Che (2): Homem e Exemplo | | | |
Pietro Alarcón | |
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Pode-se eleger uma opção política por diversas circunstâncias: pela família, pelos amigos, pela procura, consciente ou inconsciente, daquilo que outorgue sentido à vida, pela atmosfera de solidariedade política e humana que rodeia o entorno em que se desenvolve nossa existência.
As situações mais imprevisíveis e casuais podem-se apresentar, facilitando o passo do mero espectador ao de ator social e o que ao princípio pode ser apenas uma aflição momentânea converte-se em um modo de encarar a vida, uma filosofia que inspira a práxis diária.
A vida de Ernesto Guevara transcorreu na Argentina sendo testemunha de conflitos como o da Guerra Chile-Bolívia pela saída deste último ao oceano, do acompanhamento da sua família aos refugiados da Guerra Civil Espanhola, das denúncias do seu pai em reuniões e eventos políticos da perigosa infiltração do nazismo no seu país.
No entanto, os sucessos mais interessantes que podem ser levados em conta para entender a formação do comandante Che Guevara têm antecedentes nos sucessos da Bolívia, entre 1951 e 1953, e se encontram, de forma mais acentuada, na Guatemala de 1954: “ (...) He nacido en Argentina, he combatido em Cuba y he comenzado a ser revolucionario en Guatemala”, escreve em carta enviada a Guilherme Lorentzein.
Na Bolívia, Guevara assiste ao primeiro grande movimento de massas que o impressionará profundamente: a Revolução de 1952. Nela, o golpe de Estado no país é rejeitado pelos sindicatos operários e mineiros. Uma insurreição popular e armada vence o exército e surge, no bojo do processo, a COB - a Central Sindical dos Trabalhadores da Bolívia – que, convertida em poder, inicia a transformação da sociedade. Sob forte pressão, o governo proclama o sufrágio universal e a nacionalização das minas de estanho entre julho e outubro de
Diversos fatores, que podem ser analisados em outra oportunidade, impediram o progresso das reformas na Bolívia. Saliente-se agora que o jovem Guevara observa, nitidamente, a força e invencibilidade de um povo organizado. Partindo, Ernesto Guevara dirige-se a Costa Rica, Honduras e Nicarágua. Nesses países observa e reflete sobre o panorama da exploração que por sobre homens e mulheres promovem as transnacionais, como a tristemente conhecida United Fruit Company. Opina, agitado, inquieto leitor da história da América, nos círculos de amigos, sobre a identidade que verifica entre os trabalhadores, independentemente da sua nacionalidade.
Na Guatemala, em 1953, Jacobo Arbenz promove a reforma agrária. Ernesto chega ao país e constata que as reformas promovidas são análogas às da Bolívia, que o governo caminha em sentido contrário aos interesses da United Fruit. Prontamente sente a necessidade de agir, de assumir um compromisso maior, de maneira que procura os comunistas do PGT – Partido dos Trabalhadores -, se oferece no pronto socorro médico e nas brigadas juvenis militares que defendem o movimento diante da decisão da Conferência Interamericana - que, reunida em março de 1954, autoriza, através de uma Resolução, a invasão da Guatemala, com apoio dos Estados Unidos, desde o território da vizinha Honduras.
O exílio de Arbenz e a desconfiança do governo com relação à capacidade popular de defender as conquistas diante da agressão o decepcionam. Convencido de que as reformas democráticas e sociais somente não serão anuladas se houver uma força militar ancorada no povo organizado, recorre, decidido, à procura de um suporte teórico que lhe outorgue maior consistência. Volta-se à leitura de Marx, agora não apenas com a curiosidade das primeiras aproximações à filosofia, aquelas da secundária, quando se propôs a fazer um Dicionário Filosófico, mas com o interesse em aprofundar estudos, conhecer e diagnosticar problemas, oferecer saídas coerentes, ter uma formação mais sólida.
Assim, ao jovem que procura entender as causas que originam a escassez de oportunidades, a miséria das maiorias dos latino-americanos, a dor e a fome, se soma a experiência, a convicção, o compromisso amadurecido.
Não é um mero rebelde, alguém que temerariamente se exponha ao perigo, nem um irresponsável, mas alguém que conhece como poucos a situação, e que não toma decisões precipitadas. Mas que está disposto ao trabalho, voluntarioso e animado.
Percebe que reformas democráticas requerem uma versão de sociedade que supere as modalidades de uma representação política mentirosa, de suporte fraco em um esquema de partidos onde o interesse público é um elemento formal. Tenta um desenho de Estado que supere a noção precária de elencar direitos sociais sem efetividade alguma.
Empreender os rumos do desenvolvimento sobre bases econômicas e valores diferentes dos tentados até o momento na América lhe parece apenas lógico. Descobre e ratifica seus pensamentos nas intermináveis discussões no México com Hilda Gadea, a moça intelectual que o desafia, a militante da ala esquerda do APRA Peruano que “tiene un corazón por lo menos de platino...” .
Esse era o Ernesto Guevara que, em novembro de 1955, em casa de Maria Antonia González, no México, conheceria Fidel Castro Ruz, um advogado cubano que procurava recursos para iniciar uma viagem a sua terra, com a idéia de prosseguir a luta contra a ditadura de Batista. A viagem só foi possível na noite de 24 de novembro de 1956, quando o Granma partiu de Tuxpan com oitenta e dois homens.
Na época, Guevara se considera um revolucionário, de visão continental, mas não um marxista. No entanto, as leituras de Marx o diferenciam do restante de expedicionários do Movimento 26 de Julho. Suas freqüentes análises fundadas
Nas aulas, além do interesse em transmitir idéias, do companheirismo e da solidariedade, destaca algo singular: cada vez que se refere ou chama a atenção de alguém o faz utilizando a expressão Che, no começo ou no final da frase. Os alunos, irreverentes ainda nas mais complexas circunstâncias, o batizam de CHE. Rio Platense, Guevara não se incomoda, nem perde a seu argentinismo. Seu senso de humor é reconhecidamente diferente dos companheiros cubanos. O apelido CHE vingou e passou a imortalizá-lo.
Nesta altura, CHE está convencido de que não é possível modificar as condições de existência sem a ação humana consciente. Não somente pensa no ser humano, mas age como acha que todo ser humano deve agir. Tenta ensinar com o exemplo e manifestar sua essência de ser social não apenas como aquele que, física e cotidianamente, compartilha das idéias dos outros e vive e convive com outros, pois sua idéia é ir além. No momento, sua idéia consiste em fazer pensar a todos que, em que cada ação humana, há implícita uma referência a uma certa estrutura social que, quando não responde às expectativas dos seres humanos, deve naturalmente ser modificada.
Assim, CHE proclama comportamentalmente que o sujeito individual deve pensar coletivamente. Destarte, a ação humana é fundamental e a compreensão do modelo social e das suas limitações é imprescindível para transformá-lo. Reside, ali, nessas reflexões, o potencial teórico revolucionário de uma parte do seu pensamento, que seria conhecido mais tarde, quando da publicação de “El socialismo y el Hombre en Cuba” , em uma carta dirigida a Carlos Quijano, do Semanário Marcha de Montevideo, em março de 1965.
Na carta, CHE se debruça por sobre a essência do homem e seu papel no processo de construção de uma nova sociedade. Começa refutando, não somente do ponto de vista teórico, mas fático, o argumento de setores críticos à revolução de que nela o Estado coage o indivíduo, o anula, enquanto o Estado se engrandece, golpeia a liberdade individual.
CHE explica como a luta guerrilheira se desenvolve em dois distintos ambientes: o povo e a guerrilha e como, em ambos, a entrega do ser humano, sua atitude em favor das mudanças, deve ser exemplar. A tarefa, explica o CHE, consiste em “..encontrar la fórmula para perpetuar en la vida cotidiana esa actitud heroica...”.
Caracterizando o povo cubano, CHE expressa como este ente não é apenas a soma de elementos da mesma categoria, mas uma força que participa de todo o processo, na reforma agrária e na administração das empresas estatais, na resistência aos furacões e ao ataque a Playa Girón. E como o povo, embora reconheça o governo e suas lideranças, aquelas que interpretam suas necessidades e ganham a sua confiança com a fidelidade aos compromissos, também obriga à correção de rumo, quando estas erram. Tudo isso sem pretender dizer, como ele próprio esclarece, que o modelo seja o ideal, pois a percepção da massa implica uma interação complexa, que requer métodos específicos, onde a intuição é apenas o começo.
Claro está que o pano de fundo desse processo de unidade não pode ser a lei do valor, inerente ao capitalismo. A mercadoria tem efeitos não somente na organização da produção, mas também na consciência individual que, no capitalismo, se pauta pelo interesse material, pela rentabilidade.
Esse não pode ser o elemento central. O homem não é algo acabado. Na construção do socialismo “Las taras del pasado se trasladan al presente en la conciencia individual y hay que hacer un trabajo continuo para erradicarlas... La nueva sociedad en formación tiene que competir muy duramente con el pasado”.
Há, então, que modificar o pano de fundo, simultaneamente à base material deve ir nascendo o novo homem, moralmente comprometido com o trabalho como valor social, e não como instrumento de satisfação da necessidade individual.
Sabe-se que o capitalismo usou a força, reprimiu duramente seu passado, educou o ser humano na máxima de que seu valor depende da quantidade de bens que possua. CHE propõe um outro processo. A auto-educação é promovida porque a institucionalidade revolucionaria, conduzindo o indivíduo a uma nova atitude, a da responsabilidade como motor do desenvolvimento social. O ser humano é completamente livre na medida em que não somente tem o necessário para a sua existência, mas porque pensa, reflete, participa, vive em comunidade e observa como seu desenvolvimento não é o individual, mas social. Na medida em que seu trabalho se evidencia no desenvolvimento de todos, e não no crescimento das riquezas de alguns; na medida em que a mercadoria homem deixa de existir.
A contribuição do CHE à compreensão da necessidade de rever os valores que norteiam as nossas sociedades está ligada a suas experiências anteriores à Revolução Cubana, ao seu estudo permanente não somente da literatura marxista ou revolucionaria, mas também à leitura que recria em forma de novelas, de crônicas e contos as dificuldades dos nossos povos. E, ainda, à vivência do início do processo de edificação de um novo estilo de conduzir os negócios do Estado, onde prima o interesse público, o respeito pela vida e os valores essenciais dos seres humanos.
Nesse sentido, o pensamento do CHE se distancia de uma compreensão mecanicista da evolução dos modelos sociais. Sua idéia de construção socialista não é o resultado apenas da inevitável maturidade de contradições econômicas, mas da ação humana, da ação consciente do homem na história e, para isso, o ser humano precisa se despojar de um conjunto de prejuízos, preconceitos e fórmulas de individualismo que o isolam do conjunto.
O ser humano não é uma ilha, está indissoluvelmente ligado aos outros, e tanto mais contribui a seu crescimento e felicidade quanto mais oferece sua existência à construção do crescimento e da felicidade de todos. Por isso, nas suas palavras, há que tomar o indivíduo humano concreto em seu processo de liberação e o homem novo é pilar fundamental da construção do socialismo.
O pensamento de CHE flui em um cenário de contradições, antes e depois da Revolução Cubana, e muitas questões que lhe parecem claras antes de 1959 serão revistas depois. Contudo, essa idéia de homem novo, a compreensão de que não existem receitas preconcebidas para redefinir a América Latina e o conteúdo humanista do seu pensamento ainda permanecem, desde a minha ótica, francamente incontroversos.
Resta, ainda, o CHE militar, o que deixamos para o próximo artigo dessa série.
Pietro Alarcón, advogado, colombiano, é professor da PUC-SP.
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