quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

SILENCIADOS E INVISÍVEIS

Por Chico Alencar (*)

Virou negócio, como quase tudo no mundo de hoje. O “cale-se” do rei da Espanha para o presidente da Venezuela sonoriza agora a chamada de celulares e já rendeu cerca de R$ 4 milhões a empresas do ramo. Meio milhão de usuários do aparelhinho reverbera a expressão de gosto duvidoso, em meio aos sinos natalinos que convocam às compras.

Um outro “cale-se”, secular, também fez a riqueza ibérica no processo de colonização das terras do Novo Mundo. Ele foi imposto sobre os nativos da América, explorados em sua força de trabalho e despojados de sua cultura, de seus bens, de sua própria história. Aztecas, incas, maias e diversos outros povos foram silenciados por dinastias a serviço da conquista mercantil-metalista.

Ainda como parte do processo de acumulação primitiva de capital, base da Revolução Industrial que consolidou a hegemonia capitalista no planeta, foi notável o “cala a boca” sobre os povos africanos. Estima-se que o continente foi sangrado, do século XV ao XX, da dominação colonial à espoliação imperialista, em 60 milhões de vidas! Dez vezes mais que o terrível holocausto judeu na 2ª Guerra Mundial. Dos quase 11 de milhões de africanos, de diferentes nações, trazidos como escravos para as Américas, metade veio para o Brasil. Sob os ferros do trabalho e silêncio forçados.

Mas há agora um silenciamento de novo tipo, muito mais relevante que o episódio Juan Carlos/Hugo Chávez, e que deita raízes em nosso passado histórico. Os silenciados do século XXI, herdeiros de nativos e negros escravizados, são os que compõem a massa mestiça de pobres, em especial aqueles que habitam as grimpas dos morros e as periferias de nossas grandes cidades. Para estes, a invisibilidade vem desde o nascimento, porque não há lugar para eles no ordenamento social; algumas autoridades até os consideram bandidos em potencial.

Ao defender a afirmação do Secretário de Segurança do Rio, segundo a qual um tiroteio em favelas da zona sul é diferente de um na Vila Vintém, um leitor escreveu ao O GLOBO, em 24/10: “o fato de as favelas na zona sul se localizarem muito próximas à população justifica inteiramente sua declaração”. São recorrentes as manchetes noticiando a “noite em claro” e o “susto” dos moradores de bairros de classe média ou alta em função de conflitos armados nos morros, como se as pessoas da comunidade favelada no epicentro do confronto não tivessem ficado insones e em desespero...

O avanço conservador grita um polifônico “cale-se” também aos que batalham contra a discriminação étnica e cultural. Até datas que, por justiça, ganham destaque no calendário, afirmando a resistência indígena e a consciência negra, são taxadas de estimuladoras do “ódio racial”, desatentos os críticos do fato de que a escravidão foi também uma forma cruel de racismo.

A sociedade do fundamentalismo de mercado e da egolatria gera um sutil mas feroz apartheid social. Parcelas fora do círculo de hiperconsumo contínuo e crescente, isoladas em grandes guetos, onde as políticas públicas e a autoridade estatal democrática não chegam, vão sendo expropriadas de sua própria condição humana.

Desumanizados, segmentos crescentes desse mundo, especialmente seus jovens, reagem à “ninguendade” a que são condenados através da auto-afirmação despótica no varejo das drogas ilícitas e das armas. São os breves soldados que, iludidos com seu efêmero poder, cumprem as ordens dos inatacáveis atacadistas de um grande e transnacional negócio. À palavra irada desses meninos-falcões, tantas vezes ouvida na forma de tiros, urge sobrepor o clamor contra os empresários - barões da violência crescente, com seus aliados nos poderes públicos, corrompidos com propinas e outros financiamentos, inclusive eleitorais.

Um desafio aos jovens cineastas e jornalistas investigativos: desvendar e reportar os caminhos da produção e circulação das drogas ilícitas e das armas nas altas esferas e nas grandes rodovias, portos e aeroportos. Muito doutor bem falante vai preferir o silêncio e essa invisibilidade que seus esquemas impõem, de mil formas e há 500 anos, aos debaixo.

(*) Chico Alencar professor de História e deputado federal (PSOL/RJ).

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