quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Nessun Dorma



Maria Clara Lucchetti Bingemer

Algo morreu na vida política nacional e nas aspirações éticas do povo brasileiro. E como luto rima com silêncio, não falarei da absolvição do senador alagoano Renan Calheiros. Prefiro escrever sobre Pavarotti. E tampouco ninguém dorme. E que ninguém durma em nenhum quarto frio como o da princesa Turandot, que ele imortalizou com sua voz abençoada. Ninguém dorme velando e espiando as estrelas, sentindo profundamente a ausência do tenor cujo canto – fazendo mais que jus a seu qualificativo de belo, bel canto – calou-se.

A humanidade está mais pobre sem o canto de Pavarotti rompendo todos os silêncios e enchendo ouvidos e corações. O vozeirão que habitava o corpulento tenor foi silenciado pela morte, última inimiga a ser vencida e que o venceu. Já não fará companhia a José Carreras e Plácido Domingo nas Termas de Caracala o fenomenal tenor italiano, que o mundo inteiro conheceu e amou. Já não interpretará os apaixonados personagens de Rodolfo da Boemia, de Armando da Traviata ou do príncipe Calfà de Turandot.

Pavarotti popularizou a ópera, colocando-a ao alcance do grande público, e expropriou-a do exílio em que meia dúzia de eruditos a mantinha confinada. Forma maior da arte, unindo todas as expressões artísticas – o canto, a dança, o teatro –, a ópera chegou às camadas médias da população mundial trazida solicitamente pela mão e a voz do tenor que hoje choramos. Pavarotti é responsável não apenas pelo gênio com que foi dotado pelo Criador, mas por ter colocado esse dom a serviço da humanidade.

Dotado de excepcional voz e de imponente figura, rosto mediterrâneo emoldurado por soberba barba escura e sorriso cativante, foi o tenor capaz de cantar desde o clássico às variedades, passando pelo canto napolitano. Pavarotti não hesitou, desprezando a fúria dos críticos, em formar duetos com parceiros tão improváveis como Sting, Joe Cocker ou Mariah Carey para defender causas humanitárias e catalisar apoio para vítimas de tragédias ao redor do mundo.

No acertado dizer de Bono Vox, da banda U2, um de seus parceiros, Pavarotti não apenas cantava ópera. Era uma ópera ele mesmo. Grande vulcão, que soltava fogo pela garganta e boca, mas ao mesmo tempo derramava amor pela vida em toda a sua complexidade, soube penetrar ouvidos e corações, fazendo sonhar, desejar, viver, amar.

Por isso, que ninguém durma, obedecendo à ordem da princesa Turandot, que se desespera de desejo de ver revelado o mistério do nome de seu amado. Que ninguém durma nesta noite dos tempos em que o mistério do mundo e o segredo do amor não podem mais ser belamente decifrados e degustados pelos agudos e graves de Luciano Pavarotti.

Que ninguém durma e todos vigiem para que a arte de Pavarotti continue viva. Que ninguém durma e a noite passe, as estrelas mergulhem em inevitável crepúsculo, dando lugar aos tímidos ensaios da aurora que começam a iluminar pálidos contornos das formas primordiais. Que ninguém durma porque há que tomar a tocha que Pavarotti deixou pousada no chão e continuar o vôo em busca da arte e da beleza que não morrem e tornam a vida digna de ser vivida.

Que ninguém durma! O genial tenor que, segundo o Papa Bento XVI em telegrama de condolências à família, “honrou o dom divino da música”, agora canta sem ser interrompido ou jamais silenciado. Aquele que o agraciou com a chama do gênio é, para ele, a aurora da vitória sem crepúsculo. O mistério que o príncipe Calfà, apaixonado pela princesa Turandot, tinha lacrado dentro de si, agora se desvenda plenamente perante os olhos ressuscitados de seu imortal intérprete. O brado do final da ária Nessun Dorma, por ele magistralmente interpretada, tornou-se eterno presente: Vinceró! Vencerei!

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

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