sábado, 10 de maio de 2008

A Honra de ser Inseto




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O mundo burguês, capitalista – mundo sem amor -, roído pelas insanáveis contradições que lhe são inerentes, vai sendo compelido a retirar de sua atmosfera espiritual os derradeiros vestígios de oxigênio vivificante, capazes de garantir a sobre vivência da pessoa humana. E, nesta medida, produz o tipo aberrante, Gregório Samsa, o protagonista de A metamorfose, de Kafka, cuja asfixia progressiva acaba por transformá-lo em inseto. O gradativo enforcamento da pessoa, na figura do pequeno caixeiro-viajante, não se processa, contudo, impunemente. Há um momento em que o condenado estertora. Este estertor, como um clarão, é capaz por instantes de sacudir o mundo, de subverter os pilares da ordem e de lançar por terra a arrogância do bezerro de ouro, expondo a nudez de sua miséria.
Gregório Samsa, de repente, burlando os planos de seus algozes, se transforma num inseto. Sua metamorfose nos clarifica e comove, de maneira exemplar, por ser ela uma terrível denúncia, um grito de autenticidade em meio a um mundo inautêntico, incapaz pelo menos de ter consciência de sua hipocrisia. Gregório Samsa tomba vítima da ordem social burguesa que o anula, uma vez que – submisso até a abjeção – é radicalmente incapaz de lutar para transformá-la. A ordem familiar e social em que vive – e morre – assassinou sua fisionomia originária, triturou-lhe a liberdade, mastigou seus músculos e nervos, poluiu a graça de sua rosa e, por fim, vomitou-o, transmudado em inseto. Sobre seus ossos chupados, usufruídos, lucrados, a dura carapaça quitinosa-saliva sem remorso.
A grandeza da metamorfose de Gregório Samsa reside no fato de não ter ele pretendido ocultá-la, quer aos próprios olhos, quer aos olhos dos outros. Embora aprisionado em seu quarto – a família não o suportava em sua nova e repugnante condição -, Gregório Samsa conservou-se fiel à sua forma de inseto. Mortalmente atingido na mais íntima substância de sua própria identidade e, assim envilecido e degradado, teve a coragem de confessar-se como tal.
Gregório Samsa é um alienado que, no ato de sê-lo, assume sua alienação e a esgota, exprimindo-a toda, ao mesmo tempo que desmascara as forças alienantes que o esmagam. Desta forma, Gregório Samsa é um alienado que se desaliena através da coragem de proclamar-se alienado, pagando o preço de sua alienação. Além disso, assumindo-se como vitimado, destruído, insetizado, revela o caixeiro-viajante uma vocação de integridade pessoal que, vulnerada em sua última raiz, deságua no desastre existencial. A desumanização que pode ser assim descrita: Gregório Samsa, sendo um produto alienado de uma sociedade alienante e alienada, ao mesmo tempo que encarna essa alienação, a denuncia, transcendendo-a no instante mesmo de sua decisão de encarná-la. Gregório Samsa não consegue viver como pessoa, numa estrutura social que nega a pessoa. E não o consegue justamente por ser uma pessoa, por ter a vocação da pessoa.
Ao transformar-se em inseto, Gregório Samsa assume, por um lado, e integralmente, a alienação a que a sociedade o compele. Ele mesmo se destrói como pessoa, aceitando o veredicto alienante do mundo metálico em que vive. Insetizar-se é alienar-se até a derradeira fibra do próprio ser personal. Mas, por outro lado, insetizar-se é dizer – Basta! – a uma estrutura social que, alienando-nos, exige de nós que sejamos, não apenas alienados, mas totalmente insensíveis e inconscientes com respeito à distorção alenadora que nos impõe. Gregório Samsa, através de sua metamorfose, leva às últimas conseqüências a aberração alienadora que o deforma. Ele sai de si, sem apelo, transforma-se vivencialmente em inseto e, como tal, passa a existir numa comunidade de insetos existenciais que, alienando-se da própria alienação que os vitima, compram a este preço o direito de fingir a pessoa que não são.
Gregório Samsa, com unha implacável, raspa a ferrugem dos hábitos psicológicos e sociais sob os quais jazia sepultado e, debaixo dela, aponta par ao cadáver da pessoa sacrificada – inseto no assoalho. Por isso, por ter-se tornado exemplar no vigor de uma denúncia que a todos atinge, é ele estigmatizado, marginalizado pelos outros, que em torno dele estendem um cordão sanitário para torná-lo invisível. Gregório Samsa é expulso do contexto social em que vive exatamente por retratá-lo com fidelidade excessiva. A carga de verdade que carrega sobre sua carapaça de inseto é brutal e explosiva demais para que possam suportá-la. Gregório Samsa, bandeira da inconsciência de todos, resumo da doença do mundo, foi crucificado em silêncio e, em silêncio, é enterrado vivo. Imperioso se torna evitá-lo, voltar-lhe as costas, já que ele representa, na carne, o pesadelo que os outros nem ao menos ousam sonhar.
Gregório Samsa, portanto, no mais alto ponto de sua doença existencial, ao perder a condição humana, consegue fazer desta perda uma desesperada afirmação de humanidade. Sua metamorfose decorre sob o signo da contradição e da espada. Ela é, ao mesmo tempo, perdição e fome de salvação, silêncio e protesto, cumplicidade enlouquecida de denúncia viril. Existe um analogia, embora imperfeita e incompleta, entre o significado existencial da metamorfose de Gregório Samsa e a dialética da situação do proletariado, dentro da sociedade moderna. O proletariado, gerado nas tripas da ordem capitalista, ao mesmo tempo que compõe a sociedade burguesa, como uma secreção dela, está à margem da burguesia e a transcende, constituindo-se na força desalienante por excelência, que irá lutar pela transformação humanizadora de todo o organismo social. O proletariado padece da alienação que lhe é imposta pela ordem capitalista, encarna-a, mas, ao tomar consciência dela, assume-a e passa a representar o seu contrário, isto é, um esforço social de desalienação. O proletariado, como classe, nega a negação que o vulnera e, com isto, representa o fator positivo por excelência de transformação do mundo.
A metamorfose de Gregório Samsa só não chega a simbolizar a degradação coisificadora – ou insetizadora – do proletariado, que a ela é condenado pelo regime capitalista, por ser o caixeiro-viajante, em sentido etimológico, um desclassificado, desvinculado de qualquer classe, sem nenhuma possibilidade de fazer da consciência de sua alienação um instrumento de fraternidade e de esperança. Gregório Samsa, ao insetirzar-se, comete um ato terrorista de desespero individual. Seu protesto, carente de dimensão comunitária, o torna definitivamente emurado em si mesmo, sem mãos para encontrar o companheiro com o qual irmanar-se, numa luta compartilhada.
É esta diferença essencial entre Gregório Samsa e o proletariado, no regime capitalista. O primeiro é um terrorista cuja ação se esgota na explosão da bomba que o explode. Ao destruir-se, confessa o caixeiro-viajante sua impossibilidade de modificar o mundo. Ele o destrói, simbolicamente, através de sua própria destruição e, desta forma, proclama a impossibilidade radical de construir-se como pessoa, construindo ao mesmo tempo um mundo humano. Gregório Samsa encarna a desumanidade crua e bruta das forças alienantes que, no regime capitalista, atentam contra a dignidade da pessoa. Esmagado, denuncia este esmagamento e, através dele, testemunha o peso impiedoso da máquina que o achatou. Roubando de sua condição humana, revela através da metamorfose que o vitima o assassinato geral da pessoa, no mundo em que vivemos. Dá-se em espetáculo, como inseto, expõe cruamente sua abjeção, deixa que ela grite por si mesma. Às forças que o negam, como pessoa, recusa-se ele, de repente, a obedecer – assumindo a negação que o nega.
Sua desobediência ganha, entretanto, a forma contraditória de uma adesão ensandecida. Gregório Samsa desobedece por excesso de obediência. Submete-se, totalmente, às forças que o alienam e, ao afogar-se nelas, dá-lhes uma vitória de tal maneira radical que as desmascara e anula. Na medida em que se transforma em inseto, deixa o caixeiro-viajante de ser o escravo-coisa talhado à imagem e semelhança dos interesses do mercado capitalista. Tais interesses exigem da pessoa que se destrua em seu centro, sem contudo abrir mão de sua aparência de pessoa. O regime capitalista, para prosperar, precisa de insetos apenas simbólicos, de pessoas cuja metamorfose alienadora não chegue ao ponto de nelas destruir, visceralmente, a mecânica da condição humana. Tal regime exige que sejam preservados os ritos formais da pessoa, embora a estes nada venha a corresponder de vivo, original e profundo. A pessoa tem que manter-se utilizável e “livre” para dirigir-se, ao menos, até à fábrica, e lá marcadejar sua força de trabalho, conservando músculos e nervos que lhe permitam servir ao proprietário. Se esta margem de utilitariedade e de “liberdade” é respeitada, tudo o mais pode levar a breca.
A rebelião de Gregório Samsa consiste em que ele se transformou verdadeiramente num inseto e, com este ato de terrorismo, rompeu as regras do jogo social, destruindo-as por tê-las levado às últimas conseqüências. Ao transmudar-se em inseto, encarnando até à loucura as forças sociais que o alienavam, deixou o caixeiro-viajante de servi-las, para delas compor um retrato monstruoso e fiel. Gregório Samsa, até o momento de sua metamorfose, era uma pessoa que padecia de um câncer psicológico, social e existencial. A partir de sua transformação em inseto, passou a ser o próprio câncer, liquidou-se com pessoa, através desse ato de desespero, desobedecer e acusar.
Gregório Samsa, desclassificado, marginalizado e solitário, cometeu um suicídio personal para, com isto, desmascarar o crônico homicídio institucionalizado de que vinha sendo vítima. De um tal homicídio tornara-se ele masoquisticamente co-responsável, na medida em que, anulado como pessoa, fazia deste anulamento consentido uma forma de melhor servir aos seus algozes. Ao converter-se em inseto, deixou Gregório Samsa de estar conivente com a ordem social e psicológica que o negava em sua pessoalidade, e o instrumento desta ruptura foi, exatamente, a aceitação radical da negação que o corrompia em sua essência.
Assumindo-se como inseto, responsabilizou-se o caixeiro-viajante por sua destruição pessoal, tomou dela consciência plena e dramática e, assim, foi capaz de transfigurá-la em decisão de combate. Antes da metamorfose, Gregório Samsa, apesar de existencialmente insetizado, conservava sua fachada de pessoa na justa medida para deixar-se explorar e usar. Ao transformar-se em inseto, publicou de maneira terrível sua condição de vítima e, desta forma, configurou e denunciou o crime longo e minucioso que contra ele se vinha cometendo. Pressionado cronicamente no sentido de sua insetização, Gregório Samsa, num instante crucial de escolha, decidiu não mais nadar contra a corrente, fingindo a pessoa que não era apenas para cumprir, como cúmplice, o jogo inumano e ambíguo ao qual se submetera. De repente, aceitou ser inseto – isto é, submergiu na corrente alienadora que o afogava – mas, ao mesmo tempo, transcendeu tal corrente, tansformou-se carnalmente em inseto, sem valia nenhuma e sem nenhuma possibilidade de tornar-se, para quem quer que fosse, produtor de mais-valia.
Desistindo de ser pessoa, Gregório Samsa conseguiu fazer de sua capitulação esquizofrênica um derradeiro e grande grito de pessoa. Incapaz de opor-se à falência existencial que lhe era imposta, resolveu a ela identificar-se e, de tal forma o fez, que essa identificar-se e, de tal forma o fez, que essa identificação passou a significar luta, condenação, denúncia, protesto. Deixando de alienar-se de sua própria alienação, desfraldando-a toda para expô-la, Gregório Samsa acusou e desonrou as estruturas sociais que o destruíam, através de um pseudoconformismo ensandecido. Pela destruição de si, como pessoa, conseguiu uma última e desesperada afirmação de pessoalidade. Anarquista solitário e humílimo, desumanizou-se, sem remissão – através da metamorfose – para com este gesto terrorista desmascarar a inumanidade do mundo em que vivia – e em que vivemos.
(Texto retirado do Livro de Hélio Pellegrino, publicado pela editora Rocco em 1988, intitulado: A Burrice do Demônio).


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