texto fantasista de Flavius Joseph, testemunha da revolta dos zelotas, retira credibilidade a essa versão, hoje oficial.
Segundo ele, os romanos massacraram então 1 100 000 judeus e prenderam 97 000.Isso numa época em que a população total da Galileia era segundo os demógrafos atuais muito inferior a meio milhão…
As escavações arqueológicas das últimas décadas em Jerusalém e na Cisjordânia criaram aliás problemas insuperáveis aos universitários e teólogos sionistas que «explicam» a história do povo judeu tomando a Torah e a palavra dos Patriarcas como referências infalíveis.
Os desmentidos da arqueologia perturbaram os historiadores. Ficou provado que Jericó era pouco mais do que uma aldeia sem as poderosas muralhas que a Bíblia cita. As revelações sobre as cidades de Canaã alarmaram também os rabinos. A arqueologia moderna sepultou o discurso da antropologia social religiosa.
Em Jerusalém não foram encontrados sequer vestígios das grandiosas construções que segundo o Livro a transformaram no seculo X, a época dourada de David e Salomão, na cidade monumental do «povo de Deus» que deslumbrava quantos a conheceram. Nem palácios nem muralhas, nem cerâmica de qualidade.
O desenvolvimento da tecnologia do carbono 14 permitiu uma conclusão. Os grandes edifícios da região Norte não foram construídos na época de Salomão, mas no período do reino de Israel.
«Não existe na realidade nenhum vestígio - escreve Shlomo Sand - da existência desse rei lendário cuja riqueza é descrita pela Bíblia em termos que fazem dele quase o equivalente dos poderosos reis da Babilonia e da Pérsia». «Se uma entidade política existiu na Judeia do seculo X antes da Nossa Era, acrescenta o historiador, somente poderia ser uma microrealeza tribal e Jerusalém apenas uma pequena cidade fortificada».
É também significativo que nenhum documento egípcio refira a «conquista» pelos judeus de Canaã, território que então pertencia ao faraó.

O SILENCIO SOBRE AS CONVERSÕES

A historiografia oficial israelense, ao erigir em dogma a pureza da raça, atribui a sucessivas diásporas a formação das comunidades judaicas em dezenas de países.
A Declaração de Independência de Israel afirma que, obrigados ao exilio, os judeus esforçaram-se ao longo dos seculos por regressar ao país dos seus antepassados,
Trata-se de uma mentira que falsifica grosseiramente a História.
A grande diáspora é ficcional, como as demais. Apos a destruição de Jerusalém e a construção de Aelia Capitolina somente uma pequena minoria da população foi expulsa. A esmagadora maioria permaneceu no país.
Qual a origem então dos antepassados de uns 12 milhões de judeus hoje existentes fora de Israel?
Na resposta a essa pergunta, o livro de Shlomo Sand destrói simultaneamente o mito da pureza da raça, isto é da etnicidade judaica.
Uma abundante documentação reunida por historiadores de prestígio mundial revela que nos primeiros séculos na Nossa Era houve maciças conversões ao judaísmo na Europa, na Asia e na Africa.
Três delas foram particularmente importantes e incomodam os teólogos israelenses.
O Alcorão esclarece que Maomé encontrou em Medina, na fuga de Meca, grandes tribos judaicas com as quais entrou em conflito, acabando por expulsá-las. Mas não esclarece que no extremo Sul da Península Arábica, no atual Iémen, o reino de Hymar adotou o judaísmo como religião oficial. Cabe dizer que chegou para ficar. No seculo VII o Islão implantou-se na região, mas, transcorridos treze seculos, quando se formou o Estado de Israel, dezenas de milhares de iemenitas falavam o árabe, mas continuavam a professar a religião judaica. A maioria emigrou para Israel onde, aliás, é discriminada.
No Imperio Romano, o judaísmo também criou raízes, mesmo na Itália. O tema mereceu a atenção do historiador Díon Cassius e do poeta Juvenal.
Na Cirenaica, a revolta dos judeus da cidade de Cirene exigiu a mobilização de várias legiões para a combater.
Mas foi sobretudo no extremo ocidental da África que houve conversões em massa à religião rabínica. Uma parcela ponderável das populações berberes aderiu ao judaísmo e a elas se deve a sua introdução no Al Andalus.
Foram esses magrebinos que difundiram na Península o judaísmo, os pioneiros dos sefarditas que, apos a expulsão de Espanha e Portugal, se exilaram em diferentes países europeus, na Africa muçulmana e na Turquia.
Mais importante pelas suas consequências foi a conversão ao judaísmo dos Khazars, um povo nómada turcófono, aparentado com os hunos, que, vindo do Altai, se fixou no seculo IV nas estepes do baixo Volga.
Os Khazars, que toleravam bem o cristianismo, construíram um poderoso estado judaico, aliado de Bizâncio nas lutas do Império Romano do Oriente contra os Persas Sassânidas.
Esse esquecido império medieval ocupava uma área enorme, do Volga à Crimeia e do Don ao atual Uzbequistão. Desapareceu da Historia no seculo XIII quando os Mongóis invadiram a Europa, destruindo tudo por onde passavam. Milhares de Khazars, fugindo das Hordas de Batu Khan, dispersaram-se pela Europa Oriental. A sua principal herança cultural foi inesperada. Grandes historiadores medievalistas como Renan e Marc Bloch identificam nos Kahzars os antepassados dos asquenazes cujas comunidades na Polonia, na Rússia e na Roménia viriam a desempenhar um papel fulcral na colonização judaica da Palestina.

UM ESTADO NEOFASCISTA

Segundo Nathan Birbaum,o intelectual judeu que inventou em 1891 o conceito de sionismo, é a biologia e não a língua e a cultura quem explica a formação das nações. Para ele, a raça é tudo. E o povo judeu teria sido quase o único a preservar a pureza do sangue através de milénios. Morreu sem compreender que essa tese racista, a prevalecer, apagaria o mito do povo sagrado eleito por Deus.
Porque os judeus são um povo filho de uma cadeia de mestiçagens. O que lhes confere uma identidade própria é uma cultura e a fidelidade a uma tradição religiosa enraizada na falsificação da Historia.
Nos passaportes do Estado Judaico de Israel não é aceite a na
cionalidade israelense. Os cidadãos de pleno direito escrevem «judeu». Os palestinos devem escrever «árabe», nacionalidade inexistente.
Ser cristão, budista, mazdeísta, muçulmano, ou hindu resulta de uma opção religiosa, não é nacionalidade. O judaísmo também não é uma nacionalidade.
Em Israel não há casamento civil. Para os judeus, é obrigatório o casamento religioso, mesmo que sejam ateus.
Essa aberração é inseparável de muitas outras num Estado confessional, etnocracia liberal construída sobre mitos, um Estado que trocou o yiddish, falado pelos pioneiros do «regresso a Terra Santa», pelo sagrado hebraico dos rabinos, desconhecido do povo da Judeia que se expressava em aramaico, a língua em que a Bíblia foi redigida na Babilónia e não em Jerusalém.
O «Estado do Povo Judeu» assume-se como democrático. Mas a realidade nega a lei fundamental aprovada pelo Knesset. Não pode ser democrático um Estado que trata como párias de novo tipo 20 % da população do país, um Estado nascido de monstruoso genocídio em terra alheia, um Estado cuja prática apresenta matizes neofascistas.
O livro de Shlalom Sand sobre a invenção do Povo Judeu é, além de um lúcido ensaio histórico, um ato de coragem. Aconselho a sua leitura a todos aqueles para quem o traçado da fronteira da opção de esquerda passa hoje pela solidariedade com o povo mártir da Palestina e a condenação do sionismo.
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Vila Nova de Gaia, 31 de Dezembro de 2012~
*Shlomo Sand, «Comment fut inventé le peuple juif» Flammarion, Paris 2010

domingo, 30 de dezembro de 2012

A extinta União Soviética completa 90 anos. Tal país, qual arte?


Nicolau II em 1898: um país de grande literatura, mas em convulsão

Milton Ribeiro no SUL21

A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores — Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos, nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.
No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa. Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de dezembro de 1922.
Os trabalhadores foram recebidos pela artilharia, sem diálogo

Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano, um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do exército.
Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia, que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando início à Revolução Russa.
Lênin trabalhando no Kremlin, em 1918

A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia, acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação, realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).
Canibais com suas vítimas, na província de Samara, em 1921.

O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar, em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5 milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio. (Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).
Vitorioso, Lênin criou o NEP, um plano econômico que visava reerguer a produtividade nacional e normalizar a economia. Em 1922, diversas repúblicas asiáticas e europeias agregaram-se à Rússia, originando a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Mortos de fome no Volga

Não era, evidentemente, o ambiente ideal para a criação de um estado democrático aos moldes da eterna receita dos EUA. O país vinha de uma guerra civil, tinha oposição interna e externa, havia outros regimes fortes quilômetros depois das fronteiras, um histórico recente de conflitos, grande parte da população era saudosa de seu paizinho (o czar) e, fundamental e principalmente, não tinha nenhuma tradição democrática. Aliás, não tem até hoje, mesmo sob o governo eleito de Putin.
Depois desta época, a história é mais conhecida. Lênin morreu em 1924 e seu lugar foi ocupado por Stálin de 1927 a 1953. Com mão de ferro e utilizando-se dos gulags e de expurgos a fim de aniquilar seus opositores dentro e fora do Partido Comunista, Stálin fez avançar o país na direção da industrialização e do desenvolvimento. Antes dos anos 30, os artistas russos que não eram contra-revolucionários gozaram de relativa liberdade. Apesar dos frequentes embates com a burocracia, Vladimir Maiakovskie seu futurismo deram digna sequência à tradição russa. Maiakovski suicidou-se em 1930, mas o fato não parece ter relação coma política ou a censura. Desta forma, ele não conheceu Jdanov.
Maiakovski é autor de versos como “Come ananás / mastiga perdiz / teu dia está próximo, burguês”.

Nos anos 30, os artistas e escritores russos depararam-se com um gênero de censura inteiramente diferente do que era conhecido até ali. Stálin, apesar da imagem que foi criada no Ocidente, era um fino apreciador da música erudita e muitas vezes dava palpites estéticos diretamente a compositores como Shostakovich, Prokofiev e Khachaturian.
Em seu governo surgiu Andrei Jdanov, que tornou-se dirigente do PCUS em 1934 após o expurgo (assassinato) de Kírov. Jdanov foi o criador do Realismo Socialista nas artes. Na verdade, o Realismo Socialista tinha parâmetros políticos e estéticos inapreensíveis. Seus critérios eram metade artísticos, metade geopolíticos. A definição do Realismo Socialista era algo apenas claro na arquitetura. O restante escapava aos autores do país, que tinham sempre dificuldades de se adequarem a ele.
Soldados hasteiam a bandeira soviética sobre o Reichstag: esta é a célebre fotografia de Yevgeny Khaldei, tirada em 2 de maio de 1945. A foto mostra soldados soviéticos que levantam a bandeira da União Soviética sobre o prédio do Reichstag alemão após a Batalha de Berlim.

Aparentemente, o jdanovismo começou com a ópera de Shostakovich Lady Macbeth de Mtsensk, baseada numa novela de Leskov. Stálin, sempre criativo com as palavras, qualificou-a de pornofonia, e então os artistas descobriram que sexo era algo a evitar. As regras do que seria ou não censurado dependiam muito da circunstância política e das posturas de cada artista. Nem a estrondosa e heroica vitória na Segunda Guerra Mundial afrouxou a censura.
Jdanov: um censor sem manual de uso

Serguei Eisenstein foi o cineasta que criou obras-primas como A Greve, O Encouraçado Potemkin, Que Viva México! (inacabado) e Aleksandr Nevski. Assim como o jovem Shostakovich, era um dos meninos de ouro do PCUS. Porém, após o extraordinário sucesso do Potemkin, o cineasta foi contratado pela MGM norte-americana. Quando voltou, o partido e a imprensa não perdoaram sua aventura capitalista. Sinal de que não se podia viajar para produzir fora da URSS.
Viajante e cosmopolita era Igor Stravinsky, que já estava na França desde os anos 10. Ele apenas voltou ao país para curtas visitas, sabedor dos problemas que teria para produzir na URSS. Quem retirou-se do país em 1919 para nunca mais voltar foi Vladimir Nabokov, escritor nascido no seio de uma família da antiga aristocracia. Mais fiel às origens foi Serguei Prokofiev, nascido em 1891. Em 1918, vendo que o ambiente não era o melhor para um compositor experimental, foi morar nos EUA. Poucos anos depois, passou à Suíça e finalizou sua aproximação da URSS em 1935. Em quase parceria com Eisenstein, fez Alexandr Nevski, filme que talvez seja um dos mais felizes casamentos entre imagem e música. Morreu em 1953.
Bulgákov: impedido de sair, mas recebendo telefonemas do chefe

O escritor Mikhail Bulgákov sofreu muito mais. Adversário do regime, chegou a alistar-se no Exército Branco. Finalizada a Guerra Civil, Stálin proibiu-o de emigrar ou de visitar seus irmãos em Paris. Bulgákov nunca apoiou o regime e o ridicularizou em seus trabalhos. Por essa razão, muitos deles ficaram inéditos por décadas. Em 1930, escreve uma carta a Stálin pedindo permissão para emigrar, já que a União Soviética lhe oferecia oportunidades. Como resposta, recebeu uma ligação do próprio Stálin, negando seu pedido e oferecendo-lhe trabalho no teatro. Stálin não costumava mandar recados. A obra-prima de Bulgákov, o monumental romance O Mestre e Margarida, escrito entre 1928 e 1940, foi publicado pela primeira vez apenas em 1966.
Shostakovich: sua biografia já resultou e ainda resultará em muitos livros

O imenso compositor Dmitri Shostakovich (1906-1975) sofreu ainda mais. Como qualquer autor de obras sinfônicas, dependia de orquestras e teatros; ou seja, do estado. Sua vida foi infernal: herói do regime e compositor nacional até 1934, caiu em desgraça pela citada ópera baseada em Leskov. Foi recuperado durante a Segunda Guerra Mundial para cair novamente em desgraça após Stálin dar-se conta — com toda a razão — de que sua Nona Sinfonia e outras composições eram notáveis e imortais peças do mais puro sarcasmo… ao stalinismo. Shostakovich considerava-se um sincero comunista e, mesmo quando não se tratava de encomendas, produzia peças em homenagem à Revolução Russa. Apesar de genial, nunca entendeu os critérios do Realismo Socialista.
Sob a vaga acusação de “excessivo subjetivismo”, o poeta e romancista Boris Pasternak passou a ter dificuldades em publicar seus livros nos anos 30. Sua situação é curiosa: na Rússia, é mais conhecido como poeta do que romancista, em virtude de o livro Doutor Jivagoter sido censurado na antiga União Soviética. O personagem principal do romance é, justamente, um poeta que tem problemas com as autoridades soviéticas, embora simpatizante da causa. Em 1958, Pasternak recebeu o Nobel de Literatura, mas não foi autorizado a recebê-lo.
O duplo equívoco Soljenítsin: de dissidente admirado no Ocidente a antissemita nos EUA

Alexander Soljenítsin foi um ferrenho adversário do PCUS. Seus livros foram absolutamente proibidos, mas circulavam através do samizdat. O samizdatera uma ação coletiva na qual indivíduos e grupos de pessoas copiavam e distribuíam clandestinamente livros e outros bens culturais proibidos pelo governo. Soljenítsin escreveu extensa obra, toda ela antissoviética e de pouco valor artístico. Quando foi expulso do país, em 1974, soube-se de suas ideias políticas, que propunham um estado religioso. O golpe fatal em sua obra veio de quem mais o apoiara quando estava na URSS, os EUA: ao escrever sobre o absoluto protagonismo dos judeus russos no Partido Comunista e na polícia secreta soviética, foi tachado de antissemita e desmoralizado no exílio. Morreu em Moscou.
Tarkovski: todos os filmes que realizou na União Soviética tiveram rígido controle da censura

Desde seu primeiro longa metragem — o estupendo Andrei Rublev — , o cineasta Andrei Tarkovski teve problemas com a burocracia. O filme, de 1966, foi apresentado no Festival de Cannes de 1969, fora de competição, e teve sua estreia na União Soviética somente em 1971, com cortes. Todos os seus trabalhos subsequentes, apesar de respeitadíssimos, foram prejudicados pela censura. Profundamente ressentido com o controle exercido sobre o seu trabalho, Tarkovski decidiu sair da URSS em 1983. Além de seus filmes sempre excelentes, Tarkovski deixou-nos o livro Esculpir o Tempo, obra essencial a todos os amantes do cinema.
Ainda temos outros grandes autores que comprovam a continuidade da tradição russa mesmo sob a censura. O que dizer da poetisa Anna Akhmátova e de escritores como Isaac Babel e Máximo Gorki, que tornaram-se inimigos pelo fato do primeiro combater e o segundo apoiar o governo da URSS? Melhor finalizar mostrando que, na atual Rússia de Putin, pouco mudou, como mostra o irônico e triste filme russo Minha felicidade. Mais provas? O fato da classe artística russa ter silenciado sobre a decretação de prisão do grupo feminino Pussy Riot. Não gostavam das meninas? Não, nada disso, é que as maiores estrelas do país tentam não se desentender com o presidente Vladimir Putin para não pôr em risco sua principal fonte de renda: os shows particulares para os super-ricos, que pagam muito bem. Ou seja, a censura tem várias formas: aqui, por exemplo, temos a censura ao Pussy Riot e a autocensura dos colegas.
As Pussy Riot: prisão por dois anos após protestarem contra Putin e a Igreja

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

2012: acirram-se os conflitos, face a uma era perdida para os direitos sociais e trabalhistas

Escrito por Valéria Nader, da Redação - Colaborou Gabriel Brito   


Mensalão e eleição serão, inegavelmente, marcas registradas do ano de 2012. Daquelas que vêm primeiro à mente ou aparecem de maneira mais imediata ao senso comum. O primeiro, no entanto, passado o momento de arrebatamento inicial, repleto de rompantes e querelas políticas, ficará para a história como mais do mesmo da política nacional, com a sua equalização por baixo a partir do vale-tudo institucional.  E as últimas eleições municipais tampouco serão capazes de se registrarem mais qualificadamente na memória coletiva, vez que, no geral, não chegaram a modificar de modo substancial a atual composição de forças dominantes.

Na economia mundial, a desaceleração voltou a mostrar força retumbante em 2012, mais notadamente no continente europeu, às voltas com as imposições barbarizantes da chamada Troika. Um processo que, ressalte-se, já vem se delineando bem antes da explosão da crise financeira internacional de 2008, e que não chega a ser surpreendente para quem acompanha o desenrolar da vertente econômica dominante – norteada pela satisfação dos interesses do capital financeiro e das grandes corporações internacionais.

Se o Brasil pôde, por um bom tempo, passar relativamente incólume à degringolada do capitalismo mundial, em especial em sua vertente neoliberal, não foi bem assim em 2012. Estaria aqui uma das novidades do ano que finda? Sim, mas somente para aqueles que têm carregado a imagem do Brasil como uma das ‘meninas dos olhos do capital financeiro’ e que se iludem com a noção de que o país ascendeu socialmente, agora que a classe média comporia uma boa parte da população. Aos olhos de quem se atenta para as frágeis bases em que está assentado o modelo econômico interno, fortemente calcado no consumo de supérfluos, no endividamento familiar e, portanto, em uma expansão insustentável do crédito, não há como não antever que, cedo ou tarde, a barbárie vai se instalar em solo pátrio.

Movimentações e protestos mundiais em reação à forte crise externa e, especialmente, às medidas fiscais restritivas e pauperizantes que vêm sendo impostas têm se alastrado por vários países. E no Brasil, não foi diferente. É certo que, neste ano, houve um forte recrudescimento da reação popular aos atropelos dos direitos das populações urbanas vulneráveis e também às agressões aos povos originários. Os movimentos sindicais mais organizados também irromperam na arena política exigindo, dentre outros, a recomposição de rendimentos há longos anos defasados, em função da negligência dos governos com os setores e o funcionalismo público.

Toda esta movimentação é, sem dúvida, indicativa da agudização da percepção das mazelas e contradições no seio da sociedade, e de que possam começar a se mover alguns dos arraigados e retrógrados alicerces sociais. Trata-se, de todo modo, de uma movimentação ainda incipiente, carente de amplitude e organicidade. E tão ou mais essencial que este caráter incipiente, e a ele associada, esta reação tem sido respondida a partir da lógica vigente em nossa economia e sociedade, qual seja, a lógica de governos submissos aos interesses econômicos e financeiros. A repressão e a violência policial têm aparecido, assim, notoriamente como a resposta mais imediata aos grupos que se organizam na defesa de seus interesses.

Com esta visão em mente, o sociólogo do Trabalho e professor do departamento de Sociologia da USP, Ruy Braga, é o nosso entrevistado especial neste final de ano. Seus estudos, assim como seu mais recente livro, ‘A política do Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista, são emblemáticos em meio a este cenário, visto lançarem sobre ele um profundo e sensível olhar.

Um dos destacados registros de seu último livro diz respeito ao processo de concessões reais que embasam aquela que é chamada de ‘hegemonia lulista’, basicamente calcada em um consentimento passivo das bases sociais e em um consentimento ativo por parte das direções sindicais. Neste sentido, o sociólogo ressalta que “as condições de vida e inserção da classe trabalhadora nas cidades e locais de trabalho são muito precárias. A despeito do que ocorreu no mercado de consumo, por conta da relativa desconcentração de renda, as condições de vida são muito limitadas, o que não tem mudado significativamente. Em alguns casos tem piorado, e muito. Portanto, temos um aumento de consumo e, ao mesmo tempo, condições de vida e trabalho muito degradantes”.

Leia a seguir a entrevista completa.

Correio da Cidadania: A ideia do ‘precariado’ é um dos temas de análise de seu último livro ‘A política do Precariado’ – do populismo à hegemonia lulista. O que você destacaria como essencial na apreensão deste conceito e o que o motivou a desenvolvê-lo?

Ruy Braga: O conceito sociológico de precariado já vem sendo utilizado por alguns sociólogos de forma bastante intensa na Europa, em especial na França e Inglaterra, a fim de se pensar a formação daquilo que eles próprios denominam uma classe social de novo tipo. E o que seria uma classe social de novo tipo? Seria aquele conjunto de indivíduos progressivamente expulsos da proteção do Estado de bem estar social, tendo em vista o avanço do neoliberalismo e o aprofundamento da crise econômica.

Significa que, com base nas políticas de ajuste, em especial as chamadas e debatidas políticas de austeridade impostas pela troika (mas, antes disso, com base nas políticas de ajuste que viabilizaram a criação da União Europeia como unidade econômica, a implantação do euro, o Tratado de Maastricht e tudo o que envolvia o contexto da expansão do neoliberalismo), houve uma diminuição da chamada proteção social, ou da amplitude de aplicação dos direitos sociais na Europa.

A flexibilização da contratação de trabalhadores – que em Portugal se dá via contratos livres, que são aqueles feitos via Pessoa Jurídica (PJ), de prestação de serviços – acaba produzindo uma diminuição muito grande do impacto da proteção trabalhista, em especial nos setores mais jovens dos trabalhadores. É a ampliação daquela franja desprotegida do mercado de trabalho, que cresceu nos anos 90 e se tornou muito vistosa e saliente agora, por conta do aprofundamento da crise econômica europeia. De modo que se identifica essa nova classe social, formada pelos indivíduos que sofrem a diminuição da proteção social na Europa.

E quanto à motivação para este estudo, havia uma inquietação da minha parte com relação a tal diagnóstico. Porque, olhando as coisas de uma perspectiva brasileira ou mesmo norte-americana, vemos que, a rigor, a insegurança é a regra, sempre foi assim. No Brasil é regra historicamente estabelecida, através da insegurança do mercado e dos trabalhadores. Eu olhava para aquela discussão e percebia problemas, que, diga-se de passagem, têm a ver basicamente com certa sobreavaliação do papel histórico do chamado compromisso socialdemocrata do pós-Segunda Guerra. Este compromisso foi de fato muito eficiente pra proteger aquela fração branca, masculina, nacional, sindicalizada e adulta da classe trabalhadora. Mas, evidentemente, não foi tão eficiente assim pra proteger a parcela feminina, jovem, imigrante, não qualificada e não sindicalizada – mesmo na classe trabalhadora européia, durante o auge do fordismo. O fordismo socialdemocrata também sempre teve seus descontentes. Mas isso não era muito discutido, não era tão exuberante, já que se tratava de trabalhadores periféricos.

A partir de certo momento, essa franja periférica cresceu muito, e daí vem o precariado. O precariado é nada mais nada menos que a boa e velha superpopulação relativa da qual já falava Marx, ou seja, aquela fração da classe trabalhadora composta majoritariamente por aqueles que entram e saem muito rápido do mercado por falta de qualificação - aquela parcela rural ou da informalidade, setores formados por jovens no primeiro emprego e aqueles que têm ocupações tão degradantes que os obrigam a produzir de forma anormal, ou seja, vender sua força de trabalho abaixo de seu valor. São todos esses fatores somados.

O que tentei fazer foi uma leitura construtivista, do ponto de vista da sociologia marxista, dessa parte da classe trabalhadora que podemos chamar de proletariado precarizado. Procurei separar setores mais qualificados da classe trabalhadora daqueles setores pauperizados (ou lumpenizados) e populares, e concentrar a análise neste proletariado precarizado, formado pelo conjunto de frações da classe trabalhadora. A isso chamei de precariado, aquela classe trabalhadora permanentemente pressionada pelo aumento da atual exploração capitalista e a ameaça de exclusão social.

Correio da Cidadania: Partindo deste olhar, como tem enxergado, de modo geral, o mundo do trabalho no Brasil, especialmente no que diz respeito à condução de políticas e medidas nas áreas trabalhista e sindical nestes dois últimos anos sob o governo de Dilma Rousseff?

Ruy Braga: Eu argumento no livro que o precariado é uma parte fundamental do mundo do trabalho no Brasil. Fundamental especialmente a partir dos anos 90, em função de uma profunda reestruturação produtiva, com integração da economia brasileira à economia internacional, através da liberalização comercial e financeira, mas também pelo fato de que foi a década da multiplicação das formas de contratação, quando tivemos o aprofundamento da precarização. Foi a década do desemprego.

Temos, assim, um manto bastante saliente, notável, do setor precarizado da classe trabalhadora. Viu-se um aumento da informalização, seguido de aumento do desemprego, da exploração, das formas de contrato por tempo determinado, enfim, essas formas não canônicas de contratação - a despeito de a década de 2000 representar certa guinada em algumas tendências, em especial, notavelmente, da informalização, já que esta década foi de maior formalização do trabalho. Apesar disso, o aumento da formalização foi acompanhado do aumento das taxas de volatilidade do trabalho, de flexibilização, da precarização, da terceirização e, consequentemente, do aumento daquele que é o aspecto mais visível da deterioração das condições reais de consumo da força de trabalho, isto é, o aumento dos acidentes e mortes no trabalho.

Percebo que, apesar desse processo de formalização dos anos 2000, temos a reprodução da centralidade de tal precariado no mercado de trabalho brasileiro, que acaba se tornando o principal mecanismo de ajuste anticíclico das empresas, contratando à vontade e consumindo a força de trabalho em condições muito duras. Intensificam turnos e assim têm uma espécie de fórmula de ajuste, com a volatilidade da demanda concentrada especialmente sobre essa fração precarizada do proletariado brasileiro.

Na transição do governo Lula para o governo Dilma, não tivemos grandes novidades do ponto de vista do mercado de trabalho, que continua relativamente estável, a despeito das ameaças de demissão de 2011. Estas ameaças foram contornadas por políticas específicas do governo, principalmente desonerações da folha de alguns setores estratégicos, que consomem muito trabalho, como notoriamente o faz a construção civil. A não ser no contexto da famosa desaceleração econômica, o que evidentemente coloca mais pressão sobre o desemprego e pressiona as empresas a demitirem, não temos percebido um mercado de trabalho muito diferente do que era no governo Lula.

Do ponto de vista sindical, a partir de 2008, percebe-se nitidamente uma elevação do número de greves no Brasil. Tem-se uma retomada da mobilização grevista, que, diga-se de passagem, se acentuou de 2010 para 2011, com um aumento de 27% do número de greves. Algumas delas de abrangência nacional, como a dos bancários e dos Correios. Foram greves longas e com pautas bastante agressivas, exigindo reajustes reais, ganhos e participações, melhorias da condição de trabalho, com forte adesão dos seus trabalhadores. Acredito que esta seja uma tendência para os próximos anos, até porque é uma tendência que vem de 2008.

Portanto, acredito que o futuro aponta para uma retomada da mobilização grevista.

Correio da Cidadania: Ainda neste sentido, um dos registros profundos de seu último livro diz respeito ao processo de concessões reais que embasam aquela que é chamada de ‘hegemonia lulista’, basicamente calcada em um consentimento passivo das bases sociais e em um consentimento ativo por parte das direções sindicais. Nesta linha de raciocínio, o que teria a dizer quanto ao atual patamar das lutas trabalhistas e sindicais e a direção para a qual têm apontado?

Ruy Braga: Eu costumo dizer que o precariado se encontra relativamente satisfeito com o modo de regulação lulista, isto é, com as políticas públicas. Mas, quando nota as relações de trabalho, percebe os limites do modelo de desenvolvimento pilotado por essa burocracia lulista e setores oriundos dos sindicatos.

O argumento é simples: o precariado se sente relativamente integrado pelas políticas públicas (Bolsa-família, aumento do salário mínimo, ampliação do sistema federal de ensino superior, políticas de ampliação do crédito consignado), através de um progresso material relativo e a desconcentração da renda. O precariado percebe tais questões.

Mas, ao mesmo tempo, se dá conta de que, a despeito de tudo isso, aumenta também o endividamento das famílias trabalhadoras. Apesar de existir emprego, é de baixa qualidade; apesar da formalização, ganha-se muito mal. Pra se ter uma ideia, durante o governo Lula foram criados 2,1 milhões de empregos por ano. Porém, destes, 94% (2 milhões) remuneram até 1,5 salário mínimo, ou seja, até 980, 1000 reais. São muitos empregos, mas remuneram muito mal, porque não se requer uma força de trabalho qualificada e sequer é necessária uma qualificação especial. Absorve-se bastante gente, mas em condições degradantes, com salários ruins.

O precariado percebe esta situação, pois a vive no dia a dia. Assim, desenvolve uma relação ambígua com o conjunto do modelo de desenvolvimento formado pelo modo de regulação e o nível de exploração. Esse é o meu argumento.

Correio da Cidadania: Como analisa o nível de inserção sindical, auto-organização e também leitura da realidade dessa parte mais precarizada de nossa classe trabalhadora?

Ruy Braga: O nível histórico de sindicalização da classe trabalhadora brasileira é baixo, historicamente baixo, em especial em setores privados da economia. Se encontrarmos setores com 10%, 15%, de sindicalização, já pode ser considerado muito elevado. Isso mudou profundamente na última década, quando, com o aumento do emprego formal, aumentou-se também o nível de sindicalização. Porém, ainda tem baixo impacto.

Mas o ponto que considero mais importante da questão diz respeito basicamente ao processo de reorganização sindical. Porque, afinal de contas, com um sindicato integrado à estrutura de governo, pelo fato de ter acontecido uma certa fusão entre sindicalismo e Estado, os trabalhadores se veem inseridos numa relação que é mais ou menos a seguinte: por um lado, não podem colocar muita pressão nos governos, porque são aliados; por outro, têm de satisfazer reivindicações de suas bases, pois o sindicalismo está lá pra isso e quem está no comando pode ser substituído numa eleição interna – deixando de lado, obviamente, a questão do gangsterismo sindical.

No entanto, o fato é que o poder sindical precisa de consentimento das bases, o que tem colocado pressão sobre alguns setores, até mesmo do sindicalismo governista. Isso pôde ser percebido na greve nacional bancária, na greve dos Correios, e em várias questões que dirigiram greves de outros trabalhadores. E mesmo sindicalistas lulistas, governistas, se veem pressionados em suas bases e precisam dar resposta - afinal, representar os interesses das bases é uma questão elementar do sindicalismo.

De todo modo, essa integração sindicatos-Estado coloca uma série de problemas. Se pegarmos os dados de greve, vemos que ela é muito forte no BB e na Caixa. E a negociação tende a ser bem mais favorável aos trabalhadores quando a economia cresce a 4%, 5% ao ano, como ocorreu até 2008, diferente de agora, com um crescimento na casa de 1,5%, 1,6%. Essa diferença se viu entre os governos Lula e Dilma. O governo que espera crescer 1% ou 2% ao ano vai endurecer a negociação, em comparação ao que ocorre quando a economia crescia 6%, 7%. Tal fato tem acrescentado tensões dentro do sindicalismo, o que vem levando a uma relativa reorganização do movimento sindical, com o reaparecimento de algumas centrais descoladas do governismo, como a Conlutas e a Intersindical.

Temos uma reacomodação do sindicalismo brasileiro e uma dinâmica mais tensa no sindicalismo governista.

Correio da Cidadania: Tomando os conflitos sociais de forma mais abrangente, o ano de 2012 marca-se de forma relevante por uma série de confrontos, envolvendo, além dos movimentos grevistas de categorias sindicais, a luta pelos direitos indígenas, movimentações sociais em várias esferas e embates das periferias urbanas pela conquista e/ou reconquista de seus direitos. O que poderia dizer sobre 2012 neste quesito e, principalmente, da forma com que os vários níveis de governo, municipal, estadual e federal, têm enfrentado tantas e legítimas demandas sociais?

Ruy Braga: Os governos estaduais e municipais são um desastre total. Governos que militarizaram o conflito social, colocaram a PM pra reprimir famílias de trabalhadores, como no Pinheirinho, enviaram 400 policiais pra desocupar uma reitoria ocupada por 70 estudantes, entre outras repressões policiais. É desastroso do ponto de vista social. Isso evidentemente vai cobrar seu preço, haja vista que em São Paulo já cobrou, com o governo municipal tendo sido conquistado pela oposição petista. E acho que o mesmo acontecerá no nível estadual, a fatura vai ser cobrada.

Isso porque as condições de vida e inserção da classe trabalhadora nas cidades e locais de trabalho são muito precárias, devemos ressaltar. A despeito do que ocorreu no mercado de consumo, por conta da relativa desconcentração de renda, as condições de vida são muito limitadas, o que não tem mudado significativamente. Em alguns casos tem piorado, e muito.

Portanto, temos um aumento de consumo e, ao mesmo tempo, condições de vida e trabalho muito degradantes. E evidentemente nada será resolvido com PM atirando bala de borracha em família de trabalhador. Trata-se de uma forma absolutamente desastrosa, trágica e equivocada de se lidar com a questão social.

O governo federal é um pouco diferente no quesito, mas também não vejo avanços realmente significativos nessa esfera de poder. Não existe reforma agrária séria, por exemplo. Pelo contrário, o governo federal legalizou terras griladas, esqueceu demandas históricas por terra e, através do Ministério das Cidades, fez muito pouco em termos de legalização de terras ocupadas.

Assim, não sou muito otimista quanto à relação entre governos e movimentos, em questões como moradia e luta pela terra.

Correio da Cidadania: 2012 foi também um ano de eleições municipais. O que os resultados dos pleitos municipais de 2012 enunciaram, a seu ver, quanto ao andamento e composição das forças políticas de nosso país?

Ruy Braga: Acredito que houve uma vitória do governismo, consolidando a hegemonia lulista nesse campo da sociedade, na versão micro, mais próxima do cidadão. Mas temos alguns movimentos contraditórios. Eu chamaria a atenção para que os setores populares, plebeus, mais empobrecidos, de fato procuram alternativas. Aqui em São Paulo houve a visibilidade estrondosa da candidatura Russomanno, especialmente em regiões periféricas, o que mostra certa disposição da parcela mais popular em buscar alternativas àquelas que são as opções mais tradicionais, representadas no caso por Haddad e Serra. O desempenho eleitoral do PSOL também mostra um pouco disso, uma aproximação de setores mais plebeus a opções mais descoladas do establishment, inclusive em São Paulo. Os eleitores do Russomanno mantiveram a postura de procurar alguém mais permeável a suas demandas, de modo que repassaram seus votos para o Haddad no segundo turno.

Estabeleceu-se uma hegemonia lulista, mas ela se reproduz em terreno não tão firme quanto se acredita.

Correio da Cidadania: Inescapável é a constatação de que 2012 se encerra também marcado pelo chamado mensalão. O que este episódio, com toda visibilidade e repercussão de que foi alvo, te diz a respeito de nosso contexto político?

Ruy Braga: O mensalão representa um pouco a constatação de que a política está muito igual, ou seja, o vale-tudo político-institucional absorve as mais diferentes forças políticas e sociais e equaliza tudo por baixo. O mesmo esquema de compra de votos utilizado pelo governo FHC foi também usado pelo PT, e com os mesmos operadores. Com isso, temos um nivelamento por baixo da política.

O grande problema é que a população não vê muitas alternativas, até o momento, a essa polaridade. Todo mundo sabe que é mais ou menos tudo farinha do mesmo saco. Mas o PT se destaca mais pelas políticas sociais e públicas, com uma interlocução maior com o movimento sindical e popular, o que evidentemente o coloca muito à frente do PSDB nesse quesito. O PT consegue representar e empunhar uma agenda (a despeito de todos os seus limites) da diminuição da desigualdade social. O PSDB não consegue fazer isso porque é tradicionalmente o partido da desigualdade.

De todo modo, prevalece a noção do vale-tudo eleitoral, que equaliza todo mundo por baixo - o cenário fica sem muita diferença. Assim, entre as opções existentes, a população se atrai mais para o lado de quem se apresenta com uma agenda de diminuir um pouco a desigualdade.

Correio da Cidadania: Pensando um pouco em termos mundiais, estamos diante do que se pode chamar de repique da crise de 2008, com a evidente e atual desaceleração da economia mundial, impactando a Europa de modo avassalador, e já reverberando notavelmente nos países em desenvolvimento, entre eles, o Brasil. Como vê esse cenário e o que pensa da conduta do governo Dilma na condução da política econômica interna, essencialmente no que diz respeito ao caráter das medidas que vêm sendo tomadas para evitar uma desaceleração maior da economia?
Ruy Braga: A crise mundial é muito intensa e o modelo de desenvolvimento brasileiro durante os anos 2000 foi se deslocando aceleradamente para aqueles que hoje são os principais motores da acumulação de capital no país: bancos, mineração, agronegócio, petróleo, siderurgia, construção civil... Muitos deles dependem notoriamente do mercado internacional. Agronegócio e mineração, dois motores importantes, dependem efetivamente de encomendas externas.

Com uma recessão mundial estabelecida, a economia brasileira é obviamente atingida. O governo tentou por um tempo aplicar medidas anticíclicas apoiadas no crédito, o que teve seu fôlego, mas, a partir de certo momento, começou a claudicar, pois as pessoas começaram a se intimidar e ver que não iriam conseguir pagar suas dívidas. O governo modificou, portanto, tal agenda, não radicalmente, mas acrescentando os investimentos em infraestrutura. Nos últimos quatro, cinco anos, a partir de 2008, isso se intensificou, com anúncios de obras de infraestrutura, integração da malha viária, qualificação dos portos, construção de barragens, concessão de aeroportos...

São medidas importantes, mas não têm capacidade de, por si mesmas, equacionarem o grande problema de uma economia com as características da brasileira, isto é, o investimento capitalista. O principal investidor é o próprio governo, através do BNDES. Fora ele, o investimento privado é muito baixo. O investidor privado efetivamente não se arrisca, até porque não precisa, além de buscar remunerações bastante generosas. Agora que a taxa de juros tem caído, o investidor se sente mais obrigado a investir o dinheiro, mas continua covarde. O que, então, acontece hoje? O governo não consegue seduzir o investidor privado, que por sua vez não é capaz de equacionar sozinho o problema do investimento no país.

A realidade é que crescemos pouco. Não estamos em recessão, mas vivemos um momento de flagrante desaceleração econômica, no qual praticamente só se vê um único jogador em campo, o governo. E ele não é capaz de resolver sozinho o problema.

Qual a solução? Ou se nacionalizam os grandes meios de produção, com a estatização dos grandes intermediários financeiros ou... Vai ser difícil.

Correio da Cidadania: Você possui uma visão esperançosa das movimentações sociais que vêm rondando o mundo, desde a primavera árabe até a grande quantidade de movimentos ‘Occupy’ que têm varrido diversos países, passando por alguns protestos massivos na Europa?

Ruy Braga: Eu costumo citar Antonio Gramsci, sendo muito pessimista na razão e otimista na vontade. Sinceramente, não coloco muita esperança nos movimentos ‘Occupy’, muito espontaneístas e pouco orgânicos. A primavera árabe é um processo diferente, no qual a palavra final não foi dada ainda, mas que ocorre num contexto muito contraditório, com várias forças internacionais assumindo protagonismo a partir de dado momento. Na Europa, sou mais otimista com as movimentações dos trabalhadores e da juventude, mas vejo grandes barreiras nacionais.

Assim, é necessário internacionalizar tais lutas, especialmente na Europa, onde há mais base para tal. Mas não tem ocorrido este contexto. Os trabalhadores gregos lutam na Grécia, os trabalhadores espanhóis lutam na Espanha... Não há até, o momento pelo menos, o desenvolvimento de um internacionalismo mais agudo e radical. Minha esperança é de que não fique assim, que haja uma internacionalização das lutas, em escala regional no caso da Europa, e em escala mundial, acrescentando-se EUA, países árabes, latinos...

Correio da Cidadania: Finalmente, 2012 acaba sob forte desaceleração econômica e 2014 é ano de Copa e eleições presidenciais. O que você espera pra 2013, no sentido de medidas a serem tomadas pelo governo para sanear as contas públicas e promover crescimento, visto o reduzido espaço que terá para empreender tais tarefas no ano seguinte?

Ruy Braga: O governo ainda tem mecanismos, bala na agulha pra gastar. O BNDES é um dos maiores bancos do mundo, o governo tributa muito fortemente, tem condições de reforçar mecanismos anticíclicos...
Quanto aos direitos trabalhistas, a pressão por flexibilização é grande, haja vista as propostas que têm pipocado, como o Acordo Coletivo Especial (onde deve prevalecer o negociado sobre o legislado), pressões do empresariado por desonerações em todos os setores, com impacto sobre a previdência, pressões pela diminuição do “custo Brasil”, flexibilização em contratações...

É o que eu digo, o mercado de trabalho brasileiro é excessivamente flexível, não é pouco, longe disso. O trabalhador precisa de mais direitos, não menos. Só que não vejo muita decisão do governo de atacar tal problema, pelo contrário. Se for aprovado o acordo especial, acredito que o princípio do acordado sobre o legislado, que vigoraria a partir de então, vai diminuir ou eliminar direitos para a grande parcela dos trabalhadores que não são representados nos sindicatos fortes.

Ao mesmo tempo, não vejo, como disse, disposição do governo em ampliar direitos trabalhistas. Afinal, passamos todo o período de crescimento econômico nos anos Lula sem ver nenhum novo direito acrescentado. Acho que há um único ponto que foge à regra histórica de não criação de novos direitos, que é a legislação sobre a empregada doméstica, a ser discutida e votada. Esta talvez seja a única iniciativa do governo que possa eventualmente ser alinhada aos ganhos de direitos. Fora isso, do ponto de vista dos direitos sociais e trabalhistas, tivemos uma era perdida.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Michael Löwy: "Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana"

Nesta entrevista à Fundação Oswaldo Cruz, no Brasil, o investigador do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) diz que a dinâmica de movimentos como o dos “Indignados” é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. 
 
 
As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais.

Michael Löwy esteve no Brasil no final de 2012 para lançar o livro ‘A teoria da revolução no jovem Marx', que foi publicado em 1970 na França e só agora tem uma edição em português.
Durante a sua estada no país, participou de muitos eventos e falou sobre temas diversos, como literatura e a questão ecológica. Nada que surpreenda no perfil de um pesquisador que circula com desenvoltura entre o estudo dos clássicos e a análise da conjuntura atual, e isso sem abrir mão da militância política de esquerda. Nesta entrevista, ele lança mão dos conceitos que aprendeu com os clássicos – principalmente Marx e Walter Benjamin – para discutir a crise que o capitalismo atravessa e os movimentos reivindicatórios que têm surgido em diferentes cantos do mundo. Além disso, explica os princípios e limitações da ideia de ‘ecossocialismo', com a propriedade de ter sido um dos autores do Manifesto que defende essa bandeira.
Brasileiro residente na França desde 1969, Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) e responsável por um seminário na Écoles de Hautes Études en Sciences Sociales. Só em português, é autor de mais de 20 livros.
 
Como a teoria da revolução do jovem Marx, de que trata o seu livro, nos ajuda a entender o momento atual, com mobilizações de indignados no Estado espanhol, Grécia e vários outros países da Europa, além de movimentos de ‘ocupação' em vários locais do mundo? Esses são movimentos anticapitalistas?

Os movimentos de ‘Indignados' opõem-se às políticas ditadas pelo capital financeiro, pela oligarquia dos bancos e aplicadas por governos de corte neoliberal, cujo principal objetivo é fazer com que os trabalhadores, os pobres, a juventude, as mulheres, os pensionistas e aposentados – isto é, 99% da população – paguem a conta pela crise do capitalismo. Esta indignação é fundamental. Sem indignação, nada de grande e de significativo ocorre na história humana. A dinâmica destes movimentos é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. É no curso de sua ação coletiva, de sua prática subversiva, que estes movimentos poderão tomar um caráter radical e emancipador. É o que explicava Marx na sua teoria da revolução, inspirada pela filosofia da práxis.
 
Marx escreveu no século XIX. As revoluções socialistas a que assistimos aconteceram no século 20. O que a realidade trouxe de diferente na forma como se concretizaram e na forma como se entende revolução nos séculos 19, 20 e 21?

As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais. Nenhuma se assemelha às anteriores. A Comuna de Paris (1871) foi um formidável levante da população trabalhadora da grande cidade e a Revolução Russa foi uma convergência explosiva entre proletariado urbano e massas camponesas. Nas demais revoluções do século 20, desde a Mexicana de 1911 até a Cubana de 1959, ou nas revoluções asiáticas (China, Vietname), foram os camponeses o principal sujeito do processo revolucionário. Não podemos prever como serão as revoluções do século 21: sem dúvida, não repetirão as experiências do passado. Por outro lado, existe o que Walter Benjamin chamava de ‘a tradição dos oprimidos': a experiência da Comuna de Paris inspirou a Revolução Russa e é ainda até hoje um exemplo de autoemancipação revolucionária das classes subalternas.
 
Com a crise capitalista de 2008 e o movimento de intervenção dos Estados para salvar a economia dos países, acreditou-se que a era neoliberal havia chegado ao fim. No entanto, tem sido intensificada cada vez mais a destruição dos direitos conquistados com o Estado de Bem-Estar Social, como temos visto acontecer na Europa (França, agora Espanha...). O que isso significa?

A intervenção dos Estados não significou de forma alguma o fim do neoliberalismo. O único objetivo desta intervenção era salvar os bancos, resgatar a dívida e assegurar os interesses dos mercados financeiros. Para este objetivo, foram sacrificadas conquistas de dezenas de anos de lutas dos trabalhadores: direitos sociais, serviços públicos, pensões e aposentadorias, etc. Para a lógica de chumbo do capitalismo neoliberal, tudo isto são ‘despesas inúteis'.
 
Um debate antigo da esquerda é sobre a relação entre revolução e reforma. O contexto do final do século 20 e do início do século 21, com situações como, por exemplo, a vitória eleitoral de partidos de esquerda na América Latina e mesmo em alguns países da Europa recolocam essa questão. Como analisa essa relação hoje?

Rosa Luxemburgo já havia explicado, em seu belo livro ‘Reforma ou Revolução?' (1899), que os marxistas não são contra as reformas; pelo contrário, apoiam qualquer reforma que seja favorável aos interesses dos trabalhadores: salário mínimo, seguro médico, seguro desemprego, por exemplo. Simplesmente, lembrava ela, não podemos chegar ao socialismo pela acumulação gradual de reformas; só uma ação revolucionária, que derruba o muro de pedra do poder político da burguesia, pode iniciar uma transição ao socialismo. O problema da maioria dos governos de centro-esquerda, seja na Europa ou na América Latina, é que as ‘reformas' que aplicam são muitas vezes de corte neoliberal: privatizações, regressões no estatuto dos pensionistas, etc. Tratam-se de variantes do social-liberalismo, que aceitam o quadro económico capitalista mas, contrariamente ao neoliberalismo reacionário, têm algumas preocupações sociais. É o caso dos governos Lula-Dilma no Brasil. Temo que no caso da França (François Hollande, recentemente eleito), nem a isto chegue...
 
Um desafio dessa esquerda que chegou ao poder na América Latina tem sido equacionar a dependência econômica da exploração de recursos naturais (como o petróleo na Venezuela e o gás natural na Bolívia) com a tentativa de superação da lógica capitalista de destruição do meio ambiente. Na sua opinião, essa equação é possível?

Contrariamente aos governos social-liberais, os da Venezuela, Bolívia e Equador têm levado adiante uma verdadeira rutura com o neoliberalismo, enfrentando as oligarquias locais e o imperialismo. Mas dependem, para a sua sobrevivência económica, e para financiar os seus programas sociais, da exploração de energias fósseis – petróleo, gás –, que são os principais responsáveis pelo desastre ecológico que ameaça o futuro da humanidade. É difícil exigir destes governos que deixem de explorar estes recursos naturais, mas eles poderiam utilizar uma parte do rendimento do petróleo para desenvolver energias sustentáveis – o que fazem muito pouco. Uma iniciativa interessante é o projeto ‘Parque Yasuni', do Equador, proposta dos movimentos indígenas e dos ecologistas assumida, após algumas hesitações, pelo governo de Rafael Correa. Trata-se de preservar uma vasta região de florestas tropicais, deixando o petróleo embaixo da terra, mas exigindo, ao mesmo tempo, que os países ricos paguem metade do valor (9 mil milhões de dólares) deste petróleo. Até agora, não houve iniciativas comparáveis na Venezuela ou na Bolívia.
 
A crítica à destruição do meio ambiente como intrínseca ao capitalismo já estava presente na obra de Marx?

Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica parece-me completamente equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, jogar, amar. Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspetiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.
 
O Manifesto Ecossocialista, que o sr. ajudou a escrever em 2001, diz que o capitalismo não é capaz de resolver a crise ecológica que ele produz. Como o sr. analisa as soluções a esse problema que vêm sendo apresentadas pelo capitalismo, como é o caso da economia verde?

A assim chamada ‘economia verde', propagada por governos e instituições internacionais (Banco Mundial, etc), não é outra coisa senão uma economia capitalista de mercado que busca traduzir em termos de lucro e rentabilidade algumas propostas técnicas ‘verdes' bastante limitadas. Claro, tanto melhor se alguma empresa trata de desenvolver a energia eólica ou fotovoltaica, mas isto não trará modificações substanciais se não for acompanhado de drásticas reduções no consumo das energias fósseis. Mas nada disto é possível sem romper com a lógica de competição mercantil e rentabilidade do capital. Outras propostas ‘técnicas' são bem piores: por exemplo, os famigerados ‘biocombustíveis' que, como bem diz Frei Betto, deveriam ser chamados de ‘necrocombustíveis', pois tratam de utilizar os solos férteis para produzir uma pseudogasolina ‘verde', para encher os tanques dos carros – em vez de comida para encher o estômago dos famintos da terra.
 
É possível implementar uma perspetiva como a do ecossocialismo no capitalismo?

O ecossocialismo é anticapitalista por excelência. Como perspetiva, implica a superação do capitalismo, já que se propõe como uma alternativa radical à civilização capitalista/industrial ocidental moderna. Por outro lado, a luta pelo ecossocialismo começa aqui e agora, na convergência entre lutas sociais e ecológicas, no desenvolvimento de ações coletivas em defesa do meio ambiente e dos bens comuns. É através destas experiências de luta, de auto-organizaçâo, que se desenvolverá a consciência socialista e ecológica.
 
A perspectiva ecossocialista pressupõe uma crítica à noção de progresso. Em que consiste essa crítica?

Walter Benjamin insistia, com razão, que o marxismo precisa libertar-se da ideologia burguesa do progresso, que contaminou a cultura de amplos setores da esquerda. Trata-se de uma visão da história como processo linear, de avanços, levando, necessariamente, à democracia, ao socialismo. Estes avanços teriam sua base material no desenvolvimento das forças produtivas, nas conquistas da ciência e da técnica. Em rutura com esta visão – pouco compatível com a história do século 20, de guerras imperialistas, fascismo, massacres, bombas atómicas –, precisamos de uma visão radicalmente distinta do progresso humano, que não se mede pelo PIB [Produto Interno Bruto], pela produtividade ou pela quantidade de mercadorias vendidas e compradas, mas sim pela liberdade humana, pela possibilidade, para os individuos, de realizarem suas potencialidades; uma visão para a qual o progresso não é a quantidade de bens consumidos, mas a qualidade de vida, o tempo livre - para a cultura, o ócio, o desporto, o amor, a democracia - e uma nova relação com a natureza. Para o ecossocialismo, a emancipaçâo humana não é uma ‘lei da história', mas uma possibilidade objetiva.
 
Quais as principais diferenças entre o ecossocialismo e a forma como o socialismo real lidou com os problemas ambientais? E a socialdemocracia, conseguiu construir alternativas a essa lógica destrutiva do capital?

O assim chamado ‘socialismo real' - muito real, mas pouco socialista - que se instalou na URSS sob a ditadura burocrática de Stalin e seus sucessores tratou de imitar o produtivismo capitalista, com resultados ambientais desastrosos, tão negativos quanto os equivalentes no Ocidente. O mesmo vale para os outros países da Europa Oriental e para a China. As intuições ecológicas de Marx foram ignoradas e se levou a cabo uma forma de industrialização forçada, copiando os métodos do capitalismo. A social-democracia é um outro exemplo negativo: nem tentou questionar o sistema capitalista, limitando-se a uma gestão mais ‘social' de seu funcionamento. Mesmo nos países em que governou em aliança com os partidos verdes, a social-democracia não foi capaz de tomar nenhuma medida ecológica radical. O ecossocialismo corresponde ao projeto de um socialismo do século 21, que se distingue dos modelos que fracassaram no curso do século 20. Ele implica uma rutura com o modelo de civilização capitalista e propõe uma visão radicalmente democrática da planificação socialista e ecológica.